A democracia
que não veio
Vladimir Safatle
Normalmente, aqueles que
mais têm a palavra “democracia” na boca são os que, no fundo, menos acreditam
nela. Eles se portam como defensores dos valores democráticos apenas para
conservar desesperadamente as imperfeições que a versão atual da democracia é incapaz
de superar. Na verdade, quando repetem que “a democracia é o pior sistema, mas
o único possível”, é porque amam suas distorções. Pois a única posição
realmente fiel ao conteúdo de verdade da democracia consistiria em dizer: a
democracia não está realizada, ela é uma ideia por vir.
Isto não significa que a
realização imperfeita de uma ideia seja completamente falsa. A democracia por
vir não é a negação simples, a recusa absoluta da democracia que temos
atualmente. Mas ela é a mudança qualitativa de seus dispositivos e construção
de novas dinâmicas de poder.
Podemos mesmo dar três
razões que nos permitem compreender por que esta democracia por vir ainda não
veio. Uma delas é a confusão deliberada entre o jurídico e o político. A
verdadeira democracia admite situações de dissociação entre o ordenamento
jurídico e exigências de justiça que alimentam as lutas políticas. Esta
dimensão extrajurídica própria à democracia nos lembra que há uma violência
eminentemente política que sempre apareceu sob a forma do direito de
resistência e do reconhecimento do caráter provisório das estruturas normativas
do direito. A estabilidade institucional da democracia não significa a
perenidade absoluta do ordenamento jurídico atual. Ela significa que a
instabilidade da violência política, uma violência que não é a simples
eliminação simbólica do outro, será reconhecida no interior mesmo das
instituições sociais.
O segundo ponto é o medo
atávico da participação popular direta. As estruturas representativas da
democracia parlamentar foram criadas para suprir a impossibilidade material da
presença física da população no processo de deliberação legislativa cotidiana.
Hoje, com o desenvolvimento tecnológico e com o advento das sociedades de alta
conectividade, foram dadas as condições materiais para o início de uma
verdadeira democracia digital. Vários processos deliberativos podem passar para
a esfera da deliberação plebiscitária.
O terceiro ponto diz
respeito à relação de reconhecimento entre Estado e cidadão. Não é possível
pensar o campo da política sem o Estado. É ele que permite a ampliação de
escala de processos gerados na esfera local. É ele que permite a implementação
institucional da universalidade. No entanto, vivemos em uma época de
esgotamento do Estado-nação com suas exigências de conformação identitária e
sua capacidade de gerir processos econômicos em sua fronteira. Este fim do
Estado-nação pode dar lugar a dois fenômenos: o retorno paranoico a identidades
profundamente ameaçadas ou o abandono da identidade como operador político central.
Isto significa não a anulação deliberada de toda e qualquer demanda identitária,
mas a construção de um espaço político de absoluta indiferença às identidades;
de uma política da diferença à implementação política de zonas de indiferença.
Isto implica um estado capaz de socializar sujeitos em seu ponto de
indeterminação. Ou seja, a função do estado não pode ser a determinação
completa dos sujeitos através da gestão de processos disciplinares e de
controle. Sua função é a gestão da indeterminação. Isto pode se dar, por
exemplo, através da eliminação de aparatos jurídicos ligados à perpetuação de
hábitos e costumes.
Por fim, não é possível
pensar problemas ligados à democracia sem pensar os riscos advindos da
consolidação de grandes conglomerados globais de mídia. Eles têm tendência a
monopolizar discussões sobre liberdade de expressão sem nunca discutir as redes
de interesses econômico-financeiros que permeiam tais conglomerados e
direcionam sua expressão. Da mesma forma, eles tendem a não discutir como
setores da opinião são, muitas vezes, marginalizados
FONTE: Site Revista Cult
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