O psicanalista
Contardo Calligaris aproxima as relações amorosas das relações políticas, na
tentativa de analisar os movimentos populares no Brasil.
Sonhos de calor humano
Na sexta-feira
passada, estreou o último filme de Richard Linklater, "Antes da
Meia-Noite", que eu estava aguardando. Mas, enquanto as ruas pegam fogo, é
difícil escrever sobre o amor.
As manifestações que se
espalharam (e seguem se espalhando) por São Paulo e por outras cidades do país
me impressionaram pela rapidez com a qual o protesto, supostamente motivado
pelo aumento das passagens de ônibus, tornou-se expressão de outras
insatisfações, profundas e cruciais --contra a má qualidade e a má gestão do
que é público, contra a insegurança de nossas ruas, contra a corrupção, contra
o mistério nacional que resulta em produtos caros e salários baixos, contra os
políticos com sua falta de competência e seu excesso de promessas, contra o
desperdício da Copa que vem aí, contra a lentidão e a ineficácia da Justiça,
que parece que late e nunca morde etc.
Domingo, num café de
família, verifiquei, aliás, que as passeatas da semana passada não eram mais
(se é que foram no começo) a manifestação de uma geração ou de uma classe
social (e ainda menos de um partido).
Todos parecem cansados de
uma cantilena ufanista que quase nos adormeceu: o discurso do Brasil que dá
certo, que cresce (?), que está no caminho, que resistiu à crise enquanto os
outros se deram pior, que acabou com a miséria (?) etc.
Levantando a cabeça
atordoada pela propaganda, a gente pergunta: isso aqui é mesmo tudo o que
conseguimos ser, como sociedade?
As manifestações da semana
são frutos de um descontentamento bem justamente brasileiro. Ao mesmo tempo,
elas pertencem a uma voz popular que se expressa, mundo afora, há tempo --e não
só desde Seattle, em 1999.
Paradoxalmente, foi
assistindo ao filme de Linklater que me pareceu entender por que somos (e não
estamos) insatisfeitos com as sociedades nas quais vivemos.
Linklater filmou uma
trilogia: no primeiro filme, "Antes do Amanhecer" (1995), Jesse e
Céline descem do trem onde se encontraram para passear por Viena, até eles
terem que voltar, no dia seguinte, cada um para seu lugar. No segundo,
"Antes do Pôr do Sol" (2004), Jesse está promovendo, em Paris, o
livro que ele escreveu sobre seu encontro em Viena com Céline; Céline vai ao
lançamento, e eles se reencontram.
Em "Antes da
Meia-Noite", agora em cartaz, Jesse e Céline se juntaram no fim do filme
anterior, tiveram duas filhas e estão de férias na Grécia: o charme das
conversas passadas se transformou num pesadelo, em que uma oposição estéril,
abstrata e inexplicável parece ser o destino a longo prazo de qualquer conversa
de casal.
Ou seja, o amor é o
encanto de um encontro, um sonho: quando ele se realiza como convivência, ele
pode durar, mas será facilmente cômico e sempre insuficiente.
Ora, essa verdade do amor
talvez valha para qualquer projeto de convivência social. A sociedade que nos
parece certa, que desejamos, existe na mágica do encontro e do sonho (o momento
da manifestação, da militância). Como acontece com o amor, a realização dessa
sociedade é sempre insatisfatória --claro, às vezes ela é um pesadelo absoluto
e totalitário, outras vezes ela é parecida com aqueles casamentos que continuam
porque ninguém acredita que a coisa possa melhorar e porque ninguém está a fim
de ficar sozinho.
Ao longo de alguns
séculos, o indivíduo se tornou para nós mais importante do que a comunidade.
Esse período teve seu ápice no começo da modernidade. Paradoxalmente, logo
quando o indivíduo passou a encabeçar nossos valores, a gente começou a
idealizar o amor romântico como doação perfeita de cada um ao outro.
Da mesma forma, quando
começamos a inventar as regras e as formas de uma sociedade de indivíduos
separados e autônomos, logo naquele momento começamos a sonhar com o abraço de
comunidades unidas e fraternas.
Ou seja, quanto mais
prezamos o indivíduo, tanto mais sonhamos com o amor e o ideal comunitário.
Esse paradoxo nos define.
Estamos em conflito permanente entre nossa aspiração individual e nossos sonhos
amoroso e comunitário. Em matéria de amor, a consequência parece chata (nunca
dá certo).
Mas em matéria de
sociedade, sorte nossa: de vez em quando, podemos nos acomodar, mas nunca somos
satisfeitos com a sociedade que conseguimos construir.
Melhor assim.
Contardo
Calligaris
Fonte:
Site Jornal Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário