Jacques Lacan – por Gilles Lapouge
publicado no Caderno
Cultura do jornal O ESTADO DE SÃO PAULO,
em 18/10/1981
Em seus últimos dias de
vida, Jacques Lacan era um homem triste, frágil e cansado. Era um velho. Mas a
morte jogou-o novamente no primeiro plano, obrigando a uma reapreciação do uso
que fez da linguística para a decifração de Freud. Gilles Lapouge refaz a
trajetória desse intelectual e recorda a curta, porém marcante, convivência que
teve com LACAN.
Ele não realizava mais
seminários. Depois de tanto barulho, tudo em torno dele era silêncio. Não era
mais visto nas ruas de Sant Germain des Près. Ou, quando se aventurava fora de
casa, nestes últimos meses, não mais era aque¬le personagem suntuoso, o
"magnífico", envolvido em peles, mas sim um homem triste, frágil,
cansado, que caminhava lentamente arrastando os pés. Um velho.
Em torno dele os rumores
ferviam: discípulos, inimigos e aduladores davam as notícias mais
desencontradas sobre Lacan, como um telégrafo que assinalas¬se a posição de um
navio perdido no Ártico ou, ao contrário, anunciasse que esse navio descobrira
novas terras: "Ele está empenhado em um último combate, o mais perigoso de
sua vida, está procu¬rando formalizar a teoria psicanalítica através da
matemática, e precisa de solidão", diziam uns — a que respon¬diam outros:
"Ele está liquidado, não pode mais nem falar. Ficou louco, vai ser
internado." E comentavam: "Belo símbolo, o mais célebre dos psicanalistas
acabando sua vida em um hospício...". Ou ainda: "O clown, o bufão, o
histrião chegou ao fim. Representou todos os seus números, fez-nos rir durante
muito tempo, apaixonou-nos — mas era tudo vento. Seus bolsos agora estão
vazios, não há mais pó, dentro deles, para que ele o atire nos nossos olhos.
Hoje ele é apenas um acrobata que não consegue mais fazer seu número".
Eis que de repente o
gênio, ou o liquidado, ou o acrobata, morre. E todo mundo se espanta. Sua morte
surpreende. E, no entanto, Lacan era um homem muito velho, nascido em 1901,
partícipe dos mais ativos do grupo surrealista, com Breton e Aragon, desde
1918. Mas a celebridade só chegou muito tarde, mais precisamente em 1966,
quando ele já estava com 65 anos e decidiu-se a publicar seu primeiro livro,
composto pelas aulas que dava em seu seminário, o Écrits, editado pelas
Editions du Seuil. (Vale um parêntese: este homem que seus inimigos denunciavam
como vaido¬so, esperou chegar aos 65 anos para se colocar finalmente sob os
refletores da publicidade).
É verdade que, antes de
1966, não é que Lacan fosse um ninguém: ele era conhecido, reverenciado e
adulado, embora apenas por um restrito círculo de psicanalistas e filósofos. Os
outros, o grande público culto sabia que existia e oficiava em Paris, há 30
anos, um perso¬nagem enigmático, fascinante, uma es¬pécie de xamã — Jacques
Lacan — que distribuía o seu saber, um pouco à maneira de Sócrates, apenas por
meio da palavra: um saber devastador, cortante, temível, graças ao qual a
psicanálise, edulcorada pelas modificações da escola anglo-saxônica, pôde
finalmente se transformar naquilo que Freud queria que ela fosse, "uma
peste".
Foi durante esse longo
período de segredos, sussurros e inconfidências que se forjou a lenda de Lacan,
lenda que, a seguir, a partir de 1966, quando virou moda, transformou-se num
verdadeiro câncer. Diga-se, aliás, que o próprio Lacan nada fez, jamais, para
impedir sua proliferação. Estranhamente, desse homem, que se tornara uma
vedette mundial há 15 anos, a rigor nada se sabia. Enquanto se conhecia tudo
sobre Freud, sua família, sua infância, no que dizia respeito a Lacan estava-se
na mais completa escuridão. Sabia-se apenas que ele nascera em Paris, de
família rica, em 1901. Nos anos 20, jovem psiquiatra brilhante, interessava-se
tanto pela poesia como pelas doenças mentais, convivendo ora com os loucos ora
com os escritores surrealistas. Loucos ou, de preferência, loucas, já que Lacan
tinha uma acentuada predileção pelo discurso delirante das mulheres, fossem
elas místicas ou assassinas.
Seus
seminários são assistidos por uma multidão
A partir de 1966,
inaugura-se um novo período. Primeiro com a publicação dos Écrits, fazendo com
que Lacan seja louvado não só na França como nos meios cultos do mundo inteiro.
Segundo, seu seminário muda de sede: do hospital de Sainte Anne vai para a
Escola Normal Superior — o templo da cultura francesa — local de formação dos
mais brilhantes intelectuais parisienses.
Os seminários de Lacan
tornam-se, a partir daí, um acontecimento ao mesmo tempo intelectual e mundano.
São frequentados por uma multidão: jovens filósofos, psicanalistas — e senhoras
do tipo chic, as dames cultivées.
Para conseguir lugar
sentado é preciso chegar uma ou duas horas antes. Na assistência reconhecem-se
com frequência nomes como Michel Foucault, Philippe Solers, escritores de
vanguarda.
O mestre chega: entra
caminhando devagar, instala-se cuidadosamente à sua mesa. Olha a sala
vagamente, respira, suspira — como um atleta se concentrando — e começa a
falar. Em uma voz inicialmente quase inaudível, aos arrancos, aos sussurros,
faz paradas súbitas, hesita, gagueja. Com frases subitamente invertidas, leves,
aéreas, uma rápida incursão pela filosofia de Hegel mais um jogo de palavras,
uma grosseria inominável e um silêncio interminável — ele dá a impressão de que
não conseguirá continuar nunca mais, calou-se para sempre, a platéia aguarda
fascinada, corações batendo, respiração presa — e ele recomeça a falar, com
doçura, fluência, o discurso sobe, sobe alto, e plana finalmente.
Nem há dúvida que tudo isso
era composto, montado, como no teatro. Tudo improvisado, mas nada ao acaso.
Tudo artifício — mas qual o orador que não é um homem de artifícios?
E somos forçados a
reconhecer que Lacan foi o mais extraordinário mágico da palavra que já nos foi
dado escutar.
Ao mesmo tempo, ele
continuava a dirigir a Escola Freudiana de Paris, reunindo, agora, tudo o que
havia de mais brilhante entre os psicanalistas franceses. Mas — e como em toda
instituição psicanalítica — os dramas são constantes. Há expulsões,
tempestades, brigas, e Lacan provoca, desafia, detestando e desprezando tanto
os que o adulam da mais beatífica das maneiras como os que não se lhe submetem.
Aos poucos, em pequenos
grupos, os psicanalistas vão saindo da Escola Freudiana, e outros os substituem
— mas Lacan vai ficando amargo. Tem o sentimento, cada vez maior, de que sua
palavra não é ouvida, que os seus ensinamentos terminam em malogro, e num belo
dia de 1980, aos 79 anos de idade, estoura a novidade, chocante: Lacan resolveu
dissolver a Escola Freudiana de Paris, o edifício mais importante de sua vida.
Pânico. Agitação. Insultos
e denúncias. Há quem o ataque, há quem cerre fileiras em torno do mestre. Ele
fundará outra instituição, sem dúvida — mas a partir desse momento começa como
que a apagar-se, deixa de ser visto, fala pouco, não reina mais, no interior da
psicanálise, a não ser como uma ausência devorante, um vazio em torno do qual o
ar turbilhona alucinadamente.
Depois,
a morte.
Esta é a carreira visível
de um homem que faz parte da lenda parisiense desde 1968. Uma lenda, diríamos,
histérica. Em que ele é vítima dos piores rumores. Lacan teria dado de presente
um chicote de ouro à atriz Jeanne Moureau. Teria insultado o embaixador francês
em Roma. Teria... teria... Só que nenhum dos rumores se confirma.
A única coisa certa que
ele tem, realmente, caprichos de grande coquette, de "diva". Gosta,
realmente, do perfume de escândalo, de provocação, que o acompanha sempre. É
certo também que ele exige que os seus pacientes, seus analisandos, lhe paguem
regiamente, preços exorbitantes, por sessões que, dizem, são cada vez mais
curtas — às vezes de apenas alguns minutos — em que, com frequência, ele não
diz uma só palavra.
Circulam em Paris
histórias sobre seu mau caráter, sua fatuidade, vaidade, orgulho, estranhas
maneiras. Eu o conheci: e nele vi, apenas, sempre um homem muito simples, um
homem que lutava, com uma coragem assombrosa, contra o enigma da psicanálise,
um trabalhador encarniçado.
Conheci-o em 1966, quando
publicou seus Écrits. Pedira-lhe uma entrevista para uma publicação semanal, Le
Figaro Littéraire. Inicialmente ele me submeteu, por telefone, a uma espécie de
pequeno exame, para ver se eu tinha algumas noções, ainda que vagas, sobre
psicanálise. Ao que parece passei no exame, e ele me marcou encontro para uma
das noites seguintes, às dez horas — estranha hora.
Chego, e encontro um
personagem muito amável, muito cortês. Oferece-me charutos e whisky, e pede-me
que lhe faça minhas perguntas. Ouve atentamente, a cabeça inclinada. Suspira
profundamente, e começa a responder. Utilizando a linguagem mais simples, mais
clara do mundo, nada tendo em comum com a prosa preciosa, à La Mallarmé,
erudita, dos Écrits.
Fala durante muito tempo.
Já são quatro horas da manhã quando ele me acompanha até a porta do seu prédio.
Revi-o oito dias mais tarde, para alguns esclarecimentos. De noite, novamente,
e por volta da meia-noite ele me propôs que fôssemos a um restaurante, para jantar.
Encontrei-o mais duas
vezes, e jamais sua gentileza, seu respeito pelo outro foram desmentidos. Mas
ele tinha realmente manias, destinadas sem dúvida a alimentar a lenda. Uma
manhã, por exemplo, às seis horas, meu telefone tocou. E era o doutor Lacan, me
contando uma história sem grande interesse, e absolutamente não urgente.
Quanto
às suas teorias, seria uma impertinência tentar resumi-las.
A teoria lacaniana foi
elaborada ao longo de 30 ou 40 anos de prática clínica e de reflexão teórica
sobre essa prática, complicada ao máximo, sofisticada ao último grau, fazendo
referência a toda a cultura do mundo, desde a História e a mitologia, a poesia
e a pintura, até Hegel, Kant ou Sade e às formas mais áridas da matemática moderna,
sem esquecer a etnologia, a linguística, e todos os recursos daquilo a que
chamamos retórica.
Assim, vamos nos limitar a
indicar, de um lado, o que essa teoria não é, e, de outro, qual o eixo, a
espinha dorsal dessa teoria. Primeiro poderíamos ser levados a acreditar que um
homem tão cheio de som e fúria, provocador, iconoclasta, tivesse virado as
costas ao "pai" fundador, a Freud. Pois nada disso: Lacan nunca mudou.
O que ele pretendeu foi um "retorno a Freud". Empenhou-se em sua
leitura, com cuidados ciumentos, meticulosos, sem em momento algum traí-lo —
ou, pelo menos, sem ter o sentimento de traí-lo.
Poderíamos compará-lo, se
quiséssemos, a Lutero, o fundador do protestantismo, que quis efetuar um
"retorno aos Evangelhos", libertando-os da ferrugem que lhes fora
acrescentada pela Igreja de Roma. Assim fazendo, Lacan visava especialmente
dois desvios do discurso freudiano: de uma parte, o desvio pela hermenêutica
religiosa, efetuado por Jung e seus discípulos, e, de outra, o esmaecimento
sofrido pela psicanálise, ao atravessar o Atlântico, reduzindo-se de ano em
ano, cada vez mais a uma simples psicoterapia, e ao esforço de meramente
"normalizar" os doentes, tornando-os aptos a ocupar seu lugar na
sociedade, a funcionar, a produzir.
Lacan estava tão longe
dessas práticas que sequer ousava dizer que o tratamento psicanalítico
destinava-se a curar. O tratamento, para ele, destinava-se muito mais a fazer
com que o paciente "reentrasse em sua própria casa", ou seja, restabelecesse
as comunicações cortadas entre o consciente e o inconsciente, sem nem por isso
ser obrigado a descobrir, forçosamente, a "serenidade" ou a "felicidade",
palavras que não faziam parte do seu vocabulário.
A palavra-chave para ele
era "verdade", ainda que essa verdade fosse devastadora, cáustica,
impiedosa.
Segundo erro a não
cometer: fazer de Lacan um filósofo. Em 1966 e nos anos seguintes, no auge da
glória, ele tornou-se um mago, um mestre-pensador — e houve quem quisesse
içá-lo às alturas dos antigos mestres, particularmente ao lugar de Sartre,
exigindo-lhe portanto uma filosofia, uma metafísica. Tentação de que ele se
defendeu com horror. Clínico e teórico, sim. Filósofo nunca.
Ele é um homem de ciência,
dessa ciência que é, segundo ele, a psicanálise de Freud — e é precisamente o
estatuto científico dessa psicanálise que ele quer estabelecer em sua obra. Não
há dúvida que o seu discurso é sobrecarregado de filosofia, e que inspira os
filósofos — mas este é um efeito secundário, indireto, pelo qual Lacan se
recusa definitivamente a se interessar.
Portanto, a idéia é
conferir à psicanálise o estatuto de ciência. E é aqui que intervém o uso da
linguística — que também passou a ser ciência, desde os trabalhos de Saussure —
uma ciência-serva, se assim quisermos, fiadora e tela de fundo da ciência psicanalítica.
E como é que a linguística entra nisso?
Lacan volta a Freud, mas
lê-o com óculos que não existiam no seu tempo, os óculos da linguística,
fundada por Saussure precisamente com base em Freud. Para Lacan, Freud não
descobriu o inconsciente: os homens já o haviam reconhecido há centenas de
anos. Basta pensar nas pítias, na mitologia, em Hamlet, Leonardo da Vinci,
Sófocles. Os homens sabiam que por baixo do pensamento coerente,
"acordado", estendem-se imensos arquipélagos submersos, censurados,
que formam o inconsciente. Donde, Freud não descobriu o inconsciente: aprendeu
somente a escutá-lo, a decifrá-lo.
Lacan costumava fazer uma
bela comparação: antes que Champollion, no começo do século XIX, decifrasse os
hieróglifos egípcios, os hieróglifos já estavam lá há muito tempo. E falavam —
só que ninguém entendia o que eles diziam. Champollion encontrou a chave, e, de
súbito, toda a antiguidade egípcia nos foi devolvida.
Freud fez o mesmo, e a
comparação vai ainda mais longe, já que o seu golpe de gênio segue exatamente o
mesmo método do golpe de gênio de Champollion. Antigamente, quando se capturava
uma palavra do inconsciente, uma imagem de um sonho, por exemplo, procurava-se
compreender o sentido daquela palavra, daquela imagem. Da mesma forma, antes de
Champollion, procurava-se compreender o sentido isolado de cada desenho de uma
tábula egípcia— um íbis, por exemplo, ou uma balança — e não se chegava a parte
alguma. Champollion teve a ideia de interpretar a série dos símbolos, sua
sequência, seu inter-relacionamento, sua ordem, por ter compreendido que um
símbolo nada quer dizer se retirado da cadeia significante. Para traduzir uma
língua desconhecida ele usou não um dicionário, mas uma gramática e uma
sintaxe. Freud fez o mesmo: e trabalhou sobre todo o sonho, ou todo o discurso
do inconsciente, observando como cada uma das suas diferentes secções, suas
imagens sucessivas, se organizam umas em relação às outras, se entrecruzam. Em
suma: ele examina não mais o discurso palavra por palavra, mas em sua estrutura
completa. E traduz esse discurso como se traduz um texto do grego ou do latim,
reencontrando sua sintaxe e sua gramática.
Assim fazendo, Freud
descobriu que esse discurso do inconsciente, longe de ser desorganizado,
incoerente, anárquico, obedecia a leis rigorosas, estáveis, permanentes — leis
precisamente iguais às da linguagem consciente, só que "disfarçadas"
pela censura. O que nos leva a pensar na censura no domínio político.
Um
regime tirânico decreta a censura. Que se passa então?
Todo o discurso do país é
cortado, proibido. Ainda assim, não se interromperá, não parará. O país
continua a falar, mas clandestinamente, como o inconsciente, apesar da tirania
do consciente, que continua a falar "sob" o discurso oficial (o
discurso consciente, no caso do indivíduo, o discurso do senhor, no caso da
ditadura). E fala de modo que o tirano não o entenda, disfarçando-o.
Um jornalista, por exemplo,
em lugar de denunciar claramente esta ou aquela prática, vai fazê-lo por meio
de um símbolo complexo. O mesmo para o indivíduo: um desejo sexual me atormenta,
por exemplo, mas minha formação, minha educação, impedem-me de falar nele, e
até de reconhecê-lo. Assim, o desejo não desaparece, mas vai expressar-se em
linguagem camuflada, clandestina, incompreensível.
A psicanálise é portanto a
arte de descobrir as leis que esse desejo utiliza para se manifestar sem se
trair — leis que são as mesmas que as da nossa linguagem quando acordados, com
sua gramática e sua sintaxe, mas torcidas, disfarçadas.
Lacan dá muitos exemplos
desse decifrar-se, mostrando, por exemplo, que formações bem conhecidas do sonho,
a que chamamos "condensação", seguem exatamente as mesmas regras das
formas de retórica, a metonímia, a metáfora, etc. Assim, pela primeira vez, com
Freud, os hieróglifos do inconsciente podem ser lidos. Pela primeira vez, o
formidável Egito antigo que cada um de nós guarda no inconsciente torna-se perceptível,
pode ser ouvido, e conseguimos pôr-nos em comunicação com esse território
submerso.
A tudo isso faz-se uma
objeção: isto é Lacan. Não pode ser Freud, já que as leis da linguística que
Lacan aplica para decifrar o inconsciente eram ignoradas na época de Freud.
"Prova — retruca Lacan — da genialidade de Freud. A linguística ainda nem
existia e ele já forjara um instrumento de decodificação que só podia funcionar
com a linguística! Profético, Freud estava muito à frente de todos os outros —
mas foi preciso a linguística para que pudéssemos apreciar e utilizar
plenamente a revolução copérnica que ele realizou." E Lacan costumava
acrescentar ainda que todos os textos de Freud, se lidos com atenção,
mostrariam um combate áspero, violento, com a linguagem.
O que é rigorosamente
verdade. Basta citar, por exemplo, a importância dada por Freud ao calembur
(refúgio privilegiado do discurso do inconsciente), ao trocadilho, ao lapso, ao
ato falho, etc. E, enfim, o que é realmente a cura psicanalítica de Freud? Uma
cura da linguagem pela linguagem. O paciente fala. O psicanalista escuta,
decifra esta ou aquela palavra. Decifra o discurso. Do começo ao fim, a psicanálise
é questão de linguagem.
Claro que esse nosso
resumo é indigente. Reduz e empobrece terrivelmente o texto de Lacan — mas não
nos é possível ir além disso. Teríamos de introduzir aqui muitas outras noções:
o estágio do espelho, as três instâncias do real, do simbólico e do imaginário,
o objeto pequeno a, o outro. Mas tudo
isso é de um tal refinamento, de uma complexidade tão vertiginosa, que não é
possível incluí-lo em um artigo de jornal. Falta só afirmar que tudo se deriva
dessa constatação original: "O inconsciente é estruturado como uma linguagem".
A psicanálise permite
traduzir o discurso do inconsciente, para rearticular o indivíduo sobre essa
radical dele mesmo que é inconsciente, a fim de reintegrar sua própria verdade.
Esta palavra —
"verdade" — retorna de maneira obsessiva, em Lacan. O que até
surpreende. Como se houvesse uma verdade, como se, admitindo que a verdade
existe, o espírito do homem pudesse capturá-la, subjugá-la. Mas a força de
Lacan consiste exatamente em fazer, de uma impossibilidade, um formidável
trampolim teórico para ir mais longe. Assim com a noção de "verdade",
com a qual ele se exibe "como um pavão", segundo os seus inimigos, ou
"como um homem em busca do Santo Graal", segundo os admiradores.
0
homem é um ser fabricado pela linguagem
Há três anos,
aproximadamente, a televisão francesa, não sem coragem, emprestou suas câmeras
a Lacan. E vimo-lo, então, na pequena tela. Suas primeiras palavras foram:
"Eu digo sempre a verdade". Os espectadores prenderam a respiração.
Quem era, afinal, aquele pretensioso, aquele homem que avançava, tocha flamante
na mão, usando a linguagem de um profeta, ou de um deus?
"Eu sou a
verdade." E, depois de um silêncio, "mas não toda a verdade, porque
não é possível dizê-la toda. Faltam-nos as palavras. E é exatamente por causa
dessa impossibilidade que a verdade se torna verdadeira".
Perfeito: em três frases
cintilantes, ele disse tudo: que o homem é um ser da linguagem, um ser
fabricado pela linguagem e fabricante de linguagem, mas que a linguagem é
impotente para revelar a totalidade do mundo, e que é desta falha, deste abismo
que separa as palavras e as coisas, que o real emerge. A isso acrescentaremos
que essa tentativa sacode os fundamentos de toda a filosofia, portanto do ser,
do Ocidente.
Formalizar
o inconsciente segundo a matemática
Freud, repetido ou
explicado por Lacan, opera um putsch filosófico, um golpe de Estado.
"Descentraliza" o "eu" cartesiano. Abole a fórmula real,
fundadora do Ocidente, o "Penso, logo existo", de Descartes. Com
Descartes o homem só é pensando, e pensa a partir do centro de si mesmo. Com
Lacan e Freud tudo isso é dilapidado, tudo é jogado para o alto. Não podemos
mais dizer hoje em dia "Penso, logo existo", mas, mais dramaticamente
— e aqui deixamos o texto em francês —, "Je pense où je ne suis pas, je
suis où je ne pense pas", frase em que a palavra où, com seu acento grave,
passa a significar advérbio de lugar — onde — e não a alternativa ou, do famoso
"Ser ou não ser". O que traduz, em outros termos, a ruptura, o corte,
a separação que corta cada um de nós entre essas duas instâncias, radicalmente
estrangeiras uma a outra, mas influenciando-se mutuamente, que são o
"consciente" e o "inconsciente".
E percebemos assim as
convergências, os encontros passíveis de serem anotados entre o pensamento de
Freud, Lacan e o de outros mestres das ciências humanas, Lévi-Strauss ou Michel
Foucault, que também anunciam o fim do homem, a morte do homem — pelo menos no
mundo ocidental —, do "eu" cartesiano.
Mas não prolonguemos
demasiadamente as considerações filosóficas que o próprio Lacan negligencia,
ainda que elas alimentem há dez anos as mais vivas reflexões francesas.
Voltemos, antes, a essa existência em parte clownesca e infatuada, de outra. E
é a única que nos interessa reter, genial, patética e heróica. Pois que, se a
genialidade de Lacan é desde já irreversível, se ele já pertence à história da
cultura, ainda que só por causa das rupturas, das descobertas que o seu
discurso obscuro e soberbo causou nas gerações de homens de 20 a 40 anos, foi
ao preço de um trabalho desesperado, de um combate mortal que Lacan o fez.
Já quase no fim da vida,
esse incorrigível viajante quis ir ainda mais longe em sua formalização. O
modelo linguístico não mais lhe parecia suficientemente sutil ou rigoroso para
dar conta dos meandros do discurso do inconsciente, e ele passou a formalizar o
inconsciente segundo o modelo matemático. Lacan já estava velho, e sobretudo
cansado. Seus seminários eram dados cada vez com mais dificuldade. Continuavam
sendo seguidos por um núcleo de fiéis, mas nada que se comparasse às multidões
extasiadas dos anos 70.
Não assisti a nenhum
deles, mas ouvi repercussões. Agora, Lacan subia ao estrado, desenhava em um
quadro-negro gráficos, fórmulas matemáticas de uma aridez cada vez mais
austera. Já não falava quase, ficava por muito tempo parado diante dos seus
gráficos como que paralisado ou fulminado, tentando avançar, compreender as
suas próprias fórmulas, e às vezes — nem sempre — o discurso renascia, soberbo
como antes — e depois ele tornava a se calar.
Às vezes, segundo me
disseram, durante toda uma longa sessão sequer uma palavra era dita.
Além disso, ele levava
sempre nos bolsos cordões de cores diferentes, com os quais montava modelos
matemáticos que deveriam reproduzir a topologia do discurso do inconsciente.
Mas também com os cordões ele se embaraçava — e uma vez, até, segundo me contou
um dos seus mais fiéis adeptos, em um dos últimos seminários que realizou, até
com os gráficos ele se atrapalhou, não sabia mais o que pretendia, e lá ficou,
mudo, vencido, desfeito. A reação dos seus alunos, espontânea, comovida, foi
assegurar-lhe: "Nós o amamos, o amamos muito".
Lacan: talvez, realmente,
um homem cheio de traços contestáveis. De um orgulho provavelmente exagerado,
como sua violência e seu gosto pelas disputas — mas o gênio é sempre exigente,
o gênio é um devorador. E, de qualquer modo, o que desejaríamos guardar disso
tudo, no momento em que a sua imensa voz, às vezes balbuciante, se calou para
sempre, é a imagem de um velho frágil, que perdeu toda a soberba, parado diante
de um quadro-negro com seus cordões coloridos, como uma criança que esqueceu a
resposta. Um velho imperador, não decaído, porque ninguém foi mais longe do que
ele — mas vencido pelo seu próprio gênio, a quem tudo o que os alunos
encontraram para dizer, no fim, foi que o amavam.
FONTE: Site da IPLA
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