"A Clínica" Psicanalítica,
fragmento do texto de Marcio Peter de Souza Leite
...
Existem várias maneiras de
se abordar a clínica. Uma são os casos clínicos de Freud; outras seriam os
escritos técnicos, que na verdade são teorizações, indicando que a oposição
“teoria e técnica” merece sempre uma ressalva. A tradição de Freud é propor a
clínica psicanalítica como a clínica do particular. Por isso, não se poderá
extrapolar a estrutura psíquica de um paciente independentemente da situação em
que ela foi investigada, porque o analista participa do campo em sua
investigação.
Então, ao propor-se o
estudo de um caso clínico, o que estaria se fazendo, seria o estudo do vínculo
analítico em que o analista está envolvido.
Uma outra possibilidade de
refletir-se sobre os procedimentos do analista, seria pela procura de
invariantes das ações, atitudes e posturas que ele toma na situação analítica,
verificando-se a constância de algumas ações, independentemente das
particularidades do caso, o que Lacan fez num texto de 1956, que se chama
“Direção do tratamento e os princípios do seu poder”.
Outra questão que se impõe
quando se fala da atividade do analista é quanto à sugestão, feita por Freud,
de que a psicanálise é uma arte, sendo que é arte o que não é técnica, é arte o
que supera a técnica. A técnica seria o estabelecimento de procedimentos
únicos, invariáveis, que seriam eficazes em qualquer tipo de situação. É o que
não existe na psicanálise. O analista deve ter um saber sobre os seus
procedimentos, mas de maneira alguma deve utilizá-los de maneira mecânica:
precisa adequá-los à particularidade de cada caso.
No horizonte de Lacan,
como interlocutor epistemológico esteve Karl Popper, que estabeleceu os
“critérios de cientificidade”, segundo os quais uma prática, para ser
científica, deveria obedecer-lhes. Seria inviável a psicanálise obedecer a
esses critérios, pois a prática analítica não é falsificável, o que contradiz o
critério de cientificidade fundamental.
O resultado de uma análise
depende da subjetivação que o paciente fez dela, não havendo meios de
objetivá-la. Nesse sentido, os métodos estatísticos ou outros métodos usados
nas ciências exatas seriam incompatíveis com a prática analítica.
Por isso, Lacan dirá que a
psicanálise é uma retórica, ou seja, uma combinatória de formas de se usar a
linguagem. Lacan afirmou que cada analista teria que reinventar a psicanálise e
dar conta da própria descoberta. Freud, propunha a prática da psicanálise como
um jogo de xadrez, em que pode-se ter uma convenção das aberturas e finais, mas
o meio do jogo é impossível de ser codificado. Embora haja regras precisas do
que se deve fazer, dependeria da criatividade de cada jogador superar esses
programas e ultrapassar a possibilidade de ser um jogador unicamente mecânico.
Para pensar o que o
analista faz, Freud usou a analogia da tangente, que é uma reta que se aproxima
de um círculo mas nunca o toca, apenas tende a se aproximar dele. Com esse
recurso, Freud tentava definir a prática analítica, na medida em que haveria
uma certa impossibilidade de se concretizar o que ela realmente faz, e preferiu
a via negativa, dizendo o que ela não faz.
Respondendo à pergunta
sobre o que o analista faz, Lacan disse: “Dirige o tratamento”. O que o analista
faz é estabelecer e administrar um vínculo discursivo, diferente do usual. O
vínculo psicanalítico é um vínculo social inventado por Freud. Uma pessoa
procura o analista porque supõe nele um saber, paga por isso e não recebe
necessariamente uma resposta.
Ao vínculo social, Lacan
chamou de discurso, o que na teoria lacaniana é passível de ser representado na
sua estrutura. Segundo Lacan, a estrutura dos discursos supõe um agente, que é
o que dentro de um vínculo social parte de alguém em direção ao Outro. Então,
todo vínculo social também supõe sempre o Outro.
Na situação analítica, que
é uma situação a dois, um dito parte do agente e se situa numa dimensão de
verdade atribuída ao Outro, o que condiciona uma “produção”.
Em qualquer situação de vinculação
humana há sempre um sujeito que discursivamente age no outro ao se sustentar
numa verdade, e a ação de um no Outro terá como efeito a produção de saber ou
verdade etc.
......
Neste discurso – o discurso
do analista - o objeto causa do desejo está no lugar de agente. Esse discurso
indica o que o analista faz, pois a função do analista é estabelecer um tipo de
vínculo onde ele está no lugar de agente como semblante do objeto a.
A finalidade da análise é
produzir S1, é fazer o sujeito produzir sua “verdade” por ele mesmo. Esse
discurso é o contrário do discurso do mestre. O discurso analítico se instalará
quando o objeto causa do desejo estiver no lugar de agente, condicionando como
produção uma verdade sobre o sujeito.
A única maneira de o
analista instalar o discurso analítico, de dirigir a cura, é não dirigir o
paciente. Ele não dá conselhos, pois os conselhos o colocariam do lado do
mestre e essa é a posição do psicoterapeuta, que supõe que sabe o que falta ao
outro.
Dentro dos conselhos
técnicos, Freud alertou para esse ponto exigindo a neutralidade do analista.
Para ele, o analista deve deixar em suspenso seus próprios valores, sua
verdade, sua experiência, para poder investigar a do outro.
Um outro procedimento para
o analista instalar o discurso analítico é fazer o sujeito aplicar a regra
fundamental da associação livre. O analista, ao não identificar a sua verdade
com a do paciente, encontra essa verdade no próprio paciente.
A psicanálise usa o método
da associação livre para descobrir a verdade do paciente, e pede a ele que diga
tudo o que lhe passar pela cabeça, sem que faça nenhum tipo de censura. Sem
esse método de investigação seria impossível haver psicanálise e não haveria
discurso analítico.
Para uma maior eficácia
nesta investigação, utiliza-se de variáveis técnicas, que são uma questão de
estilo, de convenção; o divã, por exemplo. Freud dizia que usava o divã por uma
questão de preferência pessoal, pois não conseguia atender dez pacientes
seguidos olhando para eles todo o tempo. Freud também percebeu que, para
facilitar a obediência à regra fundamental, deveria sair do campo escópico do
paciente, pois suas reações certamente influiriam na concatenação de ideias do
analisante.
Se o paciente observar o
analista, a associação não será tão livre assim, porque qualquer reação do
analista pode, inconscientemente, significar algo para esse paciente e produzir
uma modificação em seu curso associativo. A técnica da exclusão do analista do
campo visual do paciente é uma forma de tornar mais pura a investigação, e de
aproximar-se a uma condição em que o único estímulo para a associação livre
seja o próprio psiquismo do paciente.
Há conselhos técnicos que são
seguidos com certo exagero em determinadas comunidades analíticas. Algumas têm
por consenso que o consultório do analista deve ser impessoal, que o analista
deve trajar-se discretamente e, de preferência, de um modo formal, com
vestimentas que despersonalizem, com o objetivo de poder transformá-lo num
objeto sem significações.
Cada analista lidará com
essas variáveis de acordo com o modelo da própria análise, visando estabelecer
o discurso analítico. Certos analistas, por mais que mimetizem a prática
analítica de Lacan, nunca a produzem; por outro lado, outros, mesmo tendo
características particulares bastante evidenciadas, possibilitarão o discurso
analítico com facilidade.
A frequência das sessões
também poderia entrar nessas considerações, pois constitui uma das formas de o
analista manter o discurso analítico. De qualquer forma, a priori, não há por
que um número de sessões deva ser preestabelecido. Freud o fazia porque um de
seus critérios técnicos rezava que a análise só seria análise quando houvesse
transferência, e uma forma de consegui-la com maior eficácia era transformando
o analista em “resto diurno”. Freud afirmava que quanto maior a frequência das
sessões mais facilmente o analista se instalava como resto diurno. É evidente
que, estando presente na vida do paciente diariamente, o analista passaria a
ser um resto diurno privilegiado.
Porém, cada analista
saberá encontrar o ritmo que tiver a ver com a sua pessoa, com o seu estilo,
com a sua forma de produzir a eficácia desse método, sem necessariamente
recorrer a padronizações exteriores à sua própria escolha.
FONTE: site www.marciopeter.com.br/
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