Modernidade Triste?
No século 4 da nossa era, nos mosteiros da Europa, a tristeza,
"accidia" em latim, era considerada pecado grave, e as regras
monásticas se esforçavam para identificá-la e combatê-la. Mesmo assim, muitos
monges continuavam tristes.
A Europa era uma desolação. Das janelas de seus oásis de
(relativa) tranquilidade, os monges podiam enxergar o horror. A cultura
clássica, grega e romana, era esquecida --ignorada pela imensa maioria de
iletrados ou perdida no descaso pelos manuscritos antigos. O desabamento do
Império Romano transformara o território em uma terra de ninguém, em que o
poder ficava com as hordas de mercenários e bandidos ocasionais. Suficiente
para qualquer um ficar triste.
Mas talvez haja uma razão menos contingente para a tristeza
aparecer como uma nova aflição, bem na hora em que a cultura clássica deixava
seu lugar ao cristianismo. É irônico, aliás, que a dita tristeza ameaçasse logo
os monges, que eram guardiões dos textos gregos e romanos que sobravam, mas que
também praticavam o palimpsesto -- a arte de apagar os manuscritos antigos para
usar os pergaminhos novamente, copiando os textos da nova religião.
Note-se também que, desde a acídia dos monges, a tristeza parece
ter se tornado um traço distintivo da cultura ocidental e, especificamente, da
modernidade, do "spleen" romântico até a depressão clínica, hoje
diagnosticada a esmo. Por que, então, seríamos culturalmente tristes?
Naquele momento, no século 4, morria uma cultura para a qual o que
importava era viver o momento, e nascia outra, para a qual nossa vida era apenas
uma provação, pela qual ganharíamos ou perderíamos a chance de uma suposta
eternidade feliz.
Desde então, é como se a vida que importa nunca mais fosse a que
estamos vivendo; o pátio de casa não basta, somos infelizes e insatisfeitos
porque a vida "verdadeira" nos espera lá onde ainda não chegamos.
A cultura clássica, que morria, tinha valorizado um estilo de vida
norteado por um uso discreto e constante dos deleites da mente e da carne. A
cultura cristã, que nascia, apontava no prazer um parente do vício e valorizava
o sacrifício e a renúncia, como se Deus tivesse um apreço por nosso sofrimento.
Não sei por que Deus reconheceria algum mérito nas renúncias da
gente.
Freud responderia, provavelmente, que esta é a função social da
religião: controlar nossos impulsos, impondo as renúncias que são necessárias
para que a convivência social se torne possível. Muitos iluministas pensaram a
mesma coisa.
Graças ao cristianismo, ao considerar castigos e recompensas na
eternidade, nós nos tornaríamos governáveis -- sem medo do além, não haveria
convívio possível (o paradoxo aqui é que essa consideração não inibiu a própria
Igreja, que durante séculos e séculos foi uma instituição de crueldade
inaudita).
A cultura clássica (Epicuro, por exemplo) preferia tratar os
humanos como adultos e apostar que eles se disciplinariam sem ter que acreditar
em um além e sem precisar de um mercado de punições e prêmios eternos: a
consciência da finitude da vida seria suficiente para torná-los comedidos e
dignos.
Em um jantar na casa de Thérèse Parisot, em dezembro de 1970 (sei
a data pois a conversa foi sobre as condenações dos processos de Burgos), Jacques
Lacan, o psicanalista francês, chegou com um pequeno volume in-octavo. Era um
panfleto anônimo, segundo o qual o verdadeiro messias não era Cristo, mas
Epicuro (peço que se manifestem os bibliófilos que reconhecerem o livro).
Certamente, a obra era a provocação de um libertino dos séculos 17 ou 18.
Mas a questão continua valendo: será que uma modernidade seria
possível sem a desvalorização do momento presente e sem a repulsa ao prazer que
são partes da mensagem cristã e que talvez sejam a fonte de nossa tristeza
crônica?
Qual modernidade seria possível com Epicuro, e não contra ele?
Somos modernos graças ao cristianismo ou somos modernos graças ao materialismo
e à disciplina dos prazeres que atravessaram a modernidade perseguidos e
silenciados pelo cristianismo?
Para inventar uma resposta, um livro imperdível: dos ensaios que
li nos últimos 15 anos, nenhum me prendeu e me tocou tanto quanto "A
Virada, o Nascimento do Mundo Moderno", de Stephen Greenblatt.
Contardo Calligaris
Jornal Folha de São Paulo
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