Escrita e Invenção
Doris
Rinaldi
O
poeta Manoel de Barros, em seu livro de memórias sobre a infância, intitulado Memórias
Inventadas, abre o trabalho com a seguinte afirmação:“Tudo o que não invento é falso”.[1] Outro
poeta, Ferreira Gullar, em recente entrevista, diz: “Um poema é uma invenção.
Ele não existe antes de ser feito. Pode até sair outro... Poesia é uma aventura
para captar coisas que não existem. Não está formulada. Ela não é nada. Ela é
uma vontade, uma possibilidade. Só quando começa a escrever é que ganha forma”.[2]
Iniciar
um trabalho sobre o tema da escrita convocando os poetas, quando a perspectiva
adotada é a psicanalítica, vem reafirmar a posição sustentada tanto por Freud
quanto por Lacan de que, diante da arte, estamos na condição de aprendizes, ou
seja, o artista sempre precede o psicanalista e lhe abre os caminhos. Frente ao
enigma da feminilidade, Freud sugeriu que consultássemos os poetas....[3].
Ainda
que a psicanálise funde sua práxis na suposição de que o inconsciente é um saber
falado, o interesse pela escrita está presente desde cedo na obra
freudiana, quando aconselha que o sonho seja lido como uma “escritura
sagrada” ou como um rébus a ser
decifrado, devendo ser tomado ao pé da letra, o que pressupõe que o
inconsciente deve ser pensado como um sistema de inscrições.
Lacan,
por sua vez, desde o Seminário sobre A “Carta Roubada” [4],
em que analisa o conto de Edgar Allan Poe, assim como do escrito “A instância
da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” [5],
ambos da década de 50 do século passado, destaca o valor da escrita, em
particular da letra, ao caracterizar o inconsciente a partir de sua
estrutura de linguagem. Nesses textos privilegia a função do significante,
concebendo a letra como seu suporte material ou como significante puro. Vinte anos depois irá
aproximá-la cada vez mais do registro do Real, como o faz na lição de 13/01/76
do Seminário sobre Joyce, ao dizer que a escrita o interessa porque,
“historicamente, foi por pequenos pedaços de escrita que se penetrou no real, a
saber, que se cessou de imaginar. A escrita de letrinhas, letrinhas matemáticas,
é isso que sustenta o real”. [6]
O
ponto de partida da psicanálise é que a linguagem é habitada por aquele que
fala, onde os significantes, que se modulam na voz, articulam-se uns aos outros,
nos ditos e nos dizeres. Ao convidar o ser falante a dizer o que lhe vier à
cabeça, a prática analítica abre espaço para emergência do sujeito, como efeito
do discurso, através de um dizer verdadeiro que é sempre parcial e contingente.
O dizer baseia-se na palavra e esta comporta uma dimensão imaginária, pois a
fala tem função de significação; o escrito, ao contrário, dispensa esta
dimensão, não exigindo necessariamente compreensão, como evidencia a escrita
poética.
“Uso
as palavras para compor meus silêncios.
Não
gosto das palavras
Fatigadas
de informar.
Dou
mais respeito
às que
vivem de barriga no chão
tipo
água pedra sapo.....”
A
experiência analítica desenvolve-se através da palavra falada: se as palavras
não são ditas, não basta escrevê-las; a dimensão da escrita, entretanto, já
está aí colocada, pois é na medida em que o dizer se escreve que podemos supor
a dimensão do saber inconsciente.
Lacan
aborda a função da escrita no inconsciente e na constituição do sujeito a
partir do traço unário, neologismo que constrói com base na noção de traço
único (einziger Zug) formulada por Freud na teoria da identificação.[8]
Ele retoma essa noção, dando-lhe um caráter estrutural, como marca primeira que
inaugura o sujeito. Essa marca inscreve uma diferença a
partir da qual o sujeito insere-se em uma série simbólica. Como letra, ao mesmo tempo em que representa
o sujeito no seu nascedouro, possibilitando uma identificação simbólica, traz a
memória de um gozo perdido, que inaugura o processo de repetição característico
do movimento inconsciente. Há, portanto, algo da ordem de uma escrita
primordial que marca o sujeito na sua singularidade, onde se articulam letra e gozo. O significante é uma invenção a partir de alguma coisa que já
está lá para ser lida. Não se trata, portanto, na experiência analítica,
apenas de escuta, mas do que se lê no que se escuta. Poderíamos dizer que se
trata de uma releitura, já que a própria fala do sujeito, seus sonhos, sintomas
e fantasias são da ordem de uma primeira leitura das marcas primordiais que
recebeu do Outro, ao fazê-las suas.
Alguns
elementos da história do advento da escrita ajudam a pensar a função do traço
unário como escrita primordial que funda o sujeito. É o que Lacan nos traz
no Seminário IX, A identificação[9],
quando chama a atenção para o fato de que, mesmo admitindo-se que o homem, desde que é homem, tem uma missão vocal como
falante, há uma série de traços e traçados encontrados em material
pré-histórico que são marcas significantes que poderíamos chamar de letras.
Os ideogramas apresentam algo muito próximo de uma imagem, mas que se torna
ideograma na medida em que se apaga cada vez mais o caráter de imagem. A
escrita cuneiforme nasce assim. São traços que saem de algo figurativo, mas um
figurativo apagado, recalcado ou mesmo rejeitado. O que fica é da ordem do traço
unário, que funciona como distintivo, como marca.
Alguns
estudos indicam que os significantes da escrita foram primeiramente produzidos
como marcas distintivas, bem antes do nascimento
dos caracteres hieróglifos. Na cerâmica da indústria pré-dinástica encontram-se
quase todas as formas que foram utilizadas em seguida na evolução histórica,
nos alfabetos grego, latino, fenício. A escrita como conjunto de marcas, como
indica Lacan, “esperava para ser fonetizada, e é na medida em que ela é
vocalizada, fonetizada como outros objetos, que a escrita aprende, se posso
dizer assim, a funcionar como escrita”.[10]
Há,
portanto, um tempo demarcado historicamente em que há algo para ser lido com a
linguagem quando ainda não há escrita. É pela inversão dessa relação de leitura
do signo que pode nascer, em seguida, a escrita, uma vez que ela serve para
conotar a fonematização.
O que
é importante assinalar nesse processo é que essas marcas são sempre marcas
apagadas, rasuradas, que se transformam em escrita na medida em que são
apropriadas pela linguagem, evidenciando algo de radical no enlaçamento da
linguagem com o real. O que representa o advento da escrita é que alguma coisa
que já é escrita, como traço, ao ser nomeada pela fala, pode servir de suporte
à própria escrita. O sujeito, a propósito de algo que é marca, já lê antes de
se tratar dos sinais da escrita e associa essas marcas a pedaços recortados de
sua fala. São eles que, numa inversão, servirão em seguida como suporte
fonético.
Na
constituição do sujeito, o traço unário tem essa função de bastão, como traço
distintivo, tanto mais distintivo quanto mais está apagado, pois é na medida em
que se reduz ao traço sem qualidades, isto é, quanto mais ele é semelhante,
puro bastão, mais ele funciona como suporte da diferença. É isso que introduz
no real do ser falante a diferença como tal, já que no real não há nada. Se o
traço apaga a Coisa (das Ding), dela restando apenas rastros de gozo, a
passagem ao significante se dá a partir dos diversos apagamentos que farão
surgir o sujeito em seus diferentes modos de manifestação. O traço unário é
significante, portanto, não de uma presença, mas de uma ausência apagada que, a
cada volta, a cada repetição, presentifica-se como ausência. É aí que se
localiza o ponto radical, arcaico, suposto na origem do inconsciente. Ao
supormos que o inconsciente é o lugar do sujeito onde isso fala, nos aproximamos desse ponto onde alguma coisa, à revelia
do sujeito, é remanejada pelos efeitos de retroação significante, implicados na
fala.
O
significante é uma invenção a partir dessa marca apagada, assim como o saber,
na medida em que inventamos sempre alguma coisa para contornar o nada do real.
O mundo é uma hipótese, onde o sujeito reinventa-se continuamente, e ninguém
melhor do que os escritores – especialmente os poetas - para trazerem isso à
tona, a partir de seu savoir-faire com a língua. Eles evidenciam essa
função da letra como aquilo que
desenha a borda do furo do saber, como um litoral entre simbólico e real.
Lembrando
Ferreira Gullar, citado na introdução desse trabalho,
"Um
poema é uma invenção. Ele não existe antes de ser feito. Pode até sair outro...
ou Manoel de Barros, quando diz: "Uso as palavras para compor meus
silêncios".
A
escrita, portanto, não é impressão, decalque do significante. O que ela decalca
são, como diz Lacan em “Lituraterra”, "os efeitos de língua, o que [do
significante] se forja por quem a fala".[11] A
letra, nesse sentido, ainda que sirva de apoio ao significante, não deve
ser pensada como primária em relação a ele, mas antes como conseqüência do fato
da linguagem ser habitada por quem fala. No campo do significante estamos, contudo,
na dimensão do semblante, isto é, do "parecer", da ficção, em cujo
ponto de ruptura, ou de transbordamento, emerge o real. Nesse lugar a
psicanálise evoca o gozo.
Entre
o saber e o gozo, a letra faz litoral que, como ponto de virada sempre
buscado no movimento de repetição que constitui o inconsciente, transforma-se
em literal. O traço unário, herança
do Outro, situa-se exatamente aí, como um sulco que a linguagem faz no real do
ser falante e é, ao mesmo tempo, de seu apagamento e de sua repetição que nasce
o sujeito como uma invenção a ser sustentada permanentemente. É nesse movimento
que constituirá sua verdade, sempre fictícia, sempre marcada pela parcialidade,
mas que determinará a sua diferença. Como nos diz o poeta Manoel de Barros:
"Tudo o que não invento é falso".
A
escrita cava sulcos no real, ao apropriar-se dos efeitos do significante
recortando pedaços de real, através da letra. Por isso Freud afirma que o
sonho, como via régia de acesso ao inconsciente, deve ser tomado como uma
escritura sagrada, pois é em sua letra que se pode apreender a dimensão real,
enigmática do inconsciente, o umbigo de onde nasce o desejo, e, ao mesmo tempo,
as vias significantes por onde ele caminha.
É o
que também nos leva a sustentar que a literatura, como “acomodação de restos”[12],
ensina à psicanálise, pois ao recortar esses restos e transmiti-los pela
escrita, ela revela algo dessa dimensão fundadora do inconsciente humano. Como nos
ensina mais uma vez Manoel de Barros, quando diz:
“Sou um apanhador de
desperdícios:
Amo os restos
Como as boas moscas.
Queria que a minha voz
tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da
informática: eu sou da invencionática.
Foi o que fascinou Lacan na escrita de Joyce,
levando-o a dedicar um seminário inteiro ao escritor irlandês. Em conferência
proferida na Universidade de Yale (24/11/75), afirmou que se interessava mais
pela letra do que pela literatura e que Joyce o fascinou justamente
porque tentou ir além da literatura, quebrando palavras e segmentando frases,
numa tentativa de dissolver a própria linguagem.
Na experiência analítica estamos necessariamente no
campo da linguagem e da palavra falada. Se esta dá notícias de inscrições
apagadas, retomadas a cada volta no processo de invenção do sujeito que o
percurso de uma análise reinventa, é nesse movimento mesmo de falar que algo se
escreve, fazendo surgir a letra como
litoral de gozo, na composição de uma escrita em que nada mais há a fazer para
decifrá-la.
Referências Bibliográficas:
BARROS, M. Memórias
Inventadas - A Infância, São Paulo, Planeta, 2003.
FREUD, S. “Psicologia de grupo e análise do eu” (1921) in Obras
Psicológicas Completas, Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago
Editora,1980
_______ Conferência XXXIII “Feminilidade”(1933) Novas
Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise in Obras Psicológicas Completas, Edição Standard Brasileira: Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1980.
GULLAR, F. Entrevista in
Jornal O Globo de 12/08/2006.
LACAN, J. “O seminário sobre “A carta roubada”” (1955) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor.1998.
__________. “A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud” (1957) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.1998.
LACAN, J. A
identificação: Seminário 1961-1962, Recife Centro de Estudos Freudianos do
Recife, 2003. (publicação para circulação interna).
_______ Le séminaire, Livre 23, Le Sinthome, Paris, Editions du Seuil, 2005.
___________ “Lituraterra”(1971), in Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2003.
[1] Barros,
M. Memórias Inventadas - A Infância,
São Paulo, Planeta, 2003.
[2] Gullar, F. in Jornal
O Globo, 12/08/2006.
[3] Ver
Freud, S. Conferência XXXIII “Feminilidade”(1933) Novas Conferências
Introdutórias sobre a Psicanálise in Obras
Psicológicas Completas, Edição Standard Brasileira: Rio de Janeiro, Imago
Editora, 1980. p.165.
[4] Lacan,
J. “O seminário sobre “A carta roubada”” (1955) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.1998.
[5] Lacan,
J. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor.1998.
[6] Lacan,
J. Le séminaire, Livre 23, Le Sinthome, Paris, Editions du Seuil, 2005.
[7] Barros,
M. “O apanhador de desperdícios” in op.cit.
[8] Freud,
S. “Psicologia de grupo e análise do eu” (1921) in Op. Cit.
[9] Lacan,
J. A identificação: Seminário 1961-1962, Recife Centro de Estudos Freudianos do
Recife, 2003. (publicação para circulação interna).
[10] Ibidem,
p.93.
[11] Lacan,
J. “Lituraterra”(1971), in Outros
Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.
[12] Ibidem,
p.16.
[13] Ibidem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário