Entrevista feita pelo jornal francês Le Point ao
psicanalista Jacques-Alain Miller por ocasião do lançamento da versão
estabelecida por ele de O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação de Jacques Lacan. Questões sobre a
distância entre o desejo e a biologia, a ordem e a normalização social são
discutidas. O desejo, do qual Lacan foi um professor, não se limita ao Édipo.
Disso decorre, aponta Miller, o elogio da perversão que, no sentido de Lacan,
traduz uma rebelião contra a identificação conformista que assegura a
manutenção da rotina social. Além da entrevista, o texto apresenta com
exclusividade trechos de um Seminário inédito sobre o assunto.
Lacan,
professor de desejo
Jacques-Alain Miller
Um
duende travesso que nos prega peças: este é o desejo, segundo Jacques Lacan. Le
Point apresenta com exclusividade trechos de um Seminário inédito sobre o assunto.
Estabelecido por seu redator, o psicanalista Jacques-Alain Miller. Entrevista
realizada por Christophe Labbe e Olivia Recasens.
Le Point: Lacan nos disse que o desejo não é
uma função biológica. O que devemos deduzir disso?
Jacques-Alain Miller: Que você não encontra o desejo já pré-formado
no organismo. Ele não é um instinto, se com isso entendemos um saber infalível
inscrito no real do corpo e que o conduziria direto ao objetivo: seu bem-estar,
sua vida, a sobrevivência da espécie. Muito pelo contrário, o desejo se
extravia. Este é um traço que constantemente reconhecemos nele. Desde sempre se
deplorou e se censurou suas aberrações, suas extravagâncias, suas errâncias. Tentou-se
de tudo para educá-lo, regulá-lo, dominá-lo, mas em vão: ele só faz o que lhe
dá na cabeça. Disso resulta a ideia de que o desejo não decorre da natureza:
ele se deve à linguagem. É um fato de cultura, ou, mais exatamente, um efeito
do simbólico. Lacan fala da “ordem simbólica”.
Como falar de ordem
quando o desejo faz, de preferência, desordem?
De
fato. E vimos, muito recentemente, a noção de ordem simbólica angariar adeptos
entre os opositores ao casamento gay. Todavia, a distribuição de cartas está
errada. A ordem simbólica designa um conjunto de leis – leis linguísticas, dialéticas,
matemáticas, sociológicas -, mas o complexo de Édipo não faz parte dele. Lacan
sempre qualificou o Édipo de mito. E, em suma, isso foi bastante generoso, pois
as versões triviais dadas dele estão mais próximas do espetáculo de variedades
do que da tragédia grega, do tipo: é preciso que papai imponha a lei à mamãe
para que a filha e o filho sejam o que devem ser. Lacan previa que esse programa
não ficaria muito mais tempo em cartaz e é bem a isso que assistimos.
No
entanto, Lacan fala de “estrutura edipiana”…
Sim, isso não é um mito
nem o casting de um espetáculo de marionetes. É uma combinatória distribuindo
termos nos lugares aos quais se ligam funções. Mas não é de modo algum necessariamente
o Nome-do-Pai que ocupa a posição mestra, aquela que sustenta o mundo, a pedra
angular. Isso pode muito bem ser um sintoma! E, quando este é o caso, mesmo que
o sujeito queira dele se desembaraçar porque isso o incomoda, o terapeuta deve
se preservar de tocá-lo, senão tudo desmoronaria. O desejo é em primeiro lugar
o efeito da estrutura da linguagem. O desejo só é concebível entre os seres
falantes. Podemos explicá-lo assim: na espécie humana, o filhote não pode
satisfazer sozinho suas necessidades mais elementares, ele deve passar por um
Outro, com letra maiúscula, capaz de satisfazê-las e, para tanto, deve falar sua
linguagem, endereçar-lhe uma demanda. Tudo decorre disso. Esse apelo faz do
Outro um objeto de amor.
Simultaneamente, a transposição da necessidade em demanda produz uma decalagem:
é aqui que se aloja o desejo. Ele corre sob tudo o que você diz, inclusive nos
seus sonhos, sem poder ser dito às claras. Por essa razão, ele dá matéria à
interpretação.
O objeto do desejo é,
então, forçosamente inapreensível?
O
desejo não está coordenado a um objeto natural ou social. Seu objeto não se
encontra na realidade comum, mas na fantasia individual. Como tal, não é um
objeto do qual se precisa e não se pode obtê-lo pela demanda. É, antes, um objeto
que, se assim posso dizer, o deixa de boca aberta. Num tratamento analítico,
constatamos que a confissão da fantasia é com frequência o mais difícil. A
relação do sujeito do conhecimento com o objeto do conhecimento é tradicionalmente
descrita como harmoniosa e complementar. No registro do desejo, a relação do
sujeito com o objeto é completamente diferente. Lacan mostra que o aparecimento
do objeto do desejo se marca, do lado do sujeito, por um fading: o sujeito não
consegue se manter, ele evapora, desaparece. É nisso que ele passa ao
inconsciente.
Como as sociedades
podem se manter de pé se cada um for obcecado por sua fantasia particular ?
Precisamente
por ser labiríntico e divagar, o desejo suscita, em contrapartida, a invenção
de diversos artifícios desempenhando o papel de bússola. Considerem uma espécie
animal: ela tem uma bússola natural, que é única. Na espécie humana, as
bússolas são múltiplas, concorrentes, evolutivas. Elas não são instituídas pela
natureza, são artifícios, montagens significantes, o que Lacan chama de
discursos. Esses discursos dizem o que é preciso fazer: como pensar, como
gozar, como se reproduzir. Entre esses discursos, há alguns de grande amplidão
e de muito longa duração: as civilizações, as religiões. Eles organizam a
cidade, suas produções, as crenças. Numa outra escala, cada família tem seu
discurso: um sistema de valores, uma visão do mundo, um estilo de conflitos,
etc. Todavia, a fantasia de cada um permanece irredutível aos ideais veiculados
pelos discursos.
Qual norte indicam
essas bússolas?
Até
recentemente, todas indicavam o mesmo norte: o Pai. As civilizações, as
religiões, as sociedades eram patriarcais. O patriarcado, como forma de
organização social, parecia ser uma invariante antropológica. O declínio do
discurso patriarcal acelerou-se com a igualdade de condições, a ascensão do
poder do capitalismo, a revolução industrial. Balzac o assinala em meados do
século XIX, Hannah Arendt na metade do século XX: a autoridade declina, a
autoridade não é mais uma via que satisfaz a humanidade. O próprio de Gaulle,
figura autoritária, caso houvesse uma, queria inaugurar a era da
“participação”.
Isso significa dizer
que saímos da idade do Pai?
Um
outro discurso está em via de suplantar o discurso único de outrora. A inovação
no lugar da tradição. A atração do futuro, ali onde o peso do passado
acorrentava. Mais do que a hierarquia (vertical), a rede (horizontal), o
feminino passando à frente do viril. Não se conserva mais uma ordem em seus
limites imutáveis; as pessoas se inscrevem em fluxos transformacionais
repelindo incessantemente seus limites.
E o Édipo freudiano em
tudo isso?
Freud
é, sem dúvida alguma, da idade do Pai. Ele muito fez para salvar o Pai. A
Igreja, por fim, acabou se dando conta disso e deixa seus teólogos mais
avançados celebrá-lo. Lacan seguiu a via aberta por Freud, mas ela o conduziu a
outro lugar. A experiência analítica mostra que o próprio Pai é um sintoma. O
desejo do Pai, o desejo pelo Pai se deixa interpretar. Neste livro, Lacan o
mostra, valendo-se do exemplo de Hamlet, de Shakespeare. O príncipe Hamlet é encostado
à parede pelo fantasma do Pai. A fala do Pai o torna literalmente doente, o
enlouquece, ela é seu sintoma. O desejo de Hamlet, cativo do Pai, acaba por se
emancipar dele, mas ao preço da morte. Este Seminário é a um só tempo um grande
livro de teoria e um grande livro clínico. Lacan dá também uma clínica inédita
do exibicionismo e do voyeurismo. Compreende-se em quê todo desejo tem um
núcleo perverso.
O Seminário termina,
inclusive, com um enaltecimento da perversão!
O
que comumente se reteve de Lacan foi sua ênfase no Édipo, o destaque dado à
função do “Nome-do-Pai”, e a colocação em fórmulas da montagem freudiana. Esse
foi o ponto de partida de Lacan. Mas, desde seu Seminário VI, o conceito de
desejo desloca as coisas. O Édipo não é a solução única do desejo, é apenas e
também sua forma “normal”, normalizada, sua prisão. O Édipo também é patógeno.
O destino do desejo não limita o Édipo. Disso decorre o elogio da perversão que
termina o volume. A perversão, no sentido de Lacan, traduz uma rebelião contra
a identificação conformista que assegura a manutenção da rotina social. Uma vez
que, segundo Freud, a pulsão pode perfeitamente se satisfazer na sublimação, ou
seja, nas atividades ditas culturais, ela não se confunde com a “substância da
relação sexual”. Esvaziada do gozo sexual, a pulsão subsiste como forma
cultural, na qual flui o gozo da letra propiciado pela arte e pela literatura.
Lacan anunciava “o
remanejamento dos conformismos anteriormente instaurados e até mesmo sua
explosão”. Chegamos aí?
Este
Seminário fala de 2013. Os partidários do Pai desfilam nas ruas em nome da
tradição, ao passo que os do “Vovozão” (Pépère) pretendem criar normas que substituam essa
tradição. O psicanalista não tem vocação de se fazer o guardião da ordem
antiga, o cavaleiro de uma causa perdida. Ele também não pode crer nos amanhãs
que cantam: a via do desejo não é uma partida de prazer. Portanto, ele interpreta.
Se ele deve escolher, a escolha é forçada. Pois todo voltar para trás é impossível.
Trechos de O
Seminário, livro 6: o desejo e sua Interpretação
“O desejo contra a
normalização social”
“O
que eu designo com a palavra cultura – palavra de que gosto muito pouco, e
mesmo de modo algum -, é uma determinada história do sujeito em sua relação com
o logos. Indubitavelmente, na época em que vivemos, é difícil não ver a que
distância de uma certa inércia social a relação com o logos se situa. É por
essa razão que o freudismo existe em nossa época. O que passa da cultura para a
sociedade inclui sempre alguma função de desagregação. O que se apresenta na sociedade
como a cultura – e que entrou, portanto, em certo número de condições estáveis,
elas também latentes, que determinam os circuitos das trocas no interior do
rebanho – instaura nela um movimento que deixa aberta ali a mesma hiância em
cujo interior situamos a função do desejo. Nesse sentido, aquilo que se produz
como perversão reflete, no nível do sujeito lógico, o protesto contra o que o
sujeito sofre no nível da identificação, uma vez que esta é a relação que
instaura e ordena as normas da estabilização social das diferentes funções. Alguma
coisa se instaura como um circuito girando entre, de um lado, o conformismo, ou
as formas socialmente conformes da atividade dita cultural [...] e, do outro, toda
estrutura semelhante àquela da perversão, visto que ela representa no nível do
sujeito lógico, e por uma série de degradês o protesto que, aos olhos da
conformização, se eleva na dimensão do desejo, uma vez que o desejo é relação do
sujeito com seu ser.
Aqui
se inscreve a sublimação, que é a forma mesma na qual flui o desejo. O que
Freud nos indica, é que essa forma pode se esvaziar da pulsão sexual – ou, mais
exatamente, que a própria pulsão, longe de se confundir com a substância da
relação sexual, é esta forma mesma. Em outras palavras, fundamentalmente, a
pulsão pode se reduzir ao puro jogo do significante. É assim que podemos também
definir a sublimação.
A
sublimação é aquilo pelo qual podem se equivaler o desejo e a letra. Aqui – em
um ponto tão paradoxal como o é a perversão, entendida sob sua forma mais geral
como aquilo que, no ser humano, resiste à toda normalização -, podemos ver se
produzir essa aparente elaboração no vazio que chamamos de sublimação e que, em
sua natureza tanto quanto em seus produtos, é distinta da valorização social
que se lhe dará ulteriormente.
“A histérica e o
obsessivo”
“Qual
função a histérica se dá a si mesma?” É ela que é o obstáculo, é ela que não
quer. Seu gozo é impedir o desejo. Esta é uma das funções fundamentais do
sujeito histérico nas situações tramadas por ela – impedir o desejo de vir a
termo para permanecer ela própria o que nele está em jogo. O lugar tomado pela
histérica nessas situações é aquele que poderíamos chamar, usando um termo
inglês, a puppet, que é alguma coisa como um manequim, mas com o sentido mais
ampliado de falso-semblante. A histérica introduz, com efeito, uma sombra que é
seu duplo, sob a forma de uma outra mulher, por intermédio da qual seu desejo
deve precisamente se inserir, mas de maneira oculta, uma vez que é preciso que
ela não o veja [...].
Embora
a histérica se apresente eventualmente como a mola da máquina à qual estão suspensos,
um em relação ao outro, esses tipos de marionetes, ela, no entanto, está no jogo
sob a forma daquela que é, no fim das contas, seu móbil.
O
obsessivo, em contrapartida, tem uma posição diferente. Ele permanece fora do
jogo. O obsessivo é alguém que nunca está verdadeiramente ali onde alguma coisa
está em jogo e que poderia ser chamada de seu desejo. Ali onde ele
aparentemente arrisca o lance, não é ali que ele está.
Do
desaparecimento do sujeito ao ponto de aproximação do desejo ele faz, digamos,
sua arma e seu esconderijo. Ele aprendeu a se servir disso para estar em outro
lugar.
Ele
só pode fazer isso desdobrando no tempo, temporalizando essa relação, remetendo
sempre ao amanhã seu engajamento na verdadeira relação com o desejo. Enquanto a
relação com o desejo tem, na histérica, uma estrutura instantânea, é sempre
para o amanhã que o obsessivo reserva o engajamento de seu verdadeiro desejo.
Isso não significa dizer que, enquanto espera esse termo ele não se engaje em nada,
muito longe disso – ele prova seu mérito. Bem mais que isso, ele pode chegar
até a considerar o que ele faz como um meio de adquirir méritos para si.
Méritos em que?
Em
reverenciar o Outro em lugar de seus desejos.
Uma
vez em análise, ele poderá ter a mínima visão refletida sobre sua situação, ele
ficará por fim completamente surpreendido ao perceber que o sujeito que se sustenta
nessa situação está exposto a todos os tipos de atitudes contorcidas e
paradoxais, que o designam para si mesmo como um neurótico atormentado pelos
sintomas”.
(Adaptado
do capítulo XXIV).
Tradução:
Vera Avellar Ribeiro
FONTE: Site EBP
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