Trecho do livro:
O que é loucura? – Delírio e Sanidade na
vida cotidiana
de Darian Learde.
Zahar
Editora
...
Quando o jovem estudante
de medicina Jacques Lacan iniciou sua formação psiquiátrica, na Paris da década
de 1920, foi essa a cultura em que suas ideias começaram a crescer. Hoje, o
trabalho clínico lacaniano com a psicose é feito no mundo inteiro,
especialmente na França, na Bélgica, na Espanha, na Itália e nos países
latino-americanos, bem como, cada vez mais, no Reino Unido. Há uma cultura
florescente de periódicos, livros, boletins, conferências, cursos e palestras,
todos dedicados à exploração de diferentes aspectos da loucura. Até o presente,
milhares de relatos de casos de trabalho com sujeitos psicóticos foram
publicados por clínicos lacanianos. Lamentavelmente, porém, fora do campo em si
a maioria dos psiquiatras, psicólogos e profissionais de saúde mental nunca se
deparou com nenhuma dessas investigações.
Há muitas razões para
isso. É comum presumir-se que o trabalho psicanalítico com a loucura significa
a psicanálise clássica: o paciente deita no divã e faz associações livres, e o
analista faz interpretações sobre a infância dele. À parte o fato de que, de
qualquer modo, a maioria das análises não é assim, a verdadeira confusão diz
respeito à diferença entre teorias e técnicas. Uma teoria psicanalítica da
psicose não quer dizer que haja – ou mesmo que deva haver – psicanálise. Quer
dizer, isto sim, que é possível usar ideias psicanalíticas para inspirar outros
tipos de trabalho, outros tratamentos feitos sob medida para a singularidade de
cada paciente. Nos últimos cem anos, esse fato tem sido claro para os clínicos,
porém continua a gerar mal-entendidos e confusões, talvez em função dos
preconceitos profundamente arraigados contra a psicanálise – e dentro dela
própria.
A atenção para com a singularidade
de cada paciente, que está implícita na abordagem psicanalítica, é ainda mais
importante nos dias atuais, por vivermos numa sociedade que tem cada vez menos
espaço para o detalhe e o valor das vidas individuais. Apesar de constantemente
proclamarem da boca para fora que respeitam as diferenças e a diversidade, as
pessoas de hoje são mais que nunca coagidas a pensar de maneira uniforme, desde
o berço até os corredores da vida profissional. Isso é algo que vemos refletido
no mundo da saúde mental, onde é comum considerar-se o tratamento como uma
técnica quase mecânica a ser aplicada a um paciente passivo, e não como um
trabalho colaborativo, conjunto, em que cada parte tem suas responsabilidades.
Há hoje uma pressão crescente para encararmos os serviços de saúde mental como
uma espécie de oficina em que as pessoas são reabilitadas e mandadas de volta
para seus empregos – e para a família, talvez – o mais depressa possível.
O sujeito psicótico tornou-se menos
uma pessoa a ser ouvida que um objeto a ser tratado. Não raro, a especificidade
e a historia de vida do paciente são simplesmente apagadas. Enquanto os antigos
livros de psiquiatria eram repletos de reproduções da fala dos pacientes, hoje
tudo que se vê são estatísticas e diagramas pseudomatemáticos. Os estudos quase
nunca mencionam o que acontece nos casos singulares, mas apresentam números nas
situações em que os casos foram agregados. Nunca descobrimos, por exemplo, por
que um determinado individuo respondeu a certo tratamento e qual foi exatamente
a sua resposta; em vez disso, obtemos a estatística da percentagem de
participantes que responderam ou deixaram de responder ao tratamento. O
individuo desapareceu.
Essas sao realidades do discurso contemporâneo,
e não só da psiquiatria – mas seria de se esperar que, nesse aspecto,
justamente a psiquiatria oferecesse algo diferente. Apesar das advertências dos
psiquiatras progressistas ao longo dos anos e dos movimentos da antipsiquiatria
das décadas de 1960 e 1970, a psicose, com muita frequência, ainda e equiparada
as maneiras pelas quais algumas pessoas deixam de se enquadrar nas normas da
sociedade. Como assinalou ha muitos anos a pioneira clinica Marguerite
Sechehaye: “Quando tentamos construir uma ponte entre o esquizofrênico e nos
mesmos, muitas vezes e com a ideia de reconduzi-lo a realidade – a nossa – e a
nossa própria norma. Ele sente isso e, como e natural, vira as costas a essa intromissão.”
Hoje em dia, o que se valoriza e a adaptação convencional as normas sociais,
mesmo que isso signifique que, a longo prazo, as coisas não correrão bem para o
individuo.
E o que podemos ver
no nível mais básico da nossa cultura, na educação primaria e secundaria, na
qual a formula da múltipla escolha vem substituindo a da resposta original da criança.
Em vez de incentivar as crianças a pensarem por si e a elaborarem uma resposta,
a múltipla escolha simplesmente propõe duas ou três respostas entre as quais a criança
deve escolher. Isso significa, é claro, que ela aprende que existe uma “resposta
certa” que alguma outra pessoa sabe, e que suas construções pessoais são desestimuladas.
A chave do sucesso e descobrir o que outra pessoa quer ouvir, e não tentar
encontrar pessoalmente uma solução autentica. Não admira que os comentaristas
sociais descrevam a nossa época como a era do “eu falso”.
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Fonte: Site da editora Zahar
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