O
que é uma Civilização? Para a psicanálise lacaniana a Civilização pode ser
compreendida como um sistema de distribuição do gozo a partir de semblantes. Na
perspectiva do supereu, “civilização é um modo de gozo, e mesmo um modo comum
de gozo, uma repartição sistematizada dos meios e das maneiras de gozo”.(1)
O gozo “civilizado”, organizado pelo supereu freudiano, produz o interdito, o
dever, a culpabilidade, significantes que fazem existir o Outro, os semblantes
do Outro. O grande Outro pode, nesse enfoque, ser representado pelo pai totêmico
fundado na teoria freudiana pelo mito do Totem
e Tabu.(2)
Neste mito, resumidamente, Freud nos
diz: No estado primitivo da sociedade os homens viviam no seio de pequenas
hordas, cada qual dominada por um macho perigoso que exigia total submissão dos
seus filhos e lhes proibia o acesso às mulheres, cujo uso lhe era reservado. Certo
dia, os filhos da tribo, rebelando-se contra o pai, fomentaram uma conspiração:
num ato de violência coletiva eles o mataram e o comeram. Depois dessa refeição
totêmica, eles se identificaram com o pai e, após essa “primeira cerimônia” da
humanidade, vivenciada na concomitância da revolta e da festa, substituíram o
pai morto pela imagem do pai: pelo totem-símbolo do poder, a figura do
ancestral. Desde então a culpabilidade e o arrependimento cimentaram o pacto
social entre os filhos; eles se sentem culpados e se unem a partir dessa
culpabilidade: “o pai morto se tornou mais forte do que o fora vivo”.(3)
No seio desse mito, no miolo de sua
energia transformadora, Freud descobre que toda identificação é regida pela
ambivalência: a corrente terna que existia simultaneamente com a corrente de
ódio, imediatamente transformada em arrependimento, sela o laço social, que
aparece como laço religioso. Eis onde nos situa Freud: toda ordem social é
fundamentalmente religiosa. (4)
O laço social é fundado como um laço
religioso; os irmãos renunciam a possuir todas as mulheres; regras de trocas
exogâmicas são elaboradas. Tornando-se seres sociais, reabsorvem o feminino,
mas renunciam a ele. Para Julia Kristeva, em Sentido e contra-sentido da revolta, o feminino de que nos fala
Freud nesse texto de 1912 é o feminino das mulheres – objeto da cobiça entre os
irmãos; não obstante, também de seu próprio traço feminino, no sentido de
desejo passivo pelo pai, de amor e fascínio pelo pai. O contrato social,
conclui Freud, afirma-se sobre o recalque da culpabilidade e da
homossexualidade: o que fica tranquilo em nome do pai. “Derrubado o obstáculo,
a interdição escarnecida sobrevive à transgressão. O mais sangrento dos
homicídios não pode ignorar a maldição que o atinge. Pois a maldição é a
condição de sua glória.” (5)
Assim, o Homo religiosus,(6) nasce cheio de sentimentos de culpa e
de obediência, sempre tentando purificar-se – pelo rito e pelo sacrifício
religioso – da culpa fantasmática, mitológica, da morte sempre anunciada, mas
nunca operada, de um pai todo-poderoso, enfim: do pecado original. Todas as
religiões são ritos de purificação, enuncia Bataille em O Erotismo: “Basta pensar nos diferentes sistemas de abluções, de
lava-pés, na confissão, etc. A arte e a literatura também o são: lembrem-se de
que Aristóteles as considerava catarse”.(6)
Na teoria lacaniana, Totem e Tabu é o mito freudiano da
origem da Lei e da Civilização. Lei da castração, de instauração do simbólico,
com referência a este “fora-da-lei” que é o pai primevo. É em torno do “pai
morto” enquanto “pai simbólico” que Lacan interpreta o “verbo freudiano”. O
aparecimento do significante do Pai, enquanto autor da Lei, está ligado à morte
do pai: “esse assassinato é o momento fecundo da dívida através da qual o
sujeito se liga à vida e à Lei, o Pai simbólico, como aquele que significa essa
Lei, é realmente o Pai morto”.(7)
Seguindo a análise de Elisabeth
Roudinesco,(8) torna-se evidente que quando Lacan
reinterpreta o modelo edipiano à luz da antropologia estrutural de
Lévy-Strauss, faz da paternidade uma construção simbólica. O pai, na leitura
lacaniana do mito de Édipo, não é um objeto real: o pai é uma metáfora, ou
seja, um significante que vem no lugar de um outro significante.(9)
A função do Nome-do-Pai se inscreve enquanto significante a partir do
significante do desejo da mãe. Ama-se o pai se realmente ele for tomado como
garantia do Outro, isto é, se ele possui o saber sobre a garantia do Outro. Se
o pai não funcionar como garantia do Outro – da Lei -, ele não tem ação sobre a
mãe. Ou ainda, se a mãe não se interessar por esse pai, a criança ficará
abandonada à fantasia materna. Então, o pai não se faz amar e a criança não
supõe um lugar, não supõe a eficácia de seu nome, não vai amá-lo e sim
rejeitá-lo.
Nesse movimento, Lacan desloca o
enfoque da função paterna, através do mito freudiano, para a esfera simbólica.
Sob esse novo olhar, a origem da castração desliza do complexo edípico para o
campo da linguagem. O “Édipo” passa a ser um mito individual acerca dos efeitos
da linguagem sobre o corpo. Logo, podemos compreender que o significante
Nome-do-Pai é capaz de funcionar muito bem, mesmo na ausência do pai real. O
pai é, um primeiro lugar, um nome – um significante – e apenas secundariamente
uma pessoa. Na verdade, a função metafórica do Nome-do-Pai “mata” o pai
enquanto tal. Nesta função, trata-se do pai falado pela mãe, ou seja, um ser de
linguagem. Isso significa que ele existe na ausência, que já existe como morto
pelo significante. É o pai morto, matado pelo discurso.
“O essencial é que a
mãe funde o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu
capricho, ou seja, pura e simplesmente, a lei como tal. Trata-se do pai,
portanto, como Nome-do-Pai, estreitamente ligado à enunciação da lei, como todo
o desenvolvimento da doutrina freudiana no-lo anuncia e promove. E é nisso que
ele é ou não é aceito pela criança como aquele que priva ou não priva a mãe do
objeto de seu desejo”.(10) Esta metaforização é o ato mesmo da
simbolização da Lei, que se efetua na substituição do significante fálico pelo
significante Nome-do-Pai.
Para Jacques-Alain Miller, o
Nome-do-Pai corresponde à Psicanálise freudiana. “Se Lacan o destacou,
atualizou, formalizou, não é para a ele aderir, não é para dar continuidade ao
Nome-do-Pai, é para aí colocar um fim”.(11) Na análise milleriana, não somente essa
leitura do matema pluraliza o Nome-do-Pai, mas ela ainda o pulveriza, e o faz
pelo equívoco, atacando o laço do significante que se acredita ser seu
significado. Para Miller, em O Outro que
não existe e seus comitês de ética, esse equívoco entre os Nomes-do-Pai e
os não-tolos-erram, ao qual Lacan foi logicamente levado, a partir do seu
Seminário Mais, ainda, consagra a
inexistência do Outro.
A inexistência do Outro abre o que se
ousou denominar como a época pós-moderna – uma época em que não se é nem mais,
nem menos tolo relativamente ao Nome-do-Pai e à existência do Outro, onde se
sabe que o Outro não é senão um semblante. E enquanto o império do semblante se
estende, somos impulsionados “por um movimento, cada vez mais providos de
aceleração, de uma desmaterialização vertiginosa, que acaba por coroar com
angústia a questão do real”.(12)
Dessa perspectiva, segundo Miller, a
época pós-moderna é a época em que o Outro da civilização perdeu a sua função
de garantia dos discursos. Somos confrontados com a perda de confiança nos
significantes mestres, há uma nostalgia dos grandes ideais. Já “não basta dizer
que a verdade tem estrutura de ficção, pois estamos num ponto em que a
estrutura de ficção submergiu a verdade, em que ela a inclui, em que ela a engole.
Sem dúvida, aí a verdade prospera, aí ela se pluraliza, mas ela está aí como
morta. Diante desse envelhecimento ficcional da verdade é que a psicanálise nos
impõe o recurso ao real como não tendo estrutura de ficção”. (13)
A partir da análise milleriana da
teoria psicanalítica lacaniana, vamos supor uma diferença, ou melhor, uma outra
leitura, entre o cínico contemporâneo e o verdadeiro Cínico, ou, digamos, entre
aquele e o Cinismo filosófico. A inexistência do Outro, a perda de confiança
nos significantes mestres, a verdade como morta, produz, tem como efeito, o
cinismo contemporâneo, ou ainda, como denomina Sloterdijk: a razão cínica. Mas,
quando falamos do Cinismo filosófico, não é da inexistência do Outro de que se
trata mas, antes, da inconsistência do Outro. Diógenes com sua lanterna
procurava um verdadeiro homem: buscava um Outro por todo lado sem encontrá-lo,
mas nem por isso se colocava no lugar de Mestre, nem por isso vinha ocupar o
lugar de grande Outro. Diógenes não se colocava no lugar do Outro, mas também
não garantia a ninguém esse lugar. Se houve um lugar de Mestre, na filosofia
Cínica, esse era o de Mestre-dejeto, como denomina Miller.
Enquanto a razão cínica, teoriza
Sloterdijk, toma forma no paradoxo de uma “falsa consciência esclarecida”. A
ascese Cínica encarna a posição de um sujeito que “vive no coração do seu ser”,(14)
sabendo que o Outro não é senão semblante. A posição do sujeito que vive no
coração do seu ser, à qual nos remete Miller, é, por certo, uma posição ética.
Podemos aproximá-lo da ética de Espinosa, se compreendermos esta como
“perserverar em seu ser”; podemos também aproximá-la da ética da psicanálise,
que, segundo Lacan, se formula assim: “não ceder de seu desejo”. Sem dúvida que
a ética da psicanálise não é a ética de Espinosa, ainda que “compartilhem o
fato de fundar-se em um não ceder, em
perseverar em seu ser”.(15)
Ambas podem ser consideradas éticas anti-supereu, assegura Miller, na medida em
que admitem que cada um tenha de perseverar em seu ser. Se supusermos uma ética
Cínica, ela deverá estar muito mais voltada para o singular do que para o
Universal, portanto dentro do campo das éticas anti-supereu.
Não temos a intenção, neste trabalho,
de desenvolver a questão da ética na filosofia Cínica, mas acreditamos ser
importante marcar a possibilidade de pensar os gestos pantomímicos, a
insolência e a impudência de Antístenes, Diógenes e tantos outros, segundo
Diógenes Laertius, a partir de uma posição ética. Uma posição que nos garante,
mais uma vez, marcar a diferença entre o verdadeiro Cínico e a razão cínica
contemporânea, que poderíamos denominar de neocinismo.
Nessa perspectiva, pensamos diferente
de Slavoj Zizek, em Eles não sabem o que
fazem, quando este afirma, meramente, que "o Cinismo é a crítica
popular, plebéia, da cultura oficial, que funciona com os recursos da ironia e
do sarcasmo. ”(16) Parece-nos pouco provável que a vertente do
Cinismo enquanto crítica social, desenvolvida por Sloterdijk, possa resumir-se
a esse enunciado. Pois se, por um lado, podemos buscar a gênese da literatura
Cínica no conceito de Carnavalização de Bakhtin,(17) por
outro lado podemos demonstrar, através da poética de Glauco Mattoso, que a
“filosofia gestual” do Cinismo ultrapassa, vai além do simples deboche ou
sarcasmo, da linguagem popular. Há uma crítica séria no des-curso Cínico,
embora executada de modo debochado e blasfemador. O Cínico não pode ser
comparado, simplesmente, ao camponês da Idade Média, que cantava na cozinha ou
nas festas carnavalescas canções burlescas e satíricas sobre o seu
"Senhor", mas continuava mantendo sua obediência servil a este mesmo
Senhor. Não podemos, de forma nenhuma, assimilar o Cinismo ao neocinismo. Uma coisa insuportável ao
cínico contemporâneo é ver a lei ser transgredida abertamente, declaradamente.
Ao passo que a posição do filósofo Cínico é a de alçar a transgressão à
condição de um princípio ético: a antiguidade conheceu o Cínico como um
extravagante solitário, provocador e teimoso.
No entanto, o Cínico não foi, em
momento algum da história, um revolucionário, se, como Lacan, situamos o
revolucionário - a partir da consciência proletária - como aquele que acredita
no sucesso da moral: o operário virtuoso e sombrio que supostamente representa o
homem íntegro, o homem real, aquele que não duvida de que seu desejo seja capaz
de realizar-se, impor-se como tal, e de maneira harmoniosa.(18)
A ética Cínica não percorreu o mesmo caminho da ética aristotélica do bem e do
mal. O Cínico não acredita que se possa domar o gozo, ou mesmo, que se possa
distribuí-lo equitativamente entre todos. O filósofo Cínico grego não se deixou
enganar pelo ideal apolíneo da harmonia social, do bem para todos, da justiça
distributiva, que se iniciava, enquanto catequese ideológica, na Grécia
clássica.
É por essa operação - quando pensamos o
Cínico a partir deste lugar de Mestre-dejeto, ou, ainda, de dejeto-amo - que o
verdadeiro Cínico se distância do cinismo de massa teorizado por Sloterdijk em Crítica da Razão Cínica. O sujeito
Cínico não forma grupo, mas, conforme nos ensinaram os Cínicos gregos, faz laço
social. Afinal, o Cínico não foi um eremita, não se alijava do convívio da polis. O Cínico não é um asceta; antes,
seu lugar, seu território é a praça pública. É desse lugar que o seu discurso
insolente opera o desvelamento, a inconsistência daqueles que supõem ocupar o
lugar do grande Outro.
(1)
Miller, Jacques-Alain, "O Outro que não existe e seus comitês de
ética", in: Revista Curinga,
1998:10.
(2)
Freud, Sigmund, "Totem e Tabu", 1987:20.
(3)
Ibidem. p. 171.
(4)
Ou ainda, conforme Lacan: "É na medida em que a maldição secreta do
assassinato do Grande Homem cujo poder advém unicamente do fato de ressoar
sobre o fundo do assassinato inaugural da humanidade, e do pai primitivo, é na
medida em que este; enfim, vem à luz que se efetiva o que cabe bem chamar, pois
está no texto de Freud, de redenção cristã." (Jacques Lacan, in: Seminário - livro 7, 1988:214.)
(5)
Kristeva, Julia, Sentido e Contra-sentido
da revolta, 2000:32.
(6)
Ibidem. p.44.
(7)
Bataille, Georges, O Erotismo,
2004:75.
(8)
Lacan, Jacques, "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose", in: Escritos,
1998:563.
(9)
Roudinesco, Elizabeth, Por que a
Psicanálise?, 2000:68.
(10)
"A posição do pai como simbólico não depende do fato de as pessoas haverem
mais ou menos reconhecido a necessidade de uma certa sequência de
acontecimentos tão diferentes quanto um coito e um parto. A posição do
Nome-do-Pai como tal, a qualidade do pai como procriador, é uma questão que se
situa no nível simbólico. Pode materializar-se sob as diversas formas
culturais, mas não depende como tal da forma cultural, é uma necessidade da
cadeia significante. Pelo simples fato de vocês instituírem uma ordem
simbólica, alguma coisa corresponde ou não à função definida pelo Nome-do-Pai,
e no interior dessa função vocês colocam significações que podem ser diferentes
conforme os casos, mas que de modo algum dependem de outra necessidade que não
a necessidade da função paternal à qual corresponde o Nome-do-Pai na cadeia
significante.(Jacques Lacan, O Seminário,
livro 5 1999:187.)
(11)Lacan
Jacques, O Seminário livro 5, as formações
do inconsciente, 1999:197.
(12)
Miller, Jacques-Alain, “O Outro que não existe e seus comitês de ética” in: Revista Curinga, 1998:05.
(13)
Ibidem, p.5.
(14)
Ibidem, p.8.
(15)
Miller, Jacques-Alain, A lógica na
direção da cura, Seminário realizado por Miller durante o IV Encontro
Brasileiro do Campo Freudiano - Setembro/19931 1995:33.
(16)
Miller, Jacques-Alain, El banquete de los
analistas, 2000:72
(17)
Zizek Slavoj, Eles não sabem o que fazem,
1992:60.
(18)
Em Questões de Literatura e Estética e Problemas da Poética de Dostoievski
MiKhail Bahthin (1895-1975), aprofunda os seus estudos sobre a Sátira Minipéia,
gênero Cínico por excelência.
(19)
Lacan, Jacques, O Seminário, livro 5,
as formações do inconsciente, 1999:277.
MARIA HOLTHAUSEN
Fragmento da minha tese:
O Des-Curso Cínico: A poética de Glauco Mattoso
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