AÇÃO
POLÍTICA E AFIRMATIVA:
DANÇA E CORPO NO DISCURSO
EDUCACIONAL
SUL-AFRICANO PÓS-APARTHEID
Resumo
Como parte de uma pesquisa acerca da
contribuição da dança nos processos de reconciliação, o presente artigo
apresenta uma leitura preliminar da dança no contexto educacional sul-africano pós-apartheid. Dois aspectos são
enfatizados, primeiro, a dança como a ação política e, segundo, o corpo como
comunicação. A dança como uma ação humana, mais que celebrar a diferença,
afirma a alteridade do corpo que dança. Nota-se
assim, a aproximação do corpo, a dança e o perdão. E a conclusão anuncia novos
começos na educação.
Palavras-chave:
dança; corpo; alteridade; educação.
Introdução
Em concordância
com Ann Cooper Albrigth (2003) assinalo que os discursos sobre a diferença têm
ajudado os estudiosos e professores da área de conhecimento da dança a
reavaliar as experiências e as tradições apresentadas pelas tendências
dominantes da história da dança. O
impacto da desconstrução dos cânones históricos e das suposições estéticas
repercutido no ensino da dança, na leitura de Albright (2003), tem gerado certo
mal-estar entre professores e dançarinos. Neste sentido, parece relevante
atentar para o discurso acerca do espaço pedagógico como um lugar de
acolhimento das diferenças culturais.
Nos seus estudos
acerca do ensino da dança em populações politicamente marginalizadas, tais como
Oriente Médio, África e Ásia, Nicholas Rowe (2008) investiga se é possível
ensinar dança sem ensinar o que dançar. Sua proposição de um movimento cultural
anti-hegemônico desafia o imperialismo cultural e a construção de uma
polaridade cultural. Deste modo, uma ação anti-hegemônica sustenta um objetivo
de criar uma autonomia que é cultural, ambiental e inerentemente dinâmica e
auto-referente. Tal ação é direcionada pelas necessidades da comunidade local,
com referências de seu passado, suas experiências e crenças presentes e, suas
expectativas futuras, contrapondo atender as necessidades e expectativas
culturais de fora da comunidade.
Penso que essas
questões guardam estritas relações com as políticas públicas, a diversidade e a
educação, quando examinadas à luz das experiências sul-africanas aqui
apresentadas. Afinal, o mundo testemunha atentamente os desdobramentos da
recente transição do regime apartheid
para governo democrático sul-africano. A África do Sul apresenta-se hoje como
um modelo de unidade na diversidade, e por várias vezes tem sido mencionada
como uma ''nação arco-íris”. Notavelmente, nesta transição os diferentes grupos
e seus membros redesenham e se afirmam tendo em vistas um retorno aos valores
familiares e religiosos (MURITHI, 2009). Numa segunda visita à esse país, tenho
estudado sobre a contribuição da dança no processo de reconciliação. Assim, pautado
nas minhas primeiras leituras acerca do ensino da dança neste contexto, tenho
como objetivo ao escrever esse texto: apresentar brevemente a dança no contexto
educacional sul-africano. Especificamente, teço comentários sobre a dança
como ação política; e, exemplifico a noção de corpo como afirmação da
alteridade. Escrevo uma notação vinculando corpo, dança e perdão. Concluo o
texto ao mencionar a dança e a reconciliação e, com isto, anuncio novos começos
na educação.
Dança e educação no contexto sul-africano
Nas escolas da África do Sul a dança foi instituída por políticas propostas
pelo governo apartheid (1948-1993). O
estudo de Jill Waterman e Jennifer van Papendorp (1997) informa que neste
período as escolas e o apoio financeiro para dança educação eram separados de
acordo com as raças: branca (White), pessoa de cor (Coloured), incluía indianos
e mestiços; e, nativos (Indian), neste caso, negros. O governo Nacionalista,
dirigido por um estilo patriarcal de educação cristã, não considerava a dança educação
uma prioridade no campo da educação formal. Nesta perspectiva, o balé clássico
apresentava-se como uma forma superior de arte, se tornando um estilo dominante
de dança a ser ensinada num número limitado de escolas. Poucos professores ou
coreógrafos de balé clássico iriam desafiar a censura e os princípios cristãos,
arriscando apresentar em palco conteúdo sexual ou questões políticas. Desta
maneira, a idéia da dança apoiar valores culturais de uma elite, servindo
primariamente a classe média branca sul-africana, foi transferida facilmente
como um conceito para o governo apartheid.
Por outro lado, as outras formas de artes originadas pelos nativos
sul-africanos eram apresentadas como sendo de menos valor. Essa hierarquia de
valores culturais era refletida no sistema escolar. A dança era ensinada com um viés racista, cada
raça aprendia a dança de seu grupo racial. No que se refere às questões de
gênero, o atrelamento da dança no departamento da educação física favorecia que
alguns professores separasse as meninas para fazerem dança e os meninos era
enviados para fazerem “outras coisas”. As
autoras indagam: o que estava sendo dito para os meninos e o que estava sendo dito
para a sociedade sobre gênero e dança?
Muitas mudanças
foram feitas no governo após 1994 para que a política na educação nacional mudasse
seu foco, tornando-se acessível, promovendo a equidade e sendo de qualidade. Por
fim, oferecendo o direito a todos os sul-africanos de valorização e de
experiência de sua própria herança cultural, e a possibilidade de compartilhar
isso com outros. No ensino de artes a
mudança acontece gradualmente, de uma orientação disciplinar ocidental para uma
abordagem de arte africana, inclusiva e integrada; combinando prosa, poesia,
narração de estórias, música, canções, dança, figurinos e artefatos. Deste
modo, na África do Sul pós-apartheid foi
decidido adotar uma educação baseada em resultados, porém transformativa. Um sistema de educação e formação humana que
integra o mental e o manual, o acadêmico e o vocacional; estes são apresentados
conjuntamente em áreas de aprendizagem com intuito de produzir programas transdisciplinares. Na dança, busca-se formar dançarinos
pensantes pautando num desenvolvimento cultural flexível, superando o estigma atrelado à dança como uma atividade meramente
física.
Mediante essas
mudanças, os resultados esperados dos estudantes são bem diferentes de outros
países. Por exemplo: O estudantes devem ser capaz de 1. aplicar o conhecimento,
a técnica e a habilidade para criar e ser envolvido criticamente no processo e
no produto artístico e/ou cultural; 2. usar o processo criativo de
arte e cultura para desenvolver e aplicar as habilidades interativas e sociais;
3. refletir e engajar-se criticamente com o trabalho e experiência artística; 4.
demonstrar um conhecimento da origem, função e natureza da dinâmica cultural; 5. experienciar e analisar o papel
da mídia na cultura popular e seus impactos nas formas múltiplas de comunicação
e expressão das artes; 6. usar as habilidades de expressão cultural para fazer
uma contribuição econômica para si e para a sociedade; 7. demonstrar habilidade
para acessar a arte criativa e o processo cultural para desenvolver auto-estima
e promover cura; 8. conhecer, compreender e promover historicamente as formas,
as práticas de arte e cultura
marginalizadas (SOUTH AFRICA, 2002).
Os métodos de
ensino também se modificaram, abandona-se as metodologias centradas no modelo patriarcal,
de professor autoritário ministrando disciplinas específicas e no seu lugar propõe-se
uma metodologia mais participativa, democrática, integrada e centrada no aluno.
Neste contexto, as estratégias de ensino são baseadas no entendimento que
aprendizagem acontece quando o estudante participa, se diverte, se comunica,
sente-se bem sobre si mesmo e não está atemorizado. No que diz respeito às
estratégias de avaliação, essas são também diferentes: elas focam no que o
estudante pode fazer e não no que ele não pode, enfatiza-se o sucesso e não o
fracasso. Jill Waterman e Jennifer van Papendorp (1997) identificam que essa
mudança cultural e o ambiente educacional são territórios muitos disputados,
deles emergem atitudes favoráveis às mudanças e outras que resistem às mudanças
criando paradoxos na dança no contexto educacional.
Neste cenário, por
exemplo, há ainda a cuidadosa incumbência de preparar os futuros professores de
dança para uma realidade cujas dificuldades encontradas no dia-a-dia nas
escolas de ensino médio desafia o idealismo de qualquer docente. Sharon Freedman
(2008) inclui também a batalha diária dos alunos dispostos e interessados na
aprendizagem, o aumento da violência, tanto entre alunos quanto entre alunos e professores.
Esta situação é agravada pela falta de tempo suficiente para fornecer, no prazo
de um calendário generalista, uma aula prática com duração adequada para
acomodar os conteúdos teóricos e práticos dos manuais de dança. A tarefa de
todos os intervenientes na formação de professores, portanto, não é apenas
preparar os professores para serem capazes de lidar com tais problemas, mas
também, forjar neles um compromisso com a reflexão crítica e modos criativos de
responder aos desafios acima.
A coreógrafa sul-africana Juanita Finestone-Praeg (2011), atenta às
lições do educador Paulo Freire, acredita
que não se deveria aprender apenas por modos racionais, cognitivos. Ela tem
como convicção que o ser inteiro do estudante precisa ser empenhado e
estimulado na experiência de aprendizagem para retomar e participar do diálogo
de revolta artística e política. O ato de aprender é exatamente um ato
ou desempenho que requer a presença ativa do estudante participante no processo
e na experiência de aquisição do conhecimento. Sua metodologia pedagógica está
baseada nas tentativas de envolver o professor e o estudante de tal modo que ambos
incorporem, experienciem e processem o assunto estudado e o contexto da aprendizagem.
Dança como ação política
Os arquitetos do
apartheid concebiam as culturas como
entidades definidas, fixas e homogêneas. Mas, cultura não é somente a conotação
de símbolos, valores e crenças de um povo, mas as várias maneiras que esse povo
responde às circunstâncias. O que os Sul-Africanos chamam de “teatro de
protesto” (protest theater) é sem
dúvida alguma uma ação política. A dança pode agir como catalisadora da ação e
do pensamento político. A dança pode ser também, política no que se refere aos
valores estéticos vinculados ao ato de dançar. As atitudes e ações políticas influenciam
as formas de dançar e os caminhos pelos quais a dança é transformada. Sylvia
Glasser (1991) argumenta que dançar é
político, e isso não quer dizer que a dança é só política. Pois, o aspecto
político é apenas uma faceta da multiplicidade de elementos que contribuem para
a criação e expressão da dança. Dança e música tem sido central na expressão
de frustração e raiva, bem como, na
aspiração de um novo tempo.
Afinal, “todas
as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma
história a seu respeito” considera Isak Dinesen apud Arendt (1995). E isso vem ao encontro da proposição da dança
como ação que ao mesmo tempo em que sugere um retorno às coisas mesmas, promove
um novo começo. Destarte, a noção de natalidade em Hannah Arendt pode ser compreendida na sua teoria da Ação, onde ela vinculará o nascimento de novos seres humanos e o novo
começo com a faculdade de agir. Assim, ela descreve a natureza do início como que
se comece algo novo,
“[...] algo que não pode ser previsto
a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente
imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem. Assim, a origem da
vida a partir da matéria inorgânica é o resultado infinitamente improvável de
processos inorgânicos, como é o surgimento da Terra do ponto de vista dos
processos do universo, ou a evolução da vida humana a partir da vida animal. O novo
sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua
probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale certeza; assim, o
novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de
agir significa que se pode esperar dele
o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto,
por sua vez, só é possível porque cada
homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo
singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que
antes dele não havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato do
nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a
efetivação da condição humana da pluralidade, isto é do viver como ser distinto
e singular entre iguais.”(ARENDT, 1995, p. 191)
Uma questão
surge: como a dança, uma arte não-verbal pode ser uma ação política? O motivo é
que o movimento, precisamente, ao contrário da palavra, pode ser usado como
veículo de comunicação que permite que a dança seja um poderoso veículo de
expressão, principalmente para um povo oprimido. Mas, dança e dançar não são
somente expressão de sentimentos políticos, ambos são influenciados pela percepção
de seus participantes e observadores, contribuindo para a transformação de
sistemas políticos. Na África do Sul, onde você dança, com quem você dança, e
que tipo de dança você executa e sua atitude frente à dança dirá alguma coisa
sobre você, como uma pessoa política, bem como sobre você, como pessoa artista
(GLASSER, 1991). Nesta cena, evidencia o corpo que dança e afirma a alteridade.
Corpo como afirmação da alteridade
A transformação
pessoal é um pré-requisito para a transformação social na perspectiva
curricular sul-africana. Através de Estudos de Dança, os estudantes desenvolvem
a auto-estima, um sentimento de identidade, a confiança e auto-disciplina. Eles
desenvolvem a responsabilidade social, desenvolvendo um respeito pelos seus
próprios e outros corpos e explorando-os numa aprendizagem individual e
colaborativa. Esses desenvolvem uma sensibilidade cultural, explorando e
realizando danças de outras culturas além da sua própria. Dessa forma, eles afirmam
a sua identidade cultural própria e a dos outros também (SOUTH ÁFRICA, 2008).
A dança como uma
ação de comunicação corporal não está dispensada da ética. Nós sempre dançamos
com o outro ou para o outro, nós nunca dançamos sozinhos. Reafirmo que a dança
não é uma atividades solitária, mas um movimento solidário. Vale salientar que
dançar é a tentativa de ser um com outro. O espaço da dança como estrutura
coletiva sustenta as noções de acolhimento e hospitalidade.
Um exemplo que
evidencia como a dança está implicada no acolhimento da diferença pode ser
encontrado no trabalho do pesquisador
sul-africano Gerard Samuel (2008) que examina o corpo diferente na
perspectiva da “disability dance” no
contexto da África urbana e contemporânea e problematiza acerca do lugar que
ocupam os dançarinos com necessidades especiais e das comunidades rurais. O
autor observa que as artes cênicas contemporâneas estão inseridas nas cidades,
mas muitas comunidades do campo enfrentam isolamento e lidam com o estigma da
ignorância. No entanto, o avanço tecnológico tem rompido com o abismo entre rural
e urbano propiciando, por exemplo, a ocorrência de performances em locais não convencionais, subvertendo e celebrando
outras formas de expressão. Samuel avalia que levar esse tipo de trabalho para
o espaço público propicia uma interação educativa entre o artista e a pessoa que o assiste na
rua, de modo que a dança cênica contemporânea começa a ficar mais exposta.
Samuel exemplifica também a confrontação
que o dançarino na cadeira de rodas apresenta ao dançar no espaço teatral formal, deixando um
sentimento inconfortável acerca do corpo e da estética, e no contexto
sul-africano há ainda a dificuldade de desvelar o corpo negro que dança –
apresentado muitas vezes como exótico e nobre selvagem. O pesquisador alerta
que estas dificuldades ocorrem dentro do espaço progressivo e mundialmente
reconhecido da nova constituição da
África do Sul. Na tentativa de questionar uma noção de estética fixa para dança
cênica contemporânea ele nos desafia a aprofundar nosso entendimento acerca do
corpo que dança e propõe vincular o conhecido movimento de consciência negra
que defende a posição de que “Black is
beautiful” e apresentar a “disability
dance” como bela também.
Notação sobre o corpo, a dança e o perdão
A leitura do texto
de Jacques Derrida (2005) intitulado: “O perdão, a verdade e a reconciliação:
qual gênero?” traz em cena vários escritos e vozes entre eles estão a
constituição da África do Sul, a autobiografia de Nelson Mandela, a voz em off de Hegel, o livro da jornalista e
poeta Antjie Krog, a entrevista de Desmond Tutu à Timothy Garton, e os vívidos
testemunhos das vítimas apresentados
durante a – TRC Truth Reconciliation
Comission (Comissão Verdade e Reconciliação). Esses discursos incrustados
um no outro fazem-me pensar no perdão como uma ação e o corpo como afirmação da
alteridade. Ao examinar o discurso hegeliano sobre o perdão Derrida chama a atenção para a expressão das Wort der Versöhnung: explicita que não se trata da palavra [le mot] “reconciliação”, mas sim da
palavra que descreve o gesto pelo qual se oferece ou se propõe a reconciliação:
o estender a mão.
É fato que toda
e qualquer discussão ético política sempre se dá na ambiência de um suposto
“nós” unificador, dentre outros, é preciso abrir um espaço para interrogar “nós
quem”, argumenta Paulo Cesar Duque-Estrada (2008) ao destacar dois aspectos nos
argumentos de Derrida (2005) que quer pensar essa experiência de um outro modo,
para além do paradigma do todo e da reconciliação, donde o comentarista percebe
traços essenciais da afirmação e do perdão. Afirmação é apresentada como
afirmação da diferença, da heterogeneidade, e portanto da alteridade, que para
Derrida é condição inseparável de toda unidade, de toda identidade, de toda
experiência de si mesmo ou de um “nós”. Isso nos possibilita também ampliar a
nossa visão sobre o direito e o respeito à diferença e acolhermos a
singularidade humana e irmos além do discurso do conflito com a diferença. E,
na perspectiva de Roland Barthes (1988), criar através do ensino da dança uma
relação com a diferença que se “originaliza” pouco a pouco, pois, demanda tempo
reencontrar a originalidade dos corpos tomados um a um, quebrar a reprodução
dos papéis, a repetição dos discursos, evitar as encenações de prestígio e
rivalidade.
Assim, uma
questão se evidencia Como a noção de perdão se aproxima ao ato de dançar? Vou tentar responder essa questão
considerando que diante do desejo de se comunicar com outro, dançamos. Quando o
filósofo argelino indaga sobre qual o gênero da verdade, sua resposta,
primeiro, solidariza o perdão à mulher e, segundo, na revelação da verdade
encena o corpo: “Não é apenas porque tantas vezes, as testemunhas
sobreviventes são mulheres. Mas porque a cena do testemunho e da verdade, da
revelação da verdade, encena o corpo da testemunha, que também pode ser uma
vítima de tortura ou estupro“ (Derrida, 2005. p. 80). Percebo no corpo uma
comunicação, quando esse explicita a linguagem das marcas, das cicatrizes, quando
visíveis - traços na superfície do corpo, quando invisíveis – tramas nas
profundezas da alma. O corpo com sua voz silenciosa, diz tudo sem palavra
alguma. O desejo do homem é o desejo de comunicação com o outro, enuncia J.D.
Nasio (2009). Esse autor salienta quer se trate de uma criança de cinco anos,
de uma pessoa adulta ou de nós mesmos, falamos todos a linguagem das sensações
vividas anteriormente em nosso corpo de criança, ainda que não tenhamos nunca a
consciência disso. A imagem inconsciente do corpo é um código íntimo, peculiar
a cada um, que devemos aprender a falar, caso queiramos, estabelecer uma comunicação
verdadeira uns com os outros.
O estudo da experiência da
dança no discurso educacional sul-africano, como preliminarmente apresentado aqui,
pode contribuir para o alargamento de nossas atitudes frente às diferenças
culturais, mas para isso faz-se necessário o entrelaçar dos corpos num exame
crítico sobre o ato de dançar. Pois, ensinar a dançar está vinculado em habitar
o próprio corpo, mas com abertura para acolher os corpos culturalmente
diferentes dos nossos.
Deste modo, a experiência com a dança possibilita apresentar o corpo
como base para uma comunicação responsável. Ao dançar a minha, a nossa
responsabilidade para com outrem é a estrutura fundamental sobre a qual todas
as outras estruturas sociais são acolhidas. A dança como ação política e o corpo
enquanto desejo de comunicação podem sugerir uma alteridade que sustenta com
responsabilidade os novos começos na educação.
Dança
e reconciliação: novos começos em educação
Figura 1. Foto: Sam Nzima
Em 16 de junho de 1976, Hector Peterson carregado por Mbuyisa Makhubo, depois de ser baleado pela policia
sul-africana, sua irmã Antoinette
Sithole, corre ao lado deles.
Venho de tão longe pra ver de perto
Belas lições de liberdade
Gravadas à flor da pele
Escrituras sutis
Existências singelas
Alegria profunda
Pois, profunda foi a dor
Marcas – cicatrizes
Pedras – defesa – monumentos
Água – lágrimas – beleza
Volto para casa
Aprendo com Hector Peterson
Que no caminho para escola
Pode-se encarar a morte
Porém, neste mesmo caminho
Pode-se encontrar a paz.
Estas palavras
foram escritas no verso de um cartão postal, que escrevi na minha primeira
visita à África do Sul em 2008. Hector Peterson (figura 1), foi uma entre as milhares
de crianças vitimadas pela ação política do governo apartheid, talvez, pelo fato delas serem o futuro de uma nação. Em Soweto, a mesma rua que situa a
escola, palco de manifestações estudantis, estão localizadas as residências dos
dois ganhadores do prêmio Nobel da Paz: Nelson Mandela e Desmond Tutu. Volto a esse país, neste momento, em 2011,
para aprofundar as lições. E aprendo com Hannah Arendt que:
“O
milagre que salva o mundo
a esfera dos negócios humanos, de sua ruína normal e
“natural” é, em última análise, o fato do nascimento, no qual a faculdade de
agir se radica ontologicamente. Em outras palavras, é o nascimento de novos
seres humanos e o novo começo, a ação de que são capazes em virtude de terem
nascido. Só o pleno exercício dessa capacidade pode conferir aos negócios
humanos fé e esperança, as duas características essenciais da existência humana
que a antiguidade ignorou por completo, desconsiderando a fé como virtude
incomum e pouco importante, e considerando a esperança como um dos males da ilusão
contidos na caixa de Pandora. Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca
tenham sido expressas de modo tão sucinto e glorioso como nas breves palavras
com as quais os Evangelhos anunciaram a “boa nova”: “Nasceu uma criança entre
nós.” (ARENDT, 1995, p. 259)
A natalidade, enquanto
essência da educação exige de nós criação para que dela tenhamos experiência. A
teoria de novos começos de Hannah Arendt parece apontar ações precisas sobre o
perdão, afinal, de que outro modo poderíamos compreender sua advertência de que
os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar? Fé e
esperança: talvez, seja isso que as crianças e os jovens em geral, e os
sul-africanos em particular, esperam do mundo. Um lugar onde infância e
juventude não significam ameaça, mas coragem de Ser. Educar nossas crianças e
jovens com dança é demonstrar que eles não estão sozinhos no mundo. Nas
palavras de Arendt (1995, p. 259):
“[...] a única faculdade milagrosa que o homem
possui, como Jesus de Nazaré, que vislumbrou essa faculdade com a mesma
originalidade e ineditismo com que Sócrates vislumbrou as possibilidades de
pensamento, deve ter sabido muito bem ao comparar o poder de perdoar com o
poder mais geral de operar milagres, colocando a ambos no mesmo nível e ao
alcance do homem”.
Na poesia o rap sul-africano, Emile Jansen sugere
que tentemos promover a paz, ao menos, e tentemos cessar a violência. Afinal,
há mais vida na paz que num mundo vazio.
Nota
1
Esse artigo é um dos primeiros resultados da pesquisa de estágio pós-doutoral
intitulada: As vozes do silêncio:
corporeidade, dança e perdão nas políticas afirmativas educacionais
sul-africanas pós-apartheid, 2011. Realizado
na School of Dance – University of Cape
Town, (Apoio: REUNI/UFSC). Agradeço
a colaboração do pesquisador Gerard Samuel, bem como a interlocução com o
Prof. Dr. Paulo Cesar Duque-estrada.
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EDUCACIONAL SUL-AFRICANO PÓS-APARTHEID
Autoria: Ida Mara Freire
Publicado na Revista "O Teatro Transcende" do Dep.de Artes - CCE da FURB -
v.16, n.2. p.30-42, 2011.
Blog: http://escrevedance.blogspot.com.br/
Email: idamarafreire@outlook.com
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