Sexual: o contemporâneo da
psicanálise Sexual:
Nina Virgínia de Araújo Leite
Paulo Sérgio de Souza Jr.
Universidade Estadual de Campinas,
Unicamp Campinas, SP, Brasil
Caso se esteja de acordo
com a leitura de Roland Barthes a respeito da posição nietzschiana ao longo das
Unzeitgemässe Betrachtungen [Considerações extemporâneas, 1873-76], o
contemporâneo se trata daquilo que é da ordem do intempestivo. Será, aliás, partindo
dessa observação relevante que Giorgio Agamben, no ensaio intitulado “O que é o
contemporâneo?”, arrolará formulações sobre a contemporaneidade em sua radical
diferença com relação ao que seria do foro da atualidade, pressupondo que a
primeira se situaria na pendência de um descompasso que a segunda, de certo
modo, se empenharia em mitigar.
Esse descompasso – marca
da impossibilidade de se estar em dia, de fato, com aquilo que terá sido o
contemporâneo – parece caracterizá-lo de modo determinante, uma vez que aí
estaria em cena “uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e,
ao mesmo tempo, dele toma distâncias”; e isso, por sua vez, faria com que ser
contemporâneo equivalesse paradoxalmente a “ser pontual num compromisso ao qual
se pode apenas faltar”.* Evocando Nietzsche, então, Agamben pensa aquilo que
seria um pertencimento verdadeiro a seu tempo – pertencimento que podemos
chamar de atualidade – como um obstáculo, com efeito, à possibilidade de ser
contemporâneo, visto que a contemporaneidade implicaria precisamente uma
não-coincidência do sujeito com sua época (um décalage hors-ère fundamental,
por assim dizer).
Depreendemos ser essa
tomada de posição bastante rica em consequências para além das elucubrações
filosóficas, minimamente à medida que – se contemporâneo for aquele que for
“capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”* – isso coloca em
jogo uma dimensão efetivamente prática do ser no mundo, e convoca um
deslocamento do sujeito com relação ao tempo ao redor. Assim sendo, é suscitada
de imediato a seguinte pergunta: se é o achado do inconsciente por Sigmund
Freud que funda a psicanálise, e se, como dizia o próprio Freud,* os processos
do sistema inconsciente não têm, justamente, nenhuma relação com o tempo [keine
beziehung zur Zeit], haveria algo que, no campo da psicanálise como tal, se
poderia chamar de contemporâneo?
O
contemporâneo como o enigma do atual
“Contemporâneo
é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” –
Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo?- 2008
Para sustentar a
proposição central deste artigo – que afirma ser o sexual o contemporâneo (pela
concepção de Agamben) na psicanálise e/ou a partir do discurso freudiano –,
importa indicar, mesmo que brevemente, a especificidade do termo sexualidade em
psicanalise, alinhando-o diretamente com a lógica do funcionamento do
inconsciente, porque estruturado como linguagem. Ou seja, propomo-nos, aqui, a
indicar em que o sexual deve ser pensado como referido ao campo da linguagem –
e, por obedecer à lógica desta, implicar o enigma. O gesto freudiano de
descoberta (ou invenção?) do inconsciente não apenas retirou o termo
“sexualidade” de suas amarras com a genitalidade, mas o incluiu definitivamente
no campo da linguagem. Lacan, já em 1953, advertia os psicanalistas quanto ao
estatuto dos fatos colocados em jogo por Freud: trata-se sempre de fatos de
linguagem. Ora, por que o sexual está ligado com a linguagem e em que isto
contribui para a aproximação com a abordagem do contemporâneo proposta por
Agamben?
Nada mais precioso nessa
empreitada do que retornar ao texto de 1910 em que Freud* argumenta contra a psicanálise
denominada “selvagem”, e aí recolher os fundamentos da aproximação da
sexualidade com a linguagem. Lembremos que, muitos anos mais tarde, Lacan
afirmará que o inconsciente é efeito de linguagem – e tal afirmação,
transformada atualmente em aforismo, não deixou de resultar em um encobrimento
da novidade da descoberta freudiana quanto ao sentido do sexual. Daí a
necessidade de, mais uma vez, retornarmos ao texto freudiano.
Nesse pequeno texto, Freud
analisa a conduta de um médico que, supostamente, estaria utilizando os
princípios da técnica psicanalítica ao oferecer conselhos a uma paciente que o
procura se queixando de crises de angústia, especialmente intensificadas depois
de sua separação do marido. Tal médico teria afirmado que a causa de sua angústia
residiria na privação sexual e que, não podendo prescindir do comércio sexual
com um homem, a ela restariam apenas três caminhos para recuperar sua saúde:
retornar ao marido, arranjar um amante ou satisfazer-se sozinha. Os diversos
erros da conduta desse suposto analista servem de motivação para o
esclarecimento de questões tanto técnicas quanto teóricas, no que respeita ao
entendimento que o médico revela quanto à noção de sexualidade. Segundo Freud,
os conselhos que o médico oferece à paciente evidenciam o sentido que ele
atribui à “vida sexual”, não sendo outro que o popular, ou seja, na esteira de
uma sinonímia entre sexualidade e ato sexual. O conceito do sexual é, em
psicanálise, estendido muito além de seu alcance ordinário, afirma Freud. Mas o
que significa essa extensão do conceito, uma vez que logo em seguida afirmará
que tal gesto de extensão implica “ultrapassar o sentido popular tanto para
baixo como para cima” (er geht nach unten wie nach oben über den populären Sinn
hinaus)? Do que se trataria em uma extensão para mais e para menos do sentido
popular?
Uma interessante
observação de Shoshana Felman* permite avançarmos na análise desse aparente
paradoxo. A autora parte do reconhecimento de que a relação entre a noção
psicanalítica de sexualidade e o ato sexual não pode ser pensada como uma
relação de adequação simples e literal, mas, ao invés disso, deve ser pensada
como uma relação de inadequação. Isso apontaria para a complicação específica
que é inerente à sexualidade humana como tal, conduzindo ao reconhecimento de
uma complexa relação entre sexualidade e sentido; “uma relação que não é de
simples desvio do sentido literal”, mas conduz a uma problematização da
literalidade como tal.
O fato de implicar
simultaneamente um aquém e um além do sentido popular imediatamente
introduz o traço do contraditório como constitutivo do sentido em jogo no uso
do termo “sexualidade” em psicanálise. E isso se evidencia quando Freud avança
no texto para identificar um segundo erro cometido pelo suposto psicanalista. É
certo, diz Freud, que a psicanálise propõe a ausência de satisfação sexual como
a causa das desordens nervosas. Mas ela diz mais do que isso, ao declarar que
os sintomas nervosos surgem de um conflito entre duas forças: por um lado, a
libido e, de outro, uma rejeição da sexualidade – ou um recalque. Ninguém que
desconheça esse fato poderia acreditar que a satisfação sexual em si
constituiria um remédio de confiabilidade geral para os sofrimentos dos
neuróticos. Portanto, os sintomas neuróticos surgem não de uma falta de
satisfação, mas, sim, de um conflito entre duas forças. O recalque é, portanto,
constitutivo da sexualidade.
O sentido literal é
subvertido e negado pelo segundo fator apontado (o conflito). O que nos leva a
admitir que o sentido do sexual revela que este implica sua própria obstrução,
e que a noção de sexualidade em psicanálise só pode ser pensada na vigência de
dois fatores dinamicamente contraditórios – com isso, o sentido do sexual só
pode ser ambíguo. Na feliz formulação de Shoshana Felman,* a sexualidade em
psicanálise é retórica, uma vez que ela consiste essencialmente da ambiguidade:
ela é a coexistência de sentidos dinamicamente antagonistas. A sexualidade na
psicanálise coloca em jogo a divisão do sentido, ou melhor, o sentido como
divisão, como conflito.
Na esteira da abordagem ao
contemporâneo feita por Agamben, talvez se possa pensar que o que comparece
como enigma no tempo atual (?) indicia o contemporâneo enquanto obscuridade,
uma vez que podemos pensar, com Lacan, o enigma como uma enunciação sem
enunciado. Sendo assim, pensar o sentido como conflito equivaleria a
circunscrevê-lo como sexual, indicando a direção em que ele sempre fracassa.
“Se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, isto só pode ser
para dar razão do seu limite”.*
Questão
de tempo
“A estrutura fenomenológica do desejo é
justamente valorizada no grau mediato das relações [relations] do porvir” –
Jacques Lacan, Psychologie et esthétique, 1935
Lacan, em resenha sobre o
livro de Eugène Minkowski (Le temps vecu. Études phenoménologiques et
psychopathologiques, 1933), afirmaria que há ali um grande esforço para
desespacializar o tempo – esse tempo sempre falseado pela medida, pela
cronologia e pelo apaziguamento do sentido enquanto conflituoso –, embora para
isso lance mão justamente de uma série de metáforas que colocam em ação a
espacialidade que tanto pretende fazer desmoronar, no intuito de impelir a
discussão para além do intento quotidiano: quando, sendo a temporalidade uma
questão, “nós olhamos instintivamente nosso relógio ou calendário como se em
relação ao tempo tudo se reduzisse a assinalar cada evento em um ponto fixo
para exprimir em anos, meses e horas a distância que separa uns dos outros”.*
Esse paradoxo, no entanto,
encontraria um desfecho no fim do livro – com a intuição mais original da obra,
segundo Lacan –: precisamente quando o autor opõe ao “espaço claro, enquadre da
objetividade, o espaço negro do tateio, da alucinação e da música”.* Logo,
vemo-nos diante de um espaço que descompleta sua própria possibilidade de ser
pensado como um todo minutado; um espaço que desconhece onde estão os seus
limites, os terrenos que lhe são de direito, bem como as fronteiras entre os
elementos que – sob a sua jurisdição aberta – interagem; espaço que, não por
acaso, se confunde com a dimensão do corpo extático:
(...) nem todos os
pensamentos estão alojados na cabeça: alguns jazem, ativos, ao redor da boca,
modulando o modo de comer, o timbre da voz, ou na superfície erétil dos seios;
outros permanecem colados aos olhos; outros, aos ouvidos; outros, na borda do
ânus; outros também marcam o sexo que, como todo mundo sabe, não pede opinião à
cabeça, e até só faz, eventualmente, o que lhe dá na sua cabeça – jogando,
inclusive, contra a cabeça.*
Acrescentaríamos, aí,
entre a alucinação e a música, a poesia: afinal, se “contemporâneo é aquele que
mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o
escuro”,* não seria por menos que o próprio Agamben faria da figura do poeta o
representante do contemporâneo como tal, capaz de ver na língua suas sombras e
fazer com elas algo que transgride (ao passo que também faz com que valham) as
regras luminosas da gramática. Em suma, é o fato de que escutar-se/ler-se como
um outro, é o fato de dar ouvidos ao que há do outro no código – e em si mesmo,
sem negligenciar o que atravessa o falante em seu dizer (um dizer que o excede)
– que constitui uma possibilidade de pensar aquilo que é invariavelmente
contemporâneo ao sujeito. Isto é, aquilo que nele incide e insiste, a despeito
da cronologia, sempre em dissonância com o acorde da atualidade: algo que é tão
arcaico quanto futuro, visto que “a contemporaneidade se escreve no presente
assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais
moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser
contemporâneo”.*
Digamos, pois, que uma
problematização da definição de contemporâneo para além da ideia de atualidade
é aquilo que permite depreender em que medida se poderia pensar a
contemporaneidade no âmbito do inconsciente, a saber, algo na pendência de uma
temporalidade que escapa por entre os dedos da cronologia e que, antes mesmo,
faz desse entremeio sua morada – essa khôra [χώρα] de que falava Platão no
Timeu [52b]: uma cisão radical no nível do próprio sentido; a indeterminação
como tal em forma de lugar-não-lugar. E o escape dessa temporalidade se marca
fundamentalmente por um comparecimento extemporâneo, por assim dizer, da origem
– de modo que ela se eclipsa em seu pretenso ponto de partida e se dá a ver no
convívio das questões mais atuais para o sujeito, assim “como o embrião
continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do
adulto”.* Não seria por menos, aliás, que Platão falaria da khôra como sendo
uma espacialidade que se oferece como que vista em sonho [ὀνειροπολοῦμεν
βλέποντες,
oneiropoloumen blepontes]; e tampouco seria por menos que, no que se refere ao
sonho, Freud apontaria como sendo a sua temporalidade precisamente aquela
trazida pelo verbo no presente do indicativo (Präsens).
O sonho, portanto, como
realização de desejo* – infantil, diga-se de passagem, o que mostra a infância
originária inarredá- vel ao sujeito e ao seu tempo coevo –, tem, em sua
dimensão presente, algo de sua inescapabilidade, ao mesmo tempo que é algo
inapreensível pelo tempo da vigília: o narrar do sonho não se dá sem deixar
restos, da mesma forma que aquilo que resta, enigmático (o umbigo do sonho,
Nabel des Traums, de que falava Freud), é justamente o vazio agudo em torno do
qual o texto onírico se estrutura.
Não é por menos que Freud
diz que o inconsciente é atemporal, no sentido em que não tem nenhuma relação
com o tempo [keine Beziehung zur Zeit]. O que está em jogo nessa operação entre
inconsciente e tempo é, para retomarmos os termos de Agamben* sobre o
contemporâneo, “uma singular relação”: na esteira de Lacan, chamemo-la rapport
[Verhältnis], isto é, uma relação pautada pela escrita (uma relação que se
escreve) – diferente, portanto, da relação enquanto relation [Beziehung]. Ora,
entre tempo e inconsciente, não há, portanto, relação, mas isso não no sentido
em que se fala que não há relação sexual (aforismo lacaniano no qual, segundo o
próprio autor, deve-se ler Verhältnis, e não Beziehung, uma vez que o que não
há é a escrita do ato sexual, rapport, e na medida em que sua formalização é
pura impossibilidade lógica). Na instância do desejo e das letras que escrevem
suas articulações, “um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em
todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu
tempo”* do mesmo modo que não pode fugir ao seu inconsciente: isto é, por mais
advertido que o sujeito esteja quanto ao fato de que, para ele, há desejo, este
lhe é incontornável. Dito ainda de outro modo: é inescapável o fato de que nele
há algo que se impõe, que age a despeito da sua vontade, e que marca – para
além da divisão entre um corpo e outro –, a própria divisão entre aquele que,
ao falar de si, é de um outro que estará falando.
Se apenas se pode dizer
contemporâneo “quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue
entrever nessas a parte da sombra, sua íntima obscuridade”,* é na possibilidade
de entrever outra cena – aquela de que nos fala Freud na Traumdeutung* –, ou
melhor, é na possibilidade de ser por ela afetado e permitir-se ressoar àquilo
que nela acena, que a psicanálise verifica uma autonomia possível do sujeito na
ordem do desejo. Dito de outro modo, a cisão do sentido – que dá a ver sua
dimensão de conflito e o circunscreve como sexual – abre para a indeterminação,
benfazeja aos olhos da psicanálise: indeterminação essa presente desde a
anatomia (não vista como destino) até a não-fixidez do objeto de desejo
(qualquer um, ainda que ele deixe de ser, a partir daí, um qualquer para
determinado sujeito).
Essa cisão é aquilo que,
sempre contemporâneo (presente e fugidio qual o sonho), deve ser assumido pelo
sujeito para que ele possa prosseguir sem tropeçar em si mesmo, sem ver em seu
desejo – que lhe é tão seu, embora por vezes lhe pareça tão estranho – um
percalço para seu devir. Digamos, pois, que é na condescendência com isso que,
a um só tempo, é originário e atual para o sujeito que estaria a possibilidade
de ser original, de fato. A originalidade, portanto, como operação significante
do sujeito em relação com a sua história, teria a ver com a aposta de ser
contemporâneo a seu tempo e, por assim dizer, com a não renúncia em se
reconhecer compatriota de seu próprio desejo. Evidentemente, encarar o
intempestivo [intempestif], o extemporâneo [unzeitgemäß], o atemporal [zeitlos]
– na pena de Barthes, Nietzsche e Freud, respectivamente – não se dá sem certo
trabalho [Arbeit]. Trabalho esse que, para Freud, estava presente no sonho
[Traumarbeit] mas também na perlaboração [Durcharbeiten]. Em suma, inseparável
daquilo que consiste um trabalho analítico [psychoanalytische Arbeit], afinal:
“perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou passividade, mas implica
uma atividade e uma habilidade particular que [...] equivalem a neutralizar as
luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas”.*
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