O
parceiro amoroso da mulher atual
Lêda
Guimarães
“Um homem quando ama é uma
mulher”, assim proferiu Pierre Naveau durante a jornada do ano 2000 da EBP-MG,
apoiado na formulação de Lacan “amar é dar o que não se tem”, o que determina
que a posição do amante contenha em si a condição de castrado. Por essa razão,
a sustentação de uma posição masculina implica numa desvalorização da vertente
do amor e na prevalência da vertente erótica na constituição das parcerias,
como um mecanismo defensivo fundamental para sustentar a identificação viril
enquanto dotado de falo. Mas isso não quer dizer que os homens não saibam amar,
como costumam se queixar as mulheres, pois ainda que mantenham como linha de
frente o traço perverso da sua fantasia sexual, acabam escolhendo uma mulher, dentre
as demais, como seu objeto de amor privilegiado.
Seria também engano supor que
as mulheres são mais especialmente dotadas da capacidade de amar. Sua
incessante demanda de amor contém toda uma carga sexual que resulta na
erotomania própria ao estado de apaixonamento, no qual o gozo feminino é
experimentado sob o modo de um arrebatamento, que mantém em primeiro plano uma
justificação em nome do amor: “me ame, mais, mais e mais ainda”.
Para traçar algumas
formulações acerca do parceiro amoroso da mulher atual, vejamos inicialmente o
que Lacan nos diz, no livro 18 do seu Seminário, acerca do modo como um homem
poderá ser definido:
O
importante é o seguinte, a identidade de gênero é o que acabei de expressar com
estes termos ‘homem’ e ‘mulher’. É claro que a questão do que surge
precocemente só se coloca a partir de que, na idade adulta, é próprio do
destino dos seres falantes que se distribuam entre homens e mulheres. Para
compreender a ênfase que se coloca nessas coisas, neste caso, é necessário nos
darmos conta de que o que define o homem é sua relação com a mulher e
vice-versa.
Tomando essa implicação
direta entre homens e mulheres em sua parceria sintomática, pretendo
desenvolver algumas formulações acerca das mulheres contemporâneas, levantando
a hipótese de que o declínio do viril não poderia ter sido engendrado na
história da civilização sem a contribuição, ou até mesmo a imposição da sua
parceira-sintoma.
Ocorreu na civilização, em
um dado momento propício, um fato radicalmente novo nas parcerias entre homens
e mulheres. A partir do século XII, o sonho do amor eterno que faz pulsar o
coração da feminilidade, alcançou um estatuto simbólico na configuração da
realidade de nossa sociedade. Através do surgimento do amor cortês o estatuto
simbólico desse sonho emergiu nas palavras de amor do cavalheiro gentil,
dirigidas à sua dama inacessível. Com a passagem dos ditos do amor cortês para
o campo da escrita, através das cartas de amor e das ficções literárias dos
romances impossíveis, o sonho feminino do amor eterno ganhou um estatuto
simbólico de verdade.
A aposta na crença do
sonho de amor produziu nos últimos séculos a liberdade social para constituir
os laços de casamento. O feminismo aqui se estabeleceu como o motor fundamental
dessas transformações, se instituindo inicialmente como a luta das mulheres
para alcançar uma independência econômica que lhes permitisse a liberdade de
escolha da sua parceria amorosa. Desse modo, apoiadas na crença das palavras do
amor cortês, as mulheres empreenderam uma luta contra as tradições da família
patriarcal, que determinava as regras dos laços de casamento. A gênese do
feminismo tomou, assim, como ponto de mira o desafio à autoridade paterna,
àquele que era concebido como o juiz que ordenava a linha do destino das
mulheres. Podemos supor, dessa maneira, que o grande motor do feminismo foi
impulsionado pela aposta nas promessas do amor cortês, instituindo com suas
ganas o declínio da imago paterna na civilização.
Oh! Lindo e esplendoroso
amor, em que o cavalheiro servil se curvava extasiado diante de sua deusa: A
Mulher impossível!
Porém, com o advento do
feminismo, no qual A Mulher quis engendrar-se como possível, imediatamente esse
lindo amor começou a desaparecer, pois à medida que as mulheres passaram a
falar em resposta ao apelo apaixonado do seu amante, a desgraça começou a se
abater sobre a virilidade dos homens, reduzindo suas promessas de amor eterno
ao ridículo de meras falácias, instituindo a derrocada do viril.
Emerge, desse modo, das
entranhas do amor cortês, o casal contemporâneo: a mulher superpotente com seu
homem desvirilizado. De um lado da balança, que mantém o equilíbrio erótico da
gramática fantasmática pulsional, temos a mulher multimídia, multifacetada em
suas várias potências, autônoma, independente, capaz, sustentando uma máscara
da feminilidade que contém várias faces: “A profissional realizada”, “A
politizada, culta, intelectual”, “A administradora do lar”, “A mãe
psicopedagogizada”, “A malhadora diet”, “A amante liberada”. Para sustentar
essa série de potências fálicas, o amor nas mulheres passou a ser concebido
como uma patologia, e nos homens como uma mentira.
A manutenção dessa
descrença no amor se fez sob o preço de fortes defesas obsessivas nas mulheres,
o que não implica necessariamente nos fenômenos das compulsões obsessivas, mas
no modo como as mulheres sustentam o seu ser na amarração da sua estrutura
subjetiva. Não encontramos mais tão facilmente na prática da psicanálise
mulheres que sustentam o seu ser na divisão subjetiva histérica, que manteria
seus ditos sobre o ser no campo de uma indefinição: “não sei bem o que quero,
não sei bem o que sou”. Há, em contrapartida, uma forte prevalência da
afirmação do eu na posição subjetiva central das mulheres - “sou o que penso”,
conforme o cogito cartesiano do eu e como propõe a máscara da feminilidade
contemporânea em suas múltiplas potências.
Disso resulta uma forte
imposição na subjetividade feminina da coação do pensamento, defesa
privilegiada do registro imaginário, que tem por função o recobrimento da
dimensão do desejo. Esta estratégia obsessiva, por excelência, consiste num
mecanismo de afastamento da dimensão do amor, já que o amor tem a ver com a
falta, e não com a unidade imaginária do eu.
Então, como as mulheres
obsessivas fazem existir o amor? Através do homem do seu pensamento. Fazem
existir o homem que é o falo em seu ser, já que elas, por mais que queiram
sustentar em si uma máscara fálica, bem sabem que esse falo elas não têm. Desse
modo, fazem existir o homem completo do seu pensamento para amá-lo, mas
precisamente por isso o odeiam, resultando no odioenamoramento.
E do outro lado da balança
das parcerias-sintomáticas atuais, o que dizer dos homens contemporâneos que se
sujeitam a essas mulheres que atacam sua virilidade todos os dias? Como
nomeá-los?
Encontramos em Lacan, na
Conferência de Genebra sobre o sintoma, uma nomeação para os homens que poderá
ser traduzida para o português através do termo ‘pássaro-raro’. Trata-se da
expressão na língua francesa drôle d’oiseau, na qual a palavra drôle pode
significar ao mesmo tempo: raro, esquisito, estranho; cômico, que faz rir pela
sua originalidade e sua singularidade; bizarro, surpreendente, curioso.
Destacando o sentido bizarro, enigmático dessa expressão, retomamos a questão
desse trabalho para perguntar como esses pássaros-raros conseguem suportar suas
mulheres. Pergunta que as mulheres não costumam fazer a si mesmas, enquanto se
mantêm encerradas no seu gozo neurótico do odioenamoramento. Mas ao longo das
suas análises, quando começam a se afastar da inveja do pênis, passam a se
intrigar com esse pássaro-raro, formulando as questões: Como eles suportam, em
relação a si mesmos, o grande peso da sustentação de um falo que não têm? Como
eles suportam, em relação às suas parceiras, que lhes arranquem as penas todos
os dias? Como, por fim, não desistem de constituir uma parceria permanente com
as mulheres?
Diante dessas mulheres
ditas liberadas, independentes e capazes, que já se apresentam com o brasão
“não acredito mais no amor”, este novo homem pós-amor cortês ainda assim,
felizmente, se mantém como um soldado remanescente de uma guerra perdida, que
não desistiu da vertente adorável da luta entre os sexos e propõe um terreno de
trégua. Esse novo homem, que não desistiu dos seus anseios de ser amado por uma
mulher, em lugar de proferir suas juras de amor, já que nestas palavras as
mulheres já não mais acreditam, formula a sua súplica pela via do semblante,
utilizando tão sabiamente estratégias próprias à histeria. Vestindo a nova
roupagem do homem pós-moderno faz surgir o homem metrosexual, que tenta se
feminilizar com os adereços estéticos propostos pelas mulheres contemporâneas,
entregando-se a elas como o seu novo brinquedo. E, deixando assim se fazer de
feminilizado, sustenta um apelo ao romantismo. Súplica muda desse homem, tão
fragilmente dependente do amor de uma mulher.
Deste modo, esta tem sido
a estratégia apaziguadora que o novo homem da atualidade vem utilizando para fazer
laço de parceria com as mulheres, para tentar preservar o amor que aí venha a
ser nutrido: ele já se apresenta como castrado, destituído de qualquer potência
fálica que lembre de perto alguma sombra daquilo que as feministas definem como
machismo. Cultivam, assim, o declínio do viril como modo de fazer apelo ao
amor.
In: Opção Lacaniana online - Ano 2 • Número 5 • Julho 2011
Um comentário:
Anos atrás ministrei umas poucas palestras sobre lógica na Delegação Paranaense da Escola Brasileira de Psicanálise. Do pouco contato que tive com psicanalistas, especialmente lacanianos, creio que o vídeo abaixo talvez seja de interesse.
https://vimeo.com/169044757
Grato
Adonai Sant'Anna
adonai@ufpr.br
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