Soberania
e poder em Sobre a Revolução de Hannah Arendt
Renata Romolo Brito
Pretendo analisar, neste
artigo, a noção de abolição da soberania que Arendt propõe no capítulo 4 de
Sobre a Revolução. Antes de analisar essa afirmação, entretanto, cabe lembrar
que Arendt pensa o princípio da soberania juntamente com a noção de Estado-nação,
e uma de suas primeiras reflexões sobre o assunto se iniciou em Origens do
Totalitarismo, em que o princípio da soberania é analisado em conjunto com o
fenômeno da apatridia. Foi a situação problemática do vácuo de legalidade que
recaiu sobre o apátrida que a levou a elaborar a importante noção do direito a
ter direitos, e esse vácuo é devido diretamente ao exercício da soberania plena
pelos Estados-nações. Voltando então a essas reflexões, argumento que não
podemos compreender a noção de abolição da soberania e a crítica arendtiana a
esse princípio de forma dissociada de sua crítica ao nacionalismo e aos
direitos humanos, e em resposta ao artigo “Banishing the Sovereign? Internal
and External Sovereignty in Arendt”, de Cohen e Arato, pretendo mostrar que,
antes de abolir o soberano, Arendt pretende repensar criticamente essa noção à
luz de um novo conceito de poder.
A crítica arendtiana à
noção tradicional de direitos humanos é construída em duas etapas. O primeiro
argumento de Arendt é que a ideia de Homem, ou de uma natureza humana que
fundamentaria esses direitos, é uma abstração que contraria a realidade da
existência humana na Terra, isto é, o fato de que os homens existem de forma
plural. Tal abstração nega a condição essencial da política, isto é, a
pluralidade.
Seu segundo argumento,
também vinculado ao primeiro, está ligado à ineficácia prática desses direitos
no momento em que uma pessoa perdia a proteção de um Estado e não encontrava
mais nenhum outro Estado disposto a acolhê-la, tal como ocorreu com um imenso
número de pessoas no início do século passado. Essa situação era causada
diretamente pela ação dos Estados-nações, e revelava, de acordo com Arendt, um
problema intrínseco na organização política desses Estados, evidenciando um
problema subjacente ao próprio sistema de Estados-nações e seu ideal de
soberania. Em outras palavras, a dinâmica de se unir os direitos do cidadão aos
direitos do nacional, estabelecendo-se por meio de uma ideologia excludente de nacionalismo,
gerou a perda da cidadania em um sistema que não tinha recursos para remediar
essa situação – visto que, de acordo com a ordem internacional, a perda do
status legal em um Estado significava também sua perda em todos os outros
países.
Assim, os Estados-nações,
ao exercerem suas prerrogativas soberanas, geraram o fenômeno da apatridia. O
que eles fizeram, segundo Arendt, foi passar a reconhecer como cidadãos apenas
os “nacionais” e a proteger unicamente os interesses da nação, retirando da
proteção das leis e dos direitos civis parte de seus habitantes. Fora da
estrutura estatal, o apátrida se encontrava em um completo vácuo de legalidade,
e os direitos humanos, idealizados para evitar tal vácuo, simplesmente não
existiam. Na prática, portanto, os direitos humanos só podiam ser aplicados
como direitos civis, o que significava direitos dos nacionais. E por causa da
ideologia nacionalista e da consequente corrupção do Estado pela nação, vários
grupos foram excluídos da proteção do direito apenas pelo fato de serem
diferentes ou terem perspectiva diversa da dominante.
Em função do colapso do sistema
estatal europeu e das desnacionalizações em massa, Arendt reconheceu que a
soberania (entendida como soberania nacional) só havia sido possível no passado
enquanto existiu um espírito de solidariedade (ainda que desorganizado) que
mantinha a validade dos acordos entre os Estados – os dissuadindo de exercer
por completo seu poder soberano. Os direitos humanos, pensados
tradicionalmente, não eram suficientes para proteger os cidadãos de qualquer
Estado. Em vista disso, Arendt defendeu que o primeiro e único direito humano é
o direito a pertencer a algum corpo político, quer dizer, o direito a ter
direitos e a ter uma personalidade legal – o que importa na possibilidade de
participar na esfera pública e ter sua voz ouvida pelos demais. Isso revela que
os direitos, quaisquer que sejam, só possuem sentido dentro de um Estado e em
âmbitos de participação e reflexão políticas.
No entanto, Arendt está
ciente de que mesmo o Estado que não fora tomado pela ideologia nacionalista
possuía prerrogativas soberanas idênticas em relação à definição da cidadania,
e a mesma capacidade de negar proteção a determinados indivíduos. A arbitrariedade
dos atos de fundação e do estabelecimento de limites territoriais, que vão
traçar os limites de quem possui e quem não possui cidadania, é um problema
estrutural intrínseco ao Estado soberano circunscrito. A questão se volta,
consequentemente, para os limites do poder do Estado, isto é, para o conceito
de soberania, já que são os atos soberanos do Estado que definem o
pertencimento de seus indivíduos.
A soberania exercida de
forma plena, no pensamento arendtiano, é associada ao ideal da autossuficiência
e do autodomínio. Arendt faz uma distinção entre os conceitos de livre-arbítrio
e liberdade, afirmando que são fenômenos distintos e que apenas a liberdade se
relaciona com a pluralidade e com a política. Ela destaca ainda que foi o
livre-arbítrio, ao ser tomado como modelo para a reflexão sobre a liberdade, que
trouxe como ideal para o espaço público uma forma de se entender o “ser livre”
relacionada com a soberania, anulando a pluralidade e isolando os homens. Para
Arendt, a liberdade significa trazer a existência algo que antes não existia,
significa iniciar algo novo; relaciona-se, portanto, com a ação, com o mundo e
com a pluralidade. Já o livre-arbítrio relaciona-se com a vontade, sendo
derivativo da liberdade mundana. Arendt afirma que, no momento em que o homem
não pode mais ser livre no mundo, e isso significa que não possui mais
liberdade de ir e vir, liberdade de opinião e possibilidade de agir no espaço
público, o homem volta-se para sua interioridade em uma busca de sentir-se
livre, refugiando-se nas faculdades do pensamento e da vontade. Nessa fuga do
mundo para o interior, a liberdade passa a ser associada à vontade e começa a
ser entendida como livre-arbítrio, que significa uma liberdade de escolha que
arbitra e decide entre duas opções já dadas. Essa escolha não exprime a
liberdade de começar algo novo, mas apenas a preferência entre uma ou outra
coisa, sendo soberana quando essa preferência não é contestada ou quando é bem
sucedida em eliminar quaisquer obstáculos para sua realização. Porque a
liberdade política foi identificada à noção de livre-arbítrio, o ideal da
liberdade no mundo passou a ser a soberania e não mais o virtuosismo ou a
excelência da ação, o que trouxe para a política um modelo da independência ou
autossuficiência. O homem ou o Estado livres passam a ser aqueles que independem
dos demais e que eventualmente prevalecem sobre eles, sendo capazes de realizar
sua vontade. Em função disso, Arendt defende que a liberdade, enquanto
relacionada com a política e com a pluralidade, não é um fenômeno da vontade, e
que soberania e liberdade são, de fato, incompatíveis. Para ela, a soberania
significa a imposição de uma vontade a todos os demais e, portanto, a
eliminação da autonomia e da liberdade desses. Com uma noção de soberania
baseada na faculdade da vontade, que emite comandos que devem ser obedecidos e
que não deixa espaço para persuasão e contestação, Arendt se coloca inclusive
contra a noção de soberania popular, entendida ainda de acordo com o modelo
absolutista europeu, isto é, como o dogma de um poder centralizado e unitário
sendo exercido pela imagem fictícia de um povo compreendido como uma nação
indivisa que é anterior e superior a todas as leis.
Em seu artigo “Banishing
the Sovereign? Internal and External Sovereignty in Arendt”, Cohen e Arato
afirmam que o entendimento arendtiano em relação ao conceito de soberania
limita sua reflexão e a leva a uma conclusão que se restringe a uma separação
(não cabível) entre soberania interna e externa. Na verdade, eles argumentam
que Arendt propõe a abolição da soberania interna, enquanto afirma ainda a
conservação da soberania externa, o que manteria intocado o problema estrutural
que gerou o fenômeno dos apátridas e também não resolveria as questões internas
de organização do corpo político.
Em relação à soberania interna,
Cohen e Arato citam a afirmação de Arendt, em Sobre a Revolução, de que a
grande inovação da política americana, especialmente a longo prazo, foi a
consistente abolição da soberania dentro do corpo político da república, além
da compreensão de que soberania e tirania significam o mesmo no espaço público.
Essa abolição teria sido conseguida através de instituições constitucionalistas
e federativas, tais como o domínio da lei e a repartição de poderes. Para
Arendt, afirmam esses autores, soberania é uma reivindicação de controle e
domínio, exprimindo supremacia jurisdicional de uma única instância política
sobre um território, e é construída ainda como uma afirmação da vontade de um
soberano que se coloca acima da lei, não havendo diferenças se esse comandante
é um único homem, um órgão do governo ou o povo imaginado como uma única
entidade. Estando acima das leis, a vontade do soberano é a própria fonte de
legitimidade delas e, ao mesmo tempo, não se encontra limitada por elas, sendo,
consequentemente, arbitrária. Tendo como ideal uma vontade desobstruída, essa
noção de soberania tem um discurso completamente antipolítico. Enquanto a
liberdade é concebida como agir em conjunto com seus pares, a soberania e o
livre-arbítrio são concebidos como comando de um sobre os demais. Tal distinção
é correlata à distinção entre as noções de política e soberania, as quais são
compreendidas como completamente opostas. A soberania é concebida, portanto,
como monológica, isoladora, voluntarística e hierarquizadora, obstando a
liberdade, a deliberação e o diálogo.
Cohen e Arato, no referido
artigo, ainda enfatizam que, de acordo com o entendimento arendtiano dessa
noção, a soberania se tornaria antitética ao próprio Estado de Direito, à
existência do sistema de pesos e contrapesos, à cidadania igualitária e ao
constitucionalismo, representando, factualmente, uma ditadura. Eles acrescentam
ainda que Arendt também relaciona a soberania irrevogavelmente a um
entendimento contrário ao sistema representativo, porque a soberania é
vinculada ao órgão de representantes que personifica o governo e usurpa o
espaço político. Visto que a característica central do entendimento arendtiano
da noção de soberania se mantém intacta em suas várias formas – quer dizer, a
característica de uma vontade irrestrita, acima de lei e como fonte desta, se
encontra tanto na noção de soberania monárquica quanto na soberania popular –
Arendt apontaria as mesmas falhas para ambos os modelos de soberania (e,
conformemente, para o sistema representativo). Para a substituição da soberania
monárquica pela soberania popular, as noções de absoluto e único, antes
associadas ao monarca, são agora transferidas para o ideal do povo, o que
propiciaria a incompatibilidade com o constitucionalismo, além de manter a exclusão
do povo em relação ao espaço público. Consequentemente, Arendt pretenderia, de
acordo com os autores, eliminar o discurso da soberania como um todo e deixar o
lugar do soberano vazio. O que, entretanto, não a impediria de afirmar a
soberania externa, já que a aparência de unidade diante dos outros Estados não
elimina o espaço público interno, onde os cidadãos podem participar e deliberar
a fim de chegar a decisões conjuntas. Cohen e Arato afirmam também que um
segundo motivo para que Arendt não critique a soberania externa da mesma forma
como o faz com a soberania interna é que a noção arendtiana de relações
internacionais não se enquadra dentro de seu conceito estrito de política.
Conforme esses autores, portanto, a crítica arendtiana à soberania resultaria
apenas na tentativa de cindir as noções de soberania interna e externa, o que
permitiria a existência de política internamente, mas manteria um cenário
político internacional intocado, ou seja, incapaz de lidar com o problema do
apátrida.
Considerando a análise
arendtiana em relação à situação dos apátridas, Cohen e Arato reconhecem que
Arendt tocou em pontos relevantes no que diz respeito à soberania externa,
especialmente em função da conclusão contundente do volume sobre o
imperialismo, em Origens do Totalitarismo, que demonstra como o exercício
absoluto da soberania pelo sistema de Estados-nações não só gerou o fenômeno da
ausência de legalidade, como contribuiu para privar internamente cidadãos de
seus direitos básicos. A relação entre soberania interna e externa não pode ser
simplesmente cindida, e mesmo na América, onde Arendt afirma que a soberania
interna foi abolida, o risco para os direitos civis e a personalidade legal dos
cidadãos em momentos de crise é grande quando não há limitações para sua
soberania externa. Por isso, Cohen e Arato argumentam que, embora Arendt não
tenha explicitamente se dedicado ao assunto, ela percebia a ligação entre as
duas noções de soberania. Eles afirmam ainda que, externamente, não há
diferenças entre repúblicas federativas e Estados-nações, porque ambos são
Estados territoriais igualmente soberanos em assuntos de imigração,
naturalização, nacionalidade, expulsão e política externa. Dessa forma, a
análise arendtiana do efeito boomerang durante o movimento imperialista do
século XIX aplica-se inteiramente a repúblicas federativas atuais, e ela estava
certa em defender a necessidade de abandonar os ideais de um Estado-nação
homogêneo e da soberania como uma prerrogativa discricionária de uma vontade
ilimitada, absoluta e acima das leis. O problema se encerra, para Cohen e
Arato, no fato de que Arendt teria proposto a abolição da soberania interna e
terminado assim sua reflexão. Aceitando as críticas arendtianas à noção de
soberania, Cohen e Arato propõem que, ao invés de abandonar esse conceito, ele
precisa ser, pace Arendt, repensado e
transformado para se adequar aos Estados atuais. Eles defendem ainda que sua
abolição, não importa em que âmbito, é impossível, visto que mesmo repúblicas
federativas precisam da noção de soberania interna para que suas instituições
funcionem. Eles argumentam que o pensamento arendtiano fornece ferramentas para
essa reconfiguração conceitual, no entanto, para eles, Arendt não teria seguido
por essa direção ao manter-se presa à noção absoluta de soberania e fixada na
ideia de simplesmente abandonar esse conceito por inteiro.
De acordo com a ideia de
transformar e não abolir o conceito de soberania do discurso político, Cohen e
Arato observam que soberania, como instituição e como discurso, não precisa ser
entendida de uma forma única e absoluta, sendo irrevogavelmente uma noção dupla
que envolve uma relação entre lei e poder, entre política o domínio, vontade e
razão, fato e norma, legitimidade e legalidade, unidade e pluralidade, e, como
as demais noções políticas, pode ser contestada e reconfigurada no processo
político. Gostaria de sugerir que essa tese de Cohen e Arato, de reconfigurar
conceitualmente da noção de soberania, já se encontra na obra arendtiana. Em
Sobre a Revolução,
Arendt apresenta uma noção
de lei como acordo ou de lei como o estabelecimento de conexões e relações através de alianças e tratados. Essa ideia de que a lei
estabelece conexões
entre os agentes, que vincula-os e estabelece compromissos entre eles, pode ser
estendida para o domínio internacional e funcionar como um meio de limitar a
soberania e estabelecer os princípios de um sistema político internacional. Em
A Condição Humana, Arendt textualmente indica
essa via, afirmando que:
A
soberania, que sempre é espúria quando reivindicada por uma entidade única e
isolada, quer seja a entidade individual da pessoa ou a entidade coletiva da
nação, passa a ter certa realidade limitada quando muitos homens se obrigam
mutuamente através de promessas. A soberania reside numa limitada independência
em relação à impossibilidade de calcular o futuro, e seus limites são os mesmos
limites inerentes à própria faculdade de fazer e cumprir promessas. A soberania
de um grupo de pessoas cuja união é mantida, não por uma vontade idêntica que,
por um passe de mágica, as inspirasse a todas, mas por um propósito com o qual
concordaram e somente em relação ao qual as promessas são válidas e tem o poder
de obrigar, fica bem clara por sua inconteste superioridade em relação à
soberania daqueles que são inteiramente livres, isentos de quaisquer promessas
e desobrigados de qualquer propósitos.
Essa noção de soberania
limitada, com base na ação, oferece um princípio para que se repense esse
conceito, ainda dentro da filosofia arendtiana. De fato, os ideais de
homogeneidade e arbitrariedade são abolidos em favor da pluralidade e da ação
política. Cohen e Arato entendem de forma absoluta a dicotomia arendtiana entre
política e soberania (e entre relações de liberdade e relações de comando,
isonomia e domínio), o que reduz a soberania à arbitrariedade e à ilegalidade
irreversivelmente. É verdade que essa dicotomia aparece por vezes na obra
arendtiana de forma aparentemente conclusiva, o que acaba por obscurecer a
possibilidade de repensar a institucionalização de uma soberania limitada e de
um regime internacional de garantia aos direitos humanos; no entanto, por meio
da ação, é justamente essa a possibilidade política que Arendt propõe.
É necessário, por isso,
analisar até que ponto a afirmação arendtiana de que a Revolução Americana
aboliu a soberania interna implica a conclusão de Cohen e Arato de que o lugar
do soberano, para Arendt, deve ficar vazio. Ao opor soberania e política,
Arendt tem em mente um conceito bastante específico de soberania.
Arendt traça
filosoficamente esse conceito ao relacioná-lo com a faculdade da vontade e com
o livre-arbítrio, e o define como o ideal da autossuficiência (em direta
oposição ao ideal da liberdade política, que existe na pluralidade). Política e
historicamente, Arendt relaciona a noção de soberania com a experiência dos
Estados-nações europeus. No prólogo de Responsabilidade e Julgamento, Arendt
menciona, em uma nota biográfica, a diferença que sentiu ao adentrar o corpo
político americano e o que deixava para trás na Europa. Enquanto os
Estados-nações europeus possuíam populações homogêneas, com um senso orgânico
de história, divididos mais ou menos decisivamente em classes sociais e guiados
por um ideal de soberania nacional que se apresentava como raison d’etat, o que
culminava na ideia de que, quando necessário, a diversidade deveria ser sacrificada
pela union sacrée da nação, os Estados Unidos possuíam um ideal civil de
pertencimento e cidadania, o que permitiu a Arendt adquirir cidadania sem
precisar pagar o preço da assimilação. O princípio da soberania que Arendt
critica, e que aponta como ideal regulador do sistema dos Estados-nações cujo
colapso causou o fenômeno da apatridia, está sempre politicamente acompanhado
da característica fundamental do Estado-nação, qual seja, a homogeneidade, que
implica uma noção de poder indivisível exercido por um único ente (nesse caso:
a nação). É a homogeneidade étnica da nação que dá um caráter natural e
definitivo à identidade coletiva que toma conta do corpo político, resultando
não apenas no nacionalismo, mas também no racismo e no antagonismo diante de
outros povos. Consequentemente, essas características – de homogeneidade
natural, antagonismo diante do outro, indivisibilidade do poder, independência
nacional, existência autárquica – todas elas são incorporadas em sua forma
máxima na figura do Estado-nação regido pelo princípio da soberania, e
portanto, não podem ser dissociadas da crítica arendtiana a esse princípio.
A soberania é, para
Arendt, tanto filosófica, quanto politicamente (em seu modelo tradicional)
monológica, relacionada à realidade ou à ficção de um único arbítrio, o que
importa em uma noção de poder necessariamente indivisível. Em “On the Nature of
Totalitarianism: An Essay in Understanding”, Arendt se volta para a questão da
natureza do governo, e aponta que Montesquieu, embora tenha articulado a noção
de divisão de poderes, ainda definia erroneamente os governos como se o poder
fosse necessariamente soberano e indivisível. Arendt afirma que foi Kant, em A Paz Perpétua, quem introduziu a
divisão correta entre formas de dominação e formas de governo. Para o filósofo,
as formas de dominação são distinguidas unicamente pelo locus de poder indivisível: nos Estados em que o príncipe possui o
poder soberano, existe uma autocracia; nos Estados em que a nobreza possui esse
poder, existe uma aristocracia; e quando é o povo que exerce o poder absoluto,
a dominação tem o nome de democracia. Arendt enfatiza que o objetivo kantiano
com essa divisão é que todas essas formas de governo são estritamente ilegais,
pois todas são, fundamentalmente, dominação. O governo só pode ser
constitucional e legal quando estabelecido por meio de uma divisão de poderes,
em que o mesmo corpo, órgão ou pessoa não acumula as funções legislativas,
executivas e judiciárias. O governo constitucional, legal e legítimo, portanto,
se distingue do governo despótico pela separação de poderes. O que é importante
retermos aqui é a associação que Arendt faz entre o conceito de soberania a
noção de indivisibilidade do poder, que precisa ser exercido por um único ente,
o soberano, seja esse soberano um tirano ou a ficção do povo ou da nação como
uma entidade homogênea.
Tendo essa noção de
soberania em mente, fica clara a afirmação arendtiana de que, nos Estados
Unidos, a soberania foi abolida internamente por meio do estabelecimento de uma
divisão de poderes. O que Arendt opõe com a distinção entre as noções de
soberania e política são as noções de dominação (ou de poder indivisível) e de
poder legitimamente constituído.
O contexto em que ela traz
a ideia de abolição da soberania em Sobre a Revolução é o problema da
constituição do poder. Analisando o caso específico da fundação do corpo
político americano, Arendt também defende um novo conceito de poder (o poder
que emerge da ação em conjunto) contra a noção tradicional de que poder é
dominação e controle, e que diminui se dividido. Ela inicia sua argumentação da
seguinte forma:
O
poder só pode ser refreado e ainda continuar intacto pelo poder, de forma que o
princípio da separação do poder não só fornece uma garantia contra a monopolização
do poder por uma parte do governo como também oferece efetivamente uma espécie
de mecanismo, embutido no próprio núcleo interno do governo, que gera
constantemente um novo poder, que, porém, não é capaz de crescer e se expandir
em prejuízo de outros centros ou fontes de poder. (...)
Esse
aspecto da questão geralmente é deixado de lado porque pensamos a divisão do
poder apenas em termos de sua separação nos três ramos do governo. Mas o
problema principal dos fundadores era como estabelecer a União a partir de
treze repúblicas “soberanas”, devidamente constituídas; a tarefa deles era
fundar uma “república confederada” que – na linguagem da época, tomada a
Montesquieu – reconciliasse as vantagens da monarquia nos assuntos estrangeiros
e as vantagens do republicanismo na política interna. E aqui, nesta tarefa da
Constituição, não se tratava mais de constitucionalismo no sentido dos direitos
civis – mesmo que então tivesse se incorporado à Constituição uma Declaração de
Direitos sob a forma de emendas, como complemento necessário a ela –, e sim de
criar um sistema de poderes que se refreassem e se equilibrassem de tal forma
que nem o poder da União nem o poder de suas partes, os estados devidamente
constituídos, viessem a de diminuir ou se destruir mutuamente.
O que Arendt aponta, nesse exemplo de
fundação, é precisamente a necessidade de uma noção de poder que é
compartilhado pelas partes e que cresce pela ação em conjunto de suas partes,
isto é, um poder político que emerge da ação, e não o controle de uma parte por
outra. Ela continua:
No
plano da prática e da formação de instituições, convém examinar o argumento de
Madison sobre a proporção e o equilíbrio do poder entre o governo federal e os
governos estaduais. Se ele acreditasse nas noções correntes da indivisibilidade
do poder – que poder dividido é menos poder –, teria concluído que o novo poder
da União teria de se fundar em poderes cedidos pelos estados, e, assim, quanto
mais forte ela fosse, mais fracas ficariam suas partes constituintes. Mas seu
argumento era que o próprio estabelecimento da União havia fundado uma nova
fonte de poder, que não extraía de maneira nenhuma sua força dos poderes dos
estados, na medida em que não havia se estabelecido às expensas deles. (...)
Neste aspecto, a grande – e a longo prazo talvez a maior – inovação americana
na política como tal foi a abolição sistemática da soberania dentro do corpo
político da república, a percepção de que, na esfera dos assuntos humanos, soberania
e tirania se equivalem.
Porque Arendt trata de
duas concepções diferentes de poder – a tradicional, vinculada à soberania, em
que poder é indivisível e que se constitui assumindo o poder, ou controle, de
todas as outras partes, e a noção de poder político gerado pela ação em
conjunto – ela pode afirmar que a soberania foi abolida. Com efeito, é a
concepção monológica de poder soberano o que foi abolido. Isso não significa,
como afirmam Cohen e Arato, que Arendt pretende deixar o lugar do soberano
vazio, e sim que o corpo político precisa se organizar em torno do
estabelecimento de um novo conceito de poder, gerado legitimamente pela ação.
Arendt conclui: “É evidente que o verdadeiro objetivo da Constituição americana
não era limitar o poder, mas criar mais poder, de fato criar e constituir devidamente
um centro de poder inteiramente novo (...)”. Apontando mais uma diferença entre
a Revolução Francesa e a Revolução Americana, entre os Estados-nações europeus
e o corpo político sendo formado no novo continente, Arendt revela que o alvo
de sua crítica é a noção de soberania que legitima a dominação por meio de
práticas antidemocráticas, afirmando que os revolucionários americanos “não
estavam pensando em termos de uma ficção e de um absoluto, a nação acima de
qualquer autoridade e absolvida de todas as leis, e sim em termos de uma
realidade existente, a multidão organizada cujo poder era exercido de acordo
com as leis e limitado pelas leis.”
A questão se volta,
consequentemente, para a possibilidade de agir e participar do corpo político
de que se faz parte. A ficção da soberania popular, em que o povo ou a nação
ocupa o lugar antes do príncipe, não altera em nada a noção de poder como
dominação. E juntamente com a ideologia do nacionalismo, seja na forma do
Estado-nação ou no ideal da soberania popular, permanecem as características da
homogeneidade, arbitrariedade, separatismo e agressividade que Arendt tão bem
apontou ao tratar do problema dos apátridas e das minorias étnicas gerados pela
atuação de Estados-nações soberanos.
Não é possível dissociar a
crítica arendtiana aos direitos humanos das questões de nacionalismo e
soberania, e a conclusão a que Arendt nos leva com a noção de direito a ter
direitos, isto é, que qualquer direito tem sentido apenas em âmbitos políticos
de reflexão e discussão, tem de ser estendida também àquelas questões. Não
existem ideais políticos que não precisem ser contestados, repensados,
reconfigurados e ressignificados em cada novo corpo político, porque apenas
assim eles podem ser assimilados e aceitos pelos membros da comunidade como
seus próprios ideais. Qualquer princípio, por mais revolucionário que tenha
sido seu surgimento em um determinado momento político ou na história das
ideias, precisa ser continuamente analisado e refletido em ambientes de
diversidade e discussão para ter relevância e significado dentro de contextos
políticos específicos e em comunidades reais. Ao apontar a tensão entre os
direitos humanos e o princípio da soberania, Arendt revela a necessidade de
repensar criticamente essas questões – de trazê-las para processos políticos contextualizados
em que seu significado possa ser comunicativamente estabelecido pelos cidadãos
– juntamente a um grave alerta em relação aos problemas criados pela maneira
pela qual eles foram pensados no passado.
É importante notar que
Habermas, em A inclusão do outro, ao
tratar da questão de se o Estado nacional tem futuro, observa a relação entre o
conceito de democracia e o conceito de soberania. Segundo ele, as visões
substancialistas e procedimentalistas da democracia conduzem a conceitos
bastante distintos de autodeterminação nacional, multiculturalismo, e consequentemente,
de soberania do Estado. Uma visão substancialista de democracia, que entende
por autodeterminação democrática a autoafirmação e a autorrealização coletivas
de membros homogêneos ou participantes de uma mesma comunidade, traz consigo
uma noção de soberania cujo aspecto relevante é a soberania exterior. A
manutenção de poder do Estado dentro do sistema internacional é o que garante a
identidade da nação diante das demais, e, internamente, a soberania não precisa
ir além da imposição eficiente da ordem jurídica do Estado aos seus cidadãos e
residentes. Já uma noção procedimentalista de democracia implica a participação
de cidadãos livres e iguais nos processos de tomada de decisão, e isso traz
consigo uma noção de soberania vinculada ao fundamento democrático de
legitimação do poder. Internamente, não basta paz, ordem ou identidade coletiva
para legitimar o Estado, mas sim procedimentos de participação democrática abertos
a todos. Essa distinção habermasiana entre concepções de soberania esclarece
ainda mais o contexto da afirmação arendtiana de que a soberania foi abolida. A
noção de que basta ao Estado impor ordem e paz a um corpo político homogêneo é
contraposta, por Arendt, à necessidade de afirmar um conceito de poder que se
legitima por meio de processos de participação democrática. Trata-se da própria
legitimidade do poder, que, para Arendt, é agir em concerto, por meio do
discurso, junto a co-cidadãos.
O desenho de um panorama
internacional composto de corpos políticos que se consideram autossuficientes e
independentes, cujas relações se baseiam primeiramente na força e não na
cooperação, é de fato um enorme obstáculo para a noção de que todo homem deve
possuir cidadania, porque espaços em que não existe legalidade são uma
possibilidade sempre presente em tal estrutura. Entretanto, a possibilidade de
contestar e reconfigurar os princípios e as normas segundo os quais se vive é o
espírito mesmo da política defendida por Arendt, e a reflexão em relação à
noção de soberania e à noção de Estado são essenciais para que uma comunidade
política seja estabelecida legitimamente. Essa possibilidade, como vimos, se dá
por meio da ação. Apenas agindo, e mais, agindo em conjunto, é que os homens
podem reconfigurar e restabelecer os princípios do espaço público e chegar a
acordos que de fato garantem de forma mais ampla o direito a ter direitos. Em
outras palavras, os problemas impostos pela noção absolutista de soberania
vinculam-se a uma noção de poder entendido como força e dominação, e a forma de
encontrar uma solução para esses problemas está na noção de poder comunicativo
que se desenvolve em processos democráticos.
É importante ressaltar o
papel que a lei toma no pensamento arendtiano, visto que o contexto legal é o
próprio meio pelo qual a política e a liberdade são possíveis. A personalidade
jurídica e os direitos gozados pelos cidadãos são os meios pelos quais o espaço
público pode se organizar e a liberdade pode vir à tona. Sendo intrínsecamente
vinculado à política, e consequentemente à condição humana da pluralidade, o
direito a ter direitos salienta, dessa forma, a necessidade política
fundamental de estender esse contexto de forma a garantir a proteção e a
participação política de todos os homens. Da mesma forma, a crítica arendtiana
aos ideais da soberania e do nacionalismo mostram a necessidade essencial da
constituição legítima do poder em processos comunicativos e democráticos de
participação dos cidadãos no espaço público, em que todas as concepções e os
ideais políticos podem ser contestados, repensados, reconfigurados e
ressignificados.
Referências
ARENDT, H. Entre o passado e o
futuro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979. _________. Origens do Totalitarismo.
Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. _________. A
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IN: Cadernos de Filosofia
Alemã | jan.-jun. 2015
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