O CINEMA DE PEDRO
ALMODÓVAR E A IMAGEM-SOMBRA
Isabela Gonçalves Farias
Introdução
O cinema, assim como as
artes plásticas e a fotografia, é uma representação imagética utilizada pelo
homem para dar referência ao mundo. Através do audiovisual cinematográfico, nós
observamos projetados na tela como em um espelho. Lá estão nossos desejos,
medos, entre outras faculdades constituintes dos processos mentais, incluindo
como parte fundamental desses processos a formação da memória relacionada ao
que nos apropriamos e interpretamos, quando estamos no papel de espectadores.
A obra do cineasta
espanhol Pedro Almodóvar é o objeto de estudo deste trabalho. É proposta uma
viagem simbólica estética e mnemônica através da análise da cinematografia
almodovariana. A partir de um de seus filmes mais primorosos, Tudo Sobre Minha
Mãe (1999), é proposta uma aproximação com a temática queer, abordada na
atualidade por diversos teóricos, como a filósofa estadunidense Judith Butler
em Vida Precária: el poder del duelo y la violência – Buenos Aires (2006) e
Mecanismos Psiquicos del poder – Valencia (2011).
O termo queer é fruto de
abordagens contemporâneas no campo da Filosofia, sendo contextualizado com
outras áreas de interesses das ciências sociais, que discutem temas que
envolvam questões como: sociedade, identidade, identificação, cultura e que
também perpassa pelos estudos acerca da memória. O significado mais amplo para
queer seria dizer que é algo que define aquilo e aqueles elementos e aspectos
característicos do que é rechaçado pelo meio social. Ou seja, o que fica a
margem deste e toma forma daquilo que se apresenta como obscuro, o que se
representa pelo abjeto em relação aos movimentos de alteridade e de
reconhecimento com o outro.
A cinematografia
almodovariana nos ajudará a perfilar o conceito queer inserido nas tramas e
histórias criadas por Almodóvar e que são exemplos, de certa maneira,
parodiados do que vem a ser os personagens que aludem tal parte da sociedade.
Grupos e movimentos sociais, como o movimento gay, contra o preconceito racial
e outras minorias que anseiam por reconhecimento e estão encobertas nas
relações sociais, são os representantes desta parte. Os filmes do cineasta
espanhol propõem um lugar de fala para estes excluídos.
Para produzir uma análise
acerca da obra de Pedro Almodóvar, é necessário levantar as suas influências.
Almodóvar retrata em seus filmes personagens marginais, em cenas que remontam o
cotidiano, o que faz o espectador ter contato com os dramas, as faltas e
desejos desse “outro obscuro” (explicar o que é isso). Temas como a
homossexualidade, a vida performática e artística das drags queens, bem como a
mulher são marcantes em seus filmes. Através de seus personagens, o cineasta
busca a identificação e o reconhecimento de pessoas com estilos de vida
esquecidos e malgrados pela sociedade. Sua aproximação com o universo feminino
propõe uma estética própria.
Este artigo tem como meta
tratar a questão da diferença estabelecida na parte de formação do sujeito.
Como a identidade coloca-se diante de um seio social que segrega modos de ser?
Os meios para se ter o reconhecimento necessário visto pela sociedade para que
não sejamos identificados como sombras sociais se mostram consistentes,
eficazes para se alcançar um fim desejado? Em que podemos fundamentar o vazio
social vivido por grupos marginalizados? Por que são esquecidos e mortos mesmo
fazendo parte de grupos, tribos, clãs e diariamente exercitando experiências
com o outro, assim como todos nós?
Diante de tais
questionamentos, filmes como Maus Hábitos
(1983), Kika (1993) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999) (objeto
específico do estudo deste trabalho) podem descortinar algumas ações e reações
culturais, sócio-políticas e psicológicas que ocorrem mediante os conflitos,
preconceitos enfrentados no quotidiano por diferentes pessoas. Tabus que ainda
existem na contemporaneidade acerca da significação dos gêneros sexuais, no
âmbito da violência e das posturas que se adequam e outras que não à nossa
sociedade, são os pilares desta discussão.
Para que se possa fazer
uma abordagem mais complexa, é interessante cruzar linhas de pensamento da
Sociologia, Filosofia, Psicologia, dentre outros pontos de vista afins. Neste
contexto, também servirão como base do trabalho os seguintes autores: Juan
David Nasio em O Prazer de Ler Freud
(1999); Denise Maurano em A Transferência
(2006), Ana Lucilia Rodrigues em Pedro
Almodóvar e a Feminilidade (2008)
e Michel Maffesoli em Da identidade à
identificação (2010).
É importante correlacionar
os apontamentos dados por esses campos teóricos acima com o fato de ser ter
como suporte material e referencial de produção simbólica o cinema, posto que
ele é um meio de comunicação audiovisual que intermedia a criação de histórias
integradas por impressões da realidade e a sua transmissão para o espectador,
que se torna a fonte de interpretação primordial para que tais tramas possam
sair do escuro das salas de projeção e ganharem luz. Com isso, atualizadas e
debatidas de maneira a terem voz e construírem seu espaço na sociedade, tendo
como fator preponderante os processos mnemônicos que farão com que essas
histórias se tornem vivas no real.
Os teóricos da memória
também são fundamentais para o entendimento de como a recepção da linguagem
(especificamente a cinematográfica) agrega valor para a formação de registros e
reminiscências através de movimentos miméticos. Para que possamos entender tais
movimentos e como estes influenciam na dinâmica do poder social, utilizaremos
os estudos de Jaques Le Goff em História
e Memória (1984).
O poder da imagem em
conjugar o simbólico, imaginário e o real é algo que se amplia quando nos
identificamos com o que assistimos na tela. Nosso arcabouço de memória, nossa
bagagem de experiências vividas e o que aprendemos como sendo o aceitável na
sociedade formam um filtro a partir do que vemos. Almodóvar parece lidar de
maneira eficiente com esse poder e utilizá-lo como superfície de contato entre
o que é renegado e o plausível pelos grupos sociais.
É com essa afirmativa que
se pretende traçar os objetivos desse artigo. Trazer à tona as características
da cinematografia almodovariana e a partir dela, começar a entender a
multiplicidade de modos de vida. De acordo com Butler (2006):
“la
proximidade de lo no familiar, la proximidade de la diferencia que me obliga a
forjar nuevos lazos de identificación y a reimaginar lo que significa pertencer
a una comunidad humana en la que no siempre puede presuponerse una base
cultural y epistemológica em común” (p. 66).
O
cinema de Pedro Almodóvar e a imagem-sombra
Em “Tudo Sobre Minha Mãe”, Almodóvar expõe o sofrimento vivido por
Manuela, mãe que perde o seu filho, atropelado no dia em que completaria
dezessete anos, Estéban, seu filho único, fruto de uma relação do passado,
sendo desconhecido por seu pai, o travesti Lola, que Manuela havia se
relacionado em seus anos como atriz na cidade de Barcelona. Mediante a perda do
filho, ela decide voltar à cidade espanhola e procurar por Lola para contar o
que há anos havia escondido: a paternidade de Estéban.
A tragédia vivida pela
personagem assemelhasse ao drama de Antígona em Antígona, de Sófocles (427 a.C). Assim como Antígona tem a difícil
missão fazer com que Polinice não seja esquecido pela morte e seja enterrado
dignamente, Manuela tem o propósito de apaziguar a dor pela perda de seu único
filho, aonde vê solução na legitimação de sua vida e morte através do
reencontro com seu pai. Durante sua busca, revê o travesti Agrado, que irá
ajudá-la a buscar informações sobre o paradeiro de Lola e acaba por conhecer
outras pessoas que serão essenciais para que possa vivenciar o luto e realizar
tal propósito, como Huma, Nina e a Irmã Rosa.
A protagonista, em viagem
a Barcelona, como se vivesse uma volta ao passado, passará por situações
trágico-cômicas. Ao mesmo tempo em que encontra motivações para seguir sua
vida, mesmo com a perda do filho, a personagem também viverá momentos-limites.
Neste contexto, Manuela encontra um grande desafio ao descobrir que Irmã Rosa,
uma jovem freira, está grávida. Dois fatores irão fazer com que a protagonista
zele pela integridade de sua nova amiga: ela descobre que Irmã Rosa está
grávida de Lola, seu antigo companheiro, e que a religiosa é portadora do vírus
da AIDS.
A partir destes acontecimentos,
Manuela lutará para que a amiga consiga chegar até o final de sua gravidez,
enfrentando a postura conservadora dos pais. Diante disto, a trama é repleta de
elementos conflitantes, muitos deles vividos pelos grupos que desejam ter
reconhecimento social. Desta forma, a cinematografia almodovariana torna-se
exemplo de uma linguagem narrativa e estética que se coloca a favor de um lugar
de voz para os excluídos da sociedade.
Seus personagens
demonstram a relação entre vulnerabilidade e violência colocada por Judith
Butler, na medida em que a autora define tais elementos como preponderantes
para uma noção do surgimento de segregações que levam não apenas a significação
de sujeitos para o vazio social, mas que também carregam seus corpos como a
representação da materialização do abjeto (queer).
Butler (2006) afirma:
El
cuerpo supone mortalidad, vulnerabilidad, práxis: la piel y la carne nos
exponen a la mirada de los otros, pero también al contacto y a la violência, y
también son cuerpos los que nos ponen em peligro de convertirnos en agentes e
instrumento de todo esto. Aunque luchemos por los derechos sobre nuestros
propios cuerpos, los cuerpos por los que luchamos nunca son lo suficientemente
nuestros. El cuerpo tiene uma dimensión invariablemente pública. Constituido en
la esfera pública como um fenómeno social, mi cuerpo es y no es mio (p. 52).
Desta maneira, ao
encararmos nosso corpo como parte do social, sendo mediado por influências das regras
socioculturais e políticas da sociedade, podemos observar que a formação do
abjeto (queer) se dá pelas referências colocadas por uma sociedade
heteronormartiva e binária em temos de gênero. A imposição cultural do que seria
o masculino e o feminino aliena a possibilidade de um reconhecimento de
sujeitos que não se enquadram nestes perfis determinados. Para Almodóvar, a
paródia desta sociedade cheia de preconceitos e tabus é um meio de reivindicar
a existência de tais sujeitos.
“Tudo Sobre Minha Mãe”
mostra que várias faces do feminino no cinema são configuradas nas personagens.
Huma é uma atriz madura, de meia idade e que tem uma convivência maternal com
Nina, sua amiga de elenco no teatro. Nina é uma jovem atriz, viciada em
heroína, que transparece ser uma pessoa agressiva e rebelde, o que nos remete
ao estilo vamp do cinema. Sua rebeldia chega ao ponto de ela ser destituída do
papel de Estela, sendo substituída por Manuela, já que esta havia encenado o
papel anteriormente. A peça “Um Bonde Chamado Desejo” exerce função de pano de
fundo do filme, pois Manuela, ao assisti-la e depois encená-la novamente,
revive acontecimentos passados de sua própria vida.
A vamp é o oposto da
mulher virginal ou da “mocinha inocente”. Nina nos remete às mitologias
nórdicas e mediterrâneas, aonde a figura da mulher fatal se origina. Irmã Rosa
é o exemplo desta mulher virginal, inocente, que é movida por sonhos
“românticos” e que transparece a pureza da feminilidade. Agrado é uma figura
que transita na intercessão do masculino e do feminino por ser um travesti, e
ao mesmo tempo ser o exemplo explícito da mulher contemporânea, ou seja, “a
mulher sexuada”, que é sujeito do seu desejo e que não tem como foco de sua
existência apenas o casamento e a maternidade. Esta característica de Agrado
faz com que a personagem seja personificada como o ponto de equilíbrio para
cada uma das outras personagens. Denise Maurano, em A Transferência (2006), define a posição da mulher e o que é
pontuado acerca do feminino no âmbito da Psicanálise. A autora comenta:
Se
é a relação com o falo que estabelece a distinção sexual, resta numa mulher uma
parte que não está submetida ao sexual e que, por isso, faz apelo a outra
coisa: ao ilimitado, ao inacessível, em último caso, ao amor, que é o milagre
que vem no lugar da impossibilidade de o sexo conjugar tudo, ou de a
insuficiência da relação fálica delinear tudo o que interessa na existência. O
amor permite uma curiosa conjugação com o Outro, sem que este apareça através
de nenhum lugar-tenente” (p.51).
Para a autora, o feminino
está no mistério do encontro entre o que não se tem (o falo) e o porquê, ou o
fora do sexo. A mulher se posiciona referente tanto à indiferença originária,
quanto a uma suplementação imposta pelo universo fálico de representação.
O cinema almodovariano,
além das buscar ideias nos movimentos feministas da década de 70, também é
elaborado através de inspirações oriundas de mulheres presentes na vida do
diretor, como sua mãe. O cineasta inclui ainda em suas obras referências a
musas do cinema das décadas de 50 e 60 e ao estilo pin-up1 , marcante na
caricata figura de Betty Poppy. A justificativa bem-humorada que o cineasta
expõe para sua preferência por personagens femininos resume-se em uma frase:
“Os homens também choram, mas as mulheres choram melhor”. Almodóvar é
considerado o “diretor de mulheres”, por relatar dramas, desejo e fantasias do
imaginário feminino. Ana Lucila Rodrigues (pág. 48. 2008) contextualiza a
evolução da representação da feminilidade no cinema:
O
cinema começa a ser povoado pelo que muitos chamam de “mulheres reais”. Momento
importante que abrirá caminho para as personagens femininas de Almodóvar, que
inicia seu cinema influenciado, sem dúvida, pelos movimentos feministas da
época, trazendo um perfil feminino mais realista para as telas. Por isso, se
entende um conjunto de representações que retratam a mulher em seu cotidiano
vivido, com ênfase nos dramas domésticos e com a própria inserção do imaginário
que lhe é próprio (p. 48).
Ao elencar o que
entendemos por feminino nos ditames da sociedade contemporânea, o diretor
mostra a trajetória de evolução e conquistas atribuídas aos grupos sociais
formados por mulheres, sua valorização e inserção na sociedade como um todo.
Seus filmes colocam a
feminilidade em questão. Mostram que não só as mulheres representam o feminino,
mas que as drags, travestis e outros ditos seres andrógenos pela sociedade,
também contribuem para elaborações simbólicas de formas diversificadas de
expressão do feminino no meio social. É importante frisar que o significado do
feminino aqui é abordado de acordo à ótica barroca do que seria o criar
artístico. Ou seja, Almodóvar estabelece contato com o dito indiferente em
termos sociais e com isso, abre uma “fenda criativa” ao escrever roteiros que
buscam a representação imagética desta indiferença nas relações de alteridade.
Neste sentido, o cineasta
aposta em personagens caricaturais, como Agrado e Lola, e promove um processo
de inserção destes na realidade, de maneira que possam ser vistos e pensados
como sujeitos que possuem sentimentos, emoções como qualquer outro humano. O
feminino, que faz parte da lógica binária da ordem sexual da humanidade, segue
em paralelo com o andrógino, o ser dúbio e sem um padrão sexual determinado, e
com isso, é demonstrado que na formação da persona, o movimento de abertura
para o outro faz parte da sobrevivência. De acordo com Maffesoli (2010):
Esse
reflexo de autoconservação nos ensina que, levando até ao extremo da
dilaceração da abertura, a pessoa pode se tornar o ninguém, o que pode garantir
a liberdade essencial. Ser o ninguém pode fazer tomar parte de uma energia
vital primordial que escapa as determinações da singularidade (p. 48).
Podemos dizer que é a
fomentação deste “ninguém” dito pelo autor que Almodóvar deseja mostrar.
Pessoas abertas às relações sociais, que se colocam a entender as diferenças
que existem, para que se possa ser um sujeito íntegro através dos movimentos de
alteridade e de se “estar-junto” com o outro.
As questões que envolvem a
sexualidade e gêneros sexuais povoam os roteiros dirigidos por Almodóvar.
Diferentemente de outros filmes como “Ata-me”, onde existem cenas extremamente
eróticas, tal qual a cena em que a protagonista se masturba com um pequeno
boneco durante o banho, “Tudo Sobre Minha Mãe” não contém em seu roteiro cenas
de forte erotização, muito menos de sexo explícito. Mas por outro lado, pode
ser notada a presença fundamental de papéis socialmente ditos como andróginos,
sendo desempenhados por uma drag. É o caso de Lola, por exemplo, que tem
características de uma drag e ao mesmo tempo é o pai de Estéban. Ou seja, para
o senso comum, pessoas que não pertençam a grupos sociais pré-determinados, não
podem exercer certas posturas sociais, como a paternidade e, por isso, causam
estranheza.
É com esta estranheza que
se quer trabalhar no filme e através dela, trazer outros conflitos, como a
perda e o luto por um ente querido, o vício em drogas e descoberta de ter uma
doença incurável. Butler em seus estudos elabora de que maneira isso torna o
ser humano vulnerável e alvo da violência. Para a autora, a ordenação binária
da sexualidade é um arranjo social. A autora afirma que não existem gêneros
sexuais, ou seja, masculino e feminino, e sim que todo tipo de gênero surge por
um apanhado performático. Butler ( 2010) afirma:
(...)
la interpretación (perfomance) del género produce la ilusón retroactiva de que
existe un núcleo interno de género. Es decir, la interpretación del género
produce retroactivamente el efecto de una essencia o disposición feminina verdadera
o perdurable y es por ello por lo que no podemos utilizar um modelo expressivo
para analizar el género. Argumenté, además, que el gênero se produce como una
repetición ritualizada de convenciones y que este ritual es impuesto
socialmente gracias en parte a la fuerza da heterosexualidad preceptiva (...)
(p. 67).
A vulnerabilidade e a
violência projetada em grupos determinados são alçadas em tais práticas
ritualizada que exercem um movimento de isolamento daqueles que não se
enquadram em regras definidas sócio-político e culturalmente. Tal isolamento
também é gerido por movimentos de memórias com os quais se vê cada vez mais a
normatização simbólica do que seria a realidade. Entende-se que se têm modelos
sociais pré-estabelecidos uma organização de relações entre eles. Aqueles que
militam por algo que ressalte uma diferença a esta organização, enfrentaram
conflitos e dificuldades para se colocarem frente a uma massa coletiva dogmas e
normas arbitrarias.
Muitos desses grupos são
silenciados de tal maneira a não terem um lugar de fala. Outros são fadados ao
esquecimento, ou seja, postos como seres des-realizados, não somente esquecidos
em vida, mas sem direito a uma morte reconhecida. Apenas sobrevivem como
espectros sociais, sombras de sujeitos que querem ser apenas em si mesmos e não
enquadrados em qualquer norma ou regra.
Em sua analise sobre o
conceito de memória, Le Goff trará à tona a questão do esquecimento e como este
tem importância na manipulação e no poder exercido por um seio social. Le Goff
(1984) afirma:
(...)
a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. O estudo da
memória social é um dos modos fundamentais de abordar os problemas do tempo e
da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em
transbordamento (p.11).
A partir da afirmativa do
autor, notamos que os ideais de reconhecimento e de identificação seguem em
paralelo com jogos de poder, os quais definirão a postura de tal conjunto de
sujeitos tem na relação de alteridade com o outro. Conjecturas políticas e
econômicas por muitas vezes são mais valorizados do que o processo de formação
do “eu” de uma pessoa. A pertinência de que somos constantemente afetados em
nossas relações sociais, que este outro nos forma, parece ser esquecida.
“Tudo Sobre Minha Mãe”
revela em seu desfecho a protagonista cumprindo sua missão inicial. Manuela
reencontra Lola e conta tudo sobre Estéban. Além disso, tem o dever de cuidar
do filho de Rosa, que morre no parto, em uma nova experiência maternal. Esta
experiência a faz reviver momentos de sua figura de mãe perdida pela morte do
filho. A referência disto é quando Manuela batiza o bebê como Estebán, em
homenagem a seu filho.
O cinema almodovariano
utiliza técnicas de enquadramento, som e uso de imagens, assim como outras
obras cinematográficas, para transmitir a realidade da sociedade contemporânea
com suas nuances. O objetivo é revelar o que há de intrínseco na psique dos
personagens da trama de maneira viva e de ser um “simulacro” do mundo real,
fazendo com que o espectador se localize como parte integrante daquela
história.
A questão da “pregnância”
das imagens está fundamentalmente relacionada ao sentido de identificação
estabelecido por Freud em seus estudos. Através de um viés freudiano, Juan
David Nasio (1999) afirma que um sujeito se identifica com outro ao elegê-lo,
ou seja, assimilá-lo e deixar-se assimilar por este outro. Segundo o autor:
A
identificação designa também um processo tão essencial quanto o do amor, isto
é, o processo de formação do eu. Explico-me, fazendo uma última pergunta: quem
somos nós, do ponto de vista do nosso psiquismo? O que é o eu? Isto é, de que substância
é feito o nosso eu? Pois bem, a resposta da psicanálise é muito clara: somos
feitos de todas as marcas que deixam em nós os seres e as coisas que amamos
fortemente agora ou que amamos fortemente no passado e às vezes perdemos.
Então, quem sou eu? Sou a memória viva daqueles que amo hoje e daqueles que
amei outrora e depois perdi. A identificação é aquilo que me faz amar e ser o
que sou (p. 84).
O autor conclui que falar
da identificação do sujeito com o outro é falar de amor. A procura do outro é o
princípio de que precisamos deste outro para que possamos constituir o nosso
próprio eu. Se esta afirmativa for observada em sua origem, considera-se que
este processo de identificação se inicia com as relações do indivíduo com seu
núcleo familiar. A família é o referencial inicial de como aquele indivíduo irá
arquitetar suas relações com o outro. Em “Tudo Sobre Minha Mãe”, o personagem
Estebán, filho biológico de Manuela, formula suas referências iniciais junto à
mãe de forma conflituosa. Por não ter conhecido o pai e por não ter a figura do
deste em sua vida, o personagem desenvolveu modos de agir que demonstram sua
eterna frustração por conta desta “rachadura”.
O cinema, neste contexto,
nos ajuda a relativizar no campo do simbólico aquilo que somos, nossas
fantasias e vontades mais íntimas. Este aspecto do cinema, nos faz penetrar em
um momento particular com o nosso eu ideal, contextualizado por Nasio (1999) :
“O eu ideal é uma
expressão ligada ao campo do imaginário (...) está presente na relação do eu
com a imagem, por que quando o eu ideal percebe a imagem pregnante, essa imagem
está carregada de uma idealidade do eu, isto é, daquilo que eu espero” (p. 24).
Portanto, nosso imaginário
parece pulsar e fluir imagens de significação. Através da identificação com as
tramas cinematográficas, conseguimos “viajar” pela ficção ou até mesmo por um
documentário, gênero fílmico calcado na ligação realista e documental com o
mundo. Através deste processo, podemos nos localizar naquela história,
identificando-nos e tornando-nos parte dela.
Considerações
finais
A cinematografia
almodovariana conseguiu ter autenticidade explorando uma estética própria, onde
os personagens são “figurados” com detalhes que marcam e tipificam o modo de
vida de cada um. Almodóvar também elabora diálogos que de fato complementam as
cenas, falas que projetam as emoções e conflitos que se passam com determinado
personagem. Podemos observar isso na fala de Agrado, quando se dirige a plateia
de um teatro e diz: “Se ficarem eu prometo entretê-los com a história da minha
vida. Se eu for muito chata, podem roncar. Eu vou ouvir, mas podem deixar que
não vai ferir a minha sensibilidade. Me chamo Agrado pois passei a vida
tentando fazer a vida dos outros agradável”.
Diante da fala de Agrado,
vemos que os afetos, as marcas e conflitos que formam o sujeito perpassam pelas
histórias. Intencionalmente, o cineasta quer levar as telas de projeção
detalhes do que constitui o íntimo das pessoas sem um véu que encubra as
cicatrizes deixadas pelo tempo e com isso, faz transbordar os sentimentos mais
escondidos. Talvez essa seja a justificativa para tratar de tantos temas, tabus
que a sociedade tenta por em antros de preconceitos, ou em um vazio sem
reconhecimento.
Atualmente surgem cada vez
mais diferentes tipos de relações sociais que sugerem modos de se enxergar esse
novo homem que se vê fragmentado em vários seios sociais, onde exerce diversos papéis
sociais, ou máscaras. Como afirma Maffesoli (pág. 281 2010): “Pode-se
apresentar essa evolução como sendo uma feminização do mundo social”. É nesta
vertente que o cineasta espanhol engendra suas tramas.
A abordagem do feminino em
seus filmes afere ao que está além dos rótulos que ganhamos em tais seios
sociais. Seu objetivo é mostrar que ao mesmo tempo que somos moldados pela
realidade, também inferimos diariamente em seu percurso. Para conseguir passar
esse movimento, nada mais exemplificado do que lidar com grupos que fogem das
normas. O excesso do que se idealiza ser e o desdém com o que se é impede que muitos
possam se libertar de uma identidade dada e “ser” uma real identificação que se
personifique nas comunidades, tribos, clãs que frequentados.
Com uma linguagem
singular, Almodóvar consegue aproximar dos opostos: o feminino e o abjeto. Seus
personagens marginalizados conseguem expressar uma feminilidade que mostra a
tentativa de ser tornar reconhecível, não sendo constituído por um molde
social. O cineasta constrói sujeitos andróginos, quase “novos seres” que
remetem a ontologia do nada. Ou seja, ser indefinido é ser em si. É entender
que o homem é um ser incompleto, não absoluto, que nós somos o reflexo das
inúmeras facetas que engendram a nossa realidade. A transgressão da
estigmatização e ter um lugar de voz na sociedade parecem ser o que basta para
tais sujeitos.
O cineasta com o suporte
audiovisual de criação de impressões de realidade (o cinema) tira o abjeto da
obscuridade, traz seus contornos à luz e mais que isso, mostra que na vida
cotidiana temos múltiplas linhas que nos delineiam ora com um traço mais forte,
ora com rabiscos quase invisíveis. Como em uma tela barroca, mesmo o todo sendo
algo homogêneo e com partes indissociáveis, é necessário ser reconhecido, pois
sem isso, somos apenas telas em branco sem expressão alguma. Somos assim, (des)
sujeitos (des) realizados. “La desrealizacíon del “Outro” quiere
decir que no está ni vivo ni morto, sino em una eterna condición de espectro”
Butler ( pág. 60 2006).
Em um raciocínio amplo,
podemos dizer que o amor é a base para as relações sociais onde o reconhecer
seja valorizado. O amar é a engrenagem para que os movimentos de alteridade
aconteçam. Assim entenderemos que somos afetados dia a dia, que Eros está tanto
em nosso cotidiano, quanto na formação da nossa memória. E mesmo aquilo que
mais rechaçamos, odiamos, deve ter seu espaço de existência e quiçá de
sobrevivência na sociedade.
IN: Psicanálise e Barroco em revista
Vl. 13 - 1
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