quarta-feira, agosto 30, 2017

HILFLÖSIGKEIT - DESAMPARO



ENTRE ANGÚSTIA E DESAMPARO

Jacques André*


À guisa de introdução, eu desejaria evocar um artigo de Winnicott publicado em 1974, póstumo, portanto, uma vez que Winnicott morreu em 1971. Sabe-se que esse artigo foi concebido por ele nos últimos momentos de vida, e tem por título “Fear of breakdown”, traduzido por “La crainte de l’effondrement” [O temor do colapso] (Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 11, Gallimard, 1975).

BREAKDOWN
Uma introdução com Winnicott, então, mas também desencontrada de sua ar- gumentação, talvez até mesmo contra ela.

Suponhamos, escreve Winnicott, que paciente e analista desejem realmente terminar a análise — o que dá a entender que, ao contrário do que “natural- mente” seríamos levados a pensar, está longe de ser sempre esse o caso. A dificuldade está em que não há fim para a análise se não se tiver ido até o “fundo do poço”. Ora, o fundo do poço, no caso dos pacientes borderline aos quais Winnicott faz alusão aqui — como na quase-totalidade de seus trabalhos escritos — é aquilo que ele denomina colapso na transferência.

Inicialmente, duas palavras sobre borderline (ou estado-limite), uma vez que a unicidade do vocábulo é inversamente proporcional à multiplicidade das concepções. Por esse termo Winnicott designa pacientes cujas angústias são de natureza psicótica (fragmentação, anulação, queda sem fim...), ao mesmo tem- po que uma construção psiconeurótica suficientemente elaborada lhes permite enfrentar as injunções da realidade.

Colapso, portanto. Esse termo traduz breakdown. É a idéia de um enguiço, de uma ruptura de mecanismo; termo que, em inglês, pode também descrever a saúde que se altera, a razão que se ensombrece ou uma irrupção brusca de lágrimas. Esta última conotação ameaça inflectir excessivamente a versão francesa do termo: rapidamente desliza-se de “s’effondrer” [desmoronar] para “fondre en larmes” [desmanchar-se em lágrimas], quando a “queda” do breakdown pode ainda terminar no silêncio, no vazio, no branco...
No coração dessa experiência de desmoronamento surge aquilo que Winnicott denomina primitive agonies, que habitual e literalmente se traduz por “agonias primitivas”. Em francês, compreende-se melhor o termo se a etimologia não ficar esquecida: “agon” é a luta, o combate. A “agonia primitiva” condensa a idéia do desamparo, do desamparo extremo, e a de um combate, de uma primeira resposta contraposta ao perigo.

Quer digamos agonia ou desamparo, é preciso observar que o que esses termos procuram circunscrever é um espaço psíquico situado além da angústia. Será que se trata de um além qualitativo, designando um afeto de outra natureza, ou de um além quantitativo, significando a forma extrema da angústia? Deixaremos a questão em aberto.

A idéia principal de Winnicott, a propósito dos pacientes em questão, é que no passado produziu-se algo que não pôde ser experimentado. Algo teve lugar, algo realmente teve lugar, mas o afeto correspondente não pôde ser sentido, como se tivesse ficado em branco. O surgimento do afeto em questão, sob a forma do breakdown no aqui-e-agora da experiência transferencial, diz Winnicott, é a condição para que a análise possa chegar ao fim. A experiência do afeto, este ponto é crucial, é então o equivalente daquilo que a rememoração, a suspensão do recalcamento, é na forma clássica do tratamento. Para dizer as coisas em termos gerais, e portanto de maneira ao mesmo tempo apressada e inexata, da mesma maneira que a análise das psiconeuroses se caracterizaria pela suspensão do recalcamento das representações inconscientes, a do registro borderline seria especificamente marcada pelo... será preciso dizer pelo surgimento de afetos inconscientes até então, ou pela ocorrência de afetos jamais experimentados?

Fica então estabelecido: dar conta de um tratamento é uma tarefa impossível, porquanto a todo relato inevitavelmente vai faltar a atualidade, o ato da transferência. Mas com facilidade podemos imaginar que a tarefa se complique ainda mais quando a atualização transferencial se dá mais sobre os afetos do que sobre as representações. A este propósito é notável que toda a obra de Donald Winnicott seja resultado de uma reflexão sobre a prática analítica e que ao mesmo tempo esta fique, no final das contas, pouco descrita por ele. Aliás, esta é uma das razões que impelirão Margaret Little a prestar testemunho de como era o jeito de Winnicott em sessão, ao publicar um relato de sua própria análise com ele.

A dificuldade da tese sustentada por Winnicott não está apenas no obstáculo da reconstituição da seqüência clínica. É também teórica: para o paciente, algo se produziu no passado e não foi experimentado. Como a transferência, que por definição é repetição, poderia ser repetição daquilo que não teve lugar? Como se “lembrar” — as aspas aqui são indispensáveis — daquilo que não foi experimenta- do? Como compreender que possa ser buscada — e de maneira compulsiva, por- tanto particularmente insistente — a ausência de uma experiência? Em cada uma destas formulações a teoria é ameaçada pela aporia. Qualquer coisa de comparável à impressão deixada pelo diálogo O sofista, de Platão, uma vez que se trata aqui de dissertar sobre o ser do não-ser.

Como escapar à fascinação sofística pela aporia? Um analisando em busca, à espera de alguma coisa que teve lugar mas que não foi experimentada... Isso só pode ser concebido se esta “alguma coisa” deixou um vestígio, uma inscrição psíquica. Que marca (necessariamente positiva) para aquilo que não tem...? Como toda aporia, esta daqui exerce um domínio do qual só é possível livrar-se por um deslocamento mínimo. Uma precisão parece-me necessária: aquilo que não teve lugar, não teve lugar na história, produziu-se fora da categoria da historicidade.

Como compreender psicanaliticamente o fato comum de que as lembranças da infância raras vezes remontam além dos dois anos? Somos tentados a usar o bom senso: um tempo muito afastado, uma maturidade ainda insuficiente da faculdade da memória. Mas é possível considerar as coisas de outro modo e formular a seguinte hipótese: uma vez que a criança, a criança bem nova, pode bem ou mal manter a ilusão da coincidência entre o desejo e sua realização ou, em termos freudianos, uma vez que o ego-prazer primitivo está convencido de que governa como senhor, para que lembrar? Aliás, lembrar de quê? Quando a satisfação, com a ajuda da alucinação, leva a melhor, nada passa, nada se perde. A memória é uma coisa, a lembrança é outra. Para existir como categoria psíquica, independentemente do ponto de vista cognitivista, a lembrança, que é sempre lembrança de objeto, ou de relação de objeto, pressupõe que o objeto se constitua, isto é: se perde, uma vez que é verdade que só há objeto perdido. A raridade das lembranças, especialmente da infância, em certos pacientes borderline, é assim, em si mesma, sinal do caráter incerto que a própria noção de objeto tem para eles. É também indicador das exigências a-históricas do ego primitivo.

Não é raro que, no curso de um tratamento, um analista seja siderado pelo seguinte fato: os acontecimentos do tratamento, os momentos de análise propriamente ditos, aqueles em que alguma coisa se desliga por meio da interpretação, esses momentos não se constituem em lembranças para o paciente, nem a análise em história. Assim, pela mesma razão, é insatisfatório dizer que o paciente esquece, uma vez que o esquecimento é irmão da lembrança. Algo tem lugar, algo que se inscreve psiquicamente, mas segundo modalidades que não são aquelas da temporalidade aberta da história. Que relação haverá entre esse dispositivo particular e a questão, muitas vezes crucial, do afeto nesses trata- mentos? Eis aí o enigma.

A explicação que Winnicott propõe para dar conta dessa “alguma coisa que teve lugar e que não foi experimentada” consiste, num primeiro tempo, em invocar a integração falha do ego. Exceder as capacidades de integração do ego não é aquilo que é próprio de todo fenômeno inconsciente? Mas não é exata- mente assim que Winnicott entende a coisa. Dando precisão à falha em questão, ele a apresenta como associada à imaturidade do ego. O termo, por si só, convoca a perspectiva do desenvolvimento e nos afasta do registro libidinal.

A resposta de Winnicott à pergunta que nos propôs acompanha o movimento de sua teoria geral, daquilo que faz sua contribuição original à metapsicologia. Esses são desenvolvimentos bem conhecidos, dos quais vou resgatar apenas o núcleo da argumentação. Para o psicanalista inglês, contra aqueles (entenda-se, os kleinianos) que de antemão mergulham o bebê num mundo fantasístico de gratificações/frustrações pulsionais, trata-se de colocar em evidência uma área autônoma da necessidade, que é também a área do existir, do ser, ou melhor, do being. De qualquer modo, de delimitar um espaço psíquico que não se define como pulsional, como sexual. Para os pacientes borderline, submetidos a regres- são particularmente intensa dentro do movimento da análise, Winnicott vai falar de “regressão à dependência”, mas vai recusar com vigor que essa dependência seja qualificada de “oral”, que se misture libido aí onde só reinaria a ordem primária da necessidade.

Esse retorno à necessidade evoca a autoconservação do primeiro dualismo freudiano, mas com uma diferença essencial: a conservação, segundo Winnicott, não é auto. “O bebê não existe”, escreve Winnicott; entendam: não existe sem o ambiente. Não há continuidade do ser sem uma continuidade dos aportes do ambiente.

Por que “ambiente” e não a mãe ou o seio? Sem dúvida porque esses dois termos são portadores de uma carga pulsional que Winnicott procura exatamente deixar de lado. Uma vez tudo isto dito, uma vez assegurada a necessidade de uma existência própria, então a mãe, ou o maternal, pode se reintroduzir no vocabulário do being, por meio de expressões como a good enough mother ou a preocupação materna primária.

Que etiologia propor, agora, para a psicopatologia breakdown? A argumentação de Winnicott, reduzida à sua fórmula mínima, está contida nesta frase: “Alguma coisa para o paciente elaborou-se onde a continuidade do ser foi interrompida pelas reações do paciente à usurpação dos fatores do ambiente.” A frase permite fazer uma primeira observação. É tentador evocar as carências, faltas e outras falhas do ambiente do lactente para dar conta do ulterior breakdown na continuidade da existência. Todas essas palavras Winnicott utiliza quando a ocasião se oferece. Mas o que ele teoriza, de fato, é sensivelmente diferente, talvez mesmo o inverso: não está do lado da falta, da falha mas, ao contrário, do excesso, do trop [demasiado]. Ao comentar Winnicott, indo além daquilo que ele próprio sustenta, no fundo não há jamais carências. A “carência” é um ponto de vista do observador. Para o bebê que sofre, trata-se de “usurpação” [“empiétement”]. A idéia, acentuada pela etimologia da tradução francesa, é a da invasão, de um transbordamento, do “passar por cima”, e não de “falta de”. Segue-se uma dificuldade na língua, da qual não é fácil sair: a relação entre o excesso da usurpação e aquilo que resulta daí: o vazio, o branco, “aquilo que não foi experimentado”, que só podemos mesmo designar pelos termos do negativo.

Seria preciso ocupar-me aqui de uma crítica necessária na qual não posso de fato engajar-me, mas apenas assinalá-la. Será possível isolar, como o faz Winnicott, uma área da necessidade, do being, que seja virgem dos ataques da pulsão, do sexual? Ser é alguma outra coisa que não a abreviatura de ser amado? A posição de um “eu sou” (anterior à linguagem, é claro) não pressupõe um processo de introjeção/identificação com o objeto primário? “Eu sou” deveria então ser entendido como abreviatura (constitutiva do narcisismo) de um “eu sou o seio”?

Uma das razões que fazem com que sejamos sempre leitores de Freud provém decerto do caráter não sistemático de sua obra. Não que a sistematização não seja tentada de tempos em tempos, mas a tentativa sempre fracassa. A argumentação hesita, abre uma pista que não consegue seguir, desenvolve conclusões em contradição com as premissas. Em suma, algo fica indefinidamente problemático, na medida impossível de um “saber” sobre o inconsciente. Donald Winnicott, crítico do dogmatismo kleiniano, também não vai escapar, no final de sua vida, à tentação de fechar em sistema o conjunto de suas hipóteses metapsicológicas. Mas no essencial, não é assim, e o artigo sobre “La crainte de l’effondrement” é exemplo disso.

Winnicott propõe uma ilustração clínica, infelizmente sucinta, daquilo que está procurando apreender. Em boa lógica winnicottiana, esperaríamos vê-lo evocar uma mãe not good enough, uma mãe a quem falta o abraço, cujo holding deixa a desejar. E acontece algo muito diferente, para o que a tradução de breakdown por effondrement não é satisfatória. “Enguiço” seria um termo mais apropriado à idéia. O afeto que “espera” para ser experimentado pela paciente pela primeira vez, é o sentimento de vazio. Poder permitir-se ficar acima do vazio, ser afetado por este, é a isso que a transferência vai dar ensejo. Sendo experimentado, o afeto em questão pode também ser verbalizado; a representação na transferência descortina a representação de palavras. A paciente diz: “Nada acontece nesta análise”: ela diz a repetição transferencial de nada.

A partir daí, ela pode re-apresentar a si mesma, e ao mesmo tempo constituir-se como passado, a fonte infantil cujo “vestígio” é o vazio de afeto (ou o afeto de vazio). Entre a paciente, menina, e seu pai, nada acontecia também. À sua feminilidade, ele não tinha a oferecer nenhum estímulo masculino. Sabe- mos as respostas, quase clássicas, opostas a esse vazio terrificante demais para que se corra o risco de experimentá-lo: não comer, ou comer sem parar, mas também nada aprender ou ainda engravidar, ao sabor dos destinos singulares.
Desde a comunicação de Hélène Deutsch, no início dos anos 30, sobre as personalidades as if, essa problemática do vazio, do branco, do nada, ocupa lugar nada desprezível na literatura psicanalítica. O primeiro passo (teórico) tinha sido dado por Freud, ao instalar o princípio de nirvana como indissociável da pulsão de morte, no mais recôndito da vida psíquica.

Se voltarmos à paciente de Winnicott: seu pai está lá, ele está lá, e depois nada. No meu modo de ver, negligenciamos a singularidade dessa disposição se seguirmos muito apressadamente o movimento da língua, descrevendo-a em termos negativos. Nada não é nada, se posso permitir-me o paradoxo. Ser nada (para...), ser objeto do não-investimento (ou do desinvestimento — sem dúvida é preciso refinar a distinção entre os dois). Para uma tal modalidade de relação, a palavra “sedução” parece-me a mais inadequada possível, porquanto nada é menos certo. O que haverá de mais “siderante”, mais cativante, mais capaz de imobilizar psiquicamente, o que haverá de mais próximo do seducere do que o nada de investimento de que o indivíduo é “objeto”? Ser não-amado... Mais do que ao sentido das palavras, é preciso que nos atenhamos aqui à sintaxe e positivemos como pudermos o negativo.

Sem prolongar por mais tempo o debate com Winnicott, é preciso contudo observar, a partir do exemplo clínico que ele propõe, que é bem difícil isolar o registro do ser, da continuidade do ser, e mantê-lo afastado da dimensão pulsional. O próprio Winnicott faz eco a essa dificuldade quando acentua que a pior coisa que pode acontecer a um pequeno ser, não é tanto a deficiência do ambiente, mas a esperança despertada e sempre frustrada. Aproximamo-nos de Freud, da angústia de perda compreendida como perda do amor, e em particular do sentido que essa angústia adquire a partir de Inibição, sintoma e angústia.

HILFLÖSIGKEIT

Para começar, algumas palavras acerca do enigma de um momento de tratamento. Tudo indicava, na dinâmica desta análise, o provável surgimento de um amor de transferência, se não na versão “fogo no teatro” que Freud descreveu em seu artigo de 1915, mas numa forma pouco mediatizada e, portanto, inquietante. A minha surpresa foi então ainda maior ao ver instalar-se, no lugar do amor, um afeto bem oposto: o desamparo. Desamparo branco, silencioso sob as palavras esvaziadas, abolindo o movimento das representações, esvaziando a análise ao ponto de ameaçá-la de interrupção. Tudo se passa como se o branco, o vazio, o liso... fossem para o afeto aquilo que o silêncio (pleno, desta vez), a evitação, o constrangimento, são para a representação, isto é: indicação de seu recalcamento.

O desamparo, em psicopatologia, encontra seu primeiro termo em Freud: Hilflösigkeit. Uma vez que não pode ser entendido fora da referência a Hilfe, a ajuda, a palavra alemã não é traduzível de maneira satisfatória em francês; em inglês, é helplessness. Ficamos então reduzidos a uma aproximação à palavra por perífrase, algo como: être en manque d’aide [estar sem ajuda]. O Vocabulaire de J. Laplanche e J.-B. Pontalis propunha uma tradução que, desde então, entrou no uso: état de détresse [situação de desamparo]. Ela sublinhava ao mesmo tempo a constituição de um sentido específico do termo em Freud, em desacordo em relação ao usual: a designação do estado do lactente impotente quanto a realizar, por seus próprios meios, a ação específica capaz de pôr fim à tensão interna da necessidade. A opção das Oeuvres complètes (PUF) de traduzir por um neologismo: désaide [des-ajuda] (irmão do neologismo de Lacan: désêtre), acentua ainda mais a tecnicidade do termo e seu caráter de conceito em Freud. Désaide sem dúvida tem o mérito de chegar àquilo que visa: afastar o psicologismo, mas tem, por outro lado, o inconveniente de desafetar o termo, exatamente quando a questão do afeto aparece no cerne da reflexão de Freud quando se trata de Hilflösigkeit, pelo menos em algumas de suas ocorrências.

Hilfe, Hilflösigkeit... amparo, estado de falta de ajuda, essas palavras têm sua história, uma história tingida de religiosidade — o que pôde levar alguns a traduzirem Hilflösigkeit por déréliction. A palavra Hilfe representa um papel importante na tradução da Bíblia proposta por Lutero. A ajuda, a única verdadeira- mente digna desse nome é a ajuda de Deus. Jó é, por excelência, o personagem hilflös [sem ajuda]. Quanto ao substantivo Hilflösigkeit, ao que parece, significativamente só surge no século XVIII, Século das Luzes, de Kant, da crítica da razão, justo quando a ajuda de Deus não é mais bastante para que o homem se assegure dos fundamentos de seu pensamento.
Não se trata aqui de uma simples excursão histórico-semântica, não nos afastamos de Freud, tanto que seu texto traz o vestígio dessa interrogação que o precede. Evocar a psicogênese freudiana da religião leva no mais das vezes a lembrar a reflexão de Totem e tabu, sua construção em torno do complexo paterno: ambivalência de sentimentos, desejos de morte, identificação, sentimento de culpa, nostalgia do pai morto e, enfim, idealização da qual resulta a figura de Deus. Uma seqüência como essa é homogênea à organização neurótica (mais precisamente: obsessiva) e o temor da castração qualifica aí a forma predominante da angústia.

Há outra maneira de ver em Freud, freqüentemente misturada à primeira, que vai encontrar sua expressão plena em O futuro de uma ilusão e no Mal-estar na civilização, mas cujos primeiros sinais são contemporâneos de Totem e tabu, por exemplo em Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci. Freud escreve:
“A religiosidade reconduz biologicamente à persistente incapacidade de ajudar a si mesmo (Hilflösigkeit) e à persistente necessidade de ajuda do bebê humano que, uma vez que mais tarde reconheceu seu abandono e sua fraqueza reais ante as grandes potências da vida, sente sua situação como a sentiu em sua infância e procura recusar o caráter sem esperança dessa situação por meio da renovação regressiva das potências protetoras infantis.”

Essa “renovação regressiva das potências infantis” leva Freud, em O futuro de uma ilusão, a conceber as religiões de outro modo que não como formações, como simbolizações do complexo paterno. Não são mais as ações compulsivas, os rituais expiatórios, que retêm sua atenção, mas sim a força de ilusão das religiões, sua capacidade de apresentar como realizados os desejos mais anti- gos, em suma a comunhão que há entre a idéia religiosa e a idéia delirante.

A religião, sob sua face neurótica, é a obra de um filho que desejou a morte do pai. Sob sua face psicótica, que consiste sobretudo em abolir a morte na fantasia da vida eterna, a religião é filha de um filho (e mais do que isso, somente de um filho de sexo masculino) no Hilflösigkeit, defrontado com a desmedida das potências parentais, e não encontrando ele próprio outra resposta à impotência total à qual sua prematuração o reduz, senão a onipotência (noção religiosa, antes de ser psicanalítica), senão o ilimitado, o “oceanismo” de seu narcisismo.

Essa excursão religiosa tinha por objetivo apenas levar-nos à questão central, a das angústias do início da vida, e conduzir-nos a uma distinção que podemos tentar refinar, entre angústia e desamparo.

Tentando apreender aquilo que forma a essência da angústia, Freud, ao longo de Inibição, sintoma e angústia, dá-nos evidências das incertezas que o habitam acerca desse assunto. A tentativa mais visível de apreender o conjunto da questão da angústia sob o registro da angústia de castração, fracassa, especialmente por causa das mulheres, uma vez que é verdade que para Freud, a existência de um complexo de castração nas mulheres nunca chegará a significar a presença de uma angústia de mesmo nome. Portanto, ele é levado, num movimento regressivo, a “tornar a descer” da angústia de castração para formas mais elementares, atravessando as fases iniciais da vida, até a angústia da perda do amor do objeto, da qual dirá que é, ao mesmo tempo, angústia do lactente e variante feminina da angústia.

O movimento freudiano para o qual eu desejaria chamar a atenção vai ainda além disso, além da angústia de perda do amor. Na última extremidade do caminho, se podemos falar assim, encontramos aquilo que Rank designou “angústia do nascimento”. Sobre isto, a atitude de Freud é dupla: na falta de uma inscrição psíquica suficiente, ele recusa àquilo que resulta do trauma do nascimento o caráter de verdadeira angústia. Mas atribui-lhe, pelo contrário, um valor de protótipo somático e o trauma do nascimento descreve as primeiras vias de facilitação (especialmente respiratória e cardíaca) que as angústias ulteriores voltarão a seguir. Aquilo que tem importância para nossos propósitos situa-se a meio caminho, entre o protótipo do nascimento e a angústia de perda do amor.

Esse momento intermediário corresponde a uma fase do desenvolvimento do ser humano, mas lucraremos se não o confundirmos com esta, à medida que ele é suscetível de repetir-se ao sabor da vida e de suas circunstâncias traumáticas: por exemplo, na análise rapidamente evocada, por ocasião da ameaça de irrupção do amor de transferência. Este momento é o do Hilflösigkeit, mais precisamente do Hilflösigkeit psíquico, como Freud o precisa na Conferência XXXII, “Angústia e vida pulsional”. A incapacidade de ajudar a si mesmo psiquicamente, o psiquismo em estado de desamparo... O inevitável correlato dessa posição é a prevalência do outro, o primado do outro, do Nebenmensch, do ser próximo, conforme o vocabulário freudiano do Projeto.

A argumentação de Inibição, Sintoma e Angústia é particularmente tortuosa. Importa-nos menos seguir os seus meandros do que salientar aquilo que, ainda que permanecendo apenas como indicação, permite pensar a questão do desamparo no tratamento. Freud procura estabelecer uma espécie de escala: ao mesmo tempo das idades, dos perigos e das angústias. Perigo de castração para a fase fálica, perigo de perda do amor para a primeira infância, aos quais correspondem as angústias já nomeadas. Mas quando se trata de Hilflösigkeit psíquico, digamos do desamparo psíquico, para tentar restituir alguma coisa da experiência analítica, então não é mais possível distinguir o perigo do afeto específico que lhe corresponde. O desamparo é ao mesmo tempo o perigo e o impacto psíquico desse perigo. O desamparo não é desamparo de... A angústia é sempre angústia de... Certo, desde Freud temos razão de fazer lembrar que o próprio da angústia é ser “sem objeto”. Mas esse “sem objeto” não significa a não-existência, a não-constituição deste. É antes a marca de um objeto em reticências; a angústia contém a espera de seu objeto, a abertura para este.

Por mais que seja afeto, a angústia já é a antecipação das representações da angústia. A este propósito, constitui a energia por excelência do processo psicanalítico, do movimento da análise. Lembro-me de ter ouvido Michel de M’Uzan dizer um dia: “viva a angústia, abaixo o desamparo”. Uma, mobiliza; o outro, paralisa. Se a angústia é o primeiro motor da análise e de seu progresso, é que em si mesma ela é abertura para o enigma do interior, talvez mesmo para os abismos do interior e, sem dúvida, mais radicalmente, porque é parte beneficiária daquilo que constitui a interioridade.

O que no meu modo de ver aponta para a originalidade do desamparo em relação à angústia, naturalmente sem cristalizar aquilo que os distingue, é que ela indica que a vida psíquica permaneceu, que continua a ser vivida fora de si, na desesperada abertura sobre o outro, para o outro. Um outro que não responde (ou que responde mal). Sem dúvida é preciso evitar caracterizar demais a situação psicopatogênica inicial, mesmo se à semelhança do “nada acontece” da paciente de Winnicott, a indiferença, o desinvestimento (e a patologia narcísica que apontam) parecem mais marcantes aqui do que a expressão do ódio.

Essa predominância do fora-de-si, do “espaço psíquico externo”, se me permitem essa formulação aproximativa, induz um deslocamento que se tornou clássico da literatura borderline: a possibilidade de uma dinâmica do tratamento, contra a ameaça do interminável, passa decisivamente pela análise da contratransferência. Mas o “fora-de-si” em questão leva também o enquadramento (muito próximo aqui daquilo que Winnicott denomina “ambiente”) a representar um papel de analisando. Um rápido exemplo, de um paciente no qual a irrupção do desamparo marcava-se não apenas pela anulação da vida de representação, uma espécie de deserto doloroso, mas também por uma multiplicação das faltas a sessões. Essa descontinuidade efetiva, ataque manifesto contra a análise, viria a revelar-se no fim das contas como a condição de possibilidade de sua continuação. E isso por um mecanismo perfeitamente inconsciente: ele nunca avisava quanto a suas ausências que, aliás, ele não decidia realmente, e que podiam impor-se a ele no momento de bater à porta do analista. Avisar teria sido uma forma de anular a sessão, mais precisamente teria decerto permitido ao analista liberar seu pensamento para dedicar sua atenção a outra coisa. Não avisar, ao contrário, permitia ao paciente continuar a existir na espera psíquica da qual era objeto por parte do analista.Tudo se passa, então, como se o espaço psíquico do analista fosse para o paciente o único lugar, fora-de-si, capaz de garantir uma continuidade mínima de vida psíquica. O gesto propriamente analítico num tal caso, quando a hora não é para interpretação, consiste em propor uma resposta diferente daquela que até então lhe tinha sido endereçada pela vida e que a palavra “paciência” resume. Palavra simples que expressa mal a complexidade que recobre.

Em termos de envelope, de continente, de ego auxiliar, muitas coisas têm sido ditas sobre essas questões desde Winnicott e Bion. O que tento apreender através do desamparo não vai tão longe, se posso dizer assim. O desamparo significa ao mesmo tempo uma abertura máxima do psiquismo, profunda, sem fundo como um abismo, e a desqualificação do outro, como outro, em sua tentativa de responder ao desespero, de tornar-se objeto disso. É nesse entre- dois, abertura do desamparo e impossibilidade do objeto, que procuro me manter.

Freud, antes de Winnicott, relaciona o desamparo psíquico com o estádio inicial da vida, em que o ego ainda é imaturo. A coisa parece ser da alçada do simples bom senso, no entanto parece-me conter uma espécie de armadilha. O registro do ser, do existir, do being, é concebido por Winnicott como o registro psíquico original, primário, a base da edificação. E é bem difícil não estar de acordo, tanto a coisa parece evidente. Não é preciso ser, antes de poder fazer? Aliás, isso é tão evidente que pode ser observado e sobre isto Winnicott toma emprestada a primeira idéia, até na minúcia das palavras, da etnógrafa Margaret Mead.

Vou levantar uma hipótese diferente: tudo aquilo que se manifesta na ordem do existir (a imaturidade do ego não tem idade) tem valor de sintoma, constitui portanto uma resposta e não a evidência de um estado primordial. Entre as significações desse sintoma equívoco, há a indicação de que o espaço psíquico é um espaço fora-de-si. A interioridade fica sendo privilégio do outro. Aqui não é questão de perseguição ou de angústia persecutória, movimento que consiste em pôr para fora aquilo que não se suporta dentro. É antes questão do caráter problemático da própria constituição do dentro. Uma configuração assim faz com que determinadas pacientes paradoxalmente possam viver de maneira bastante satisfatória uma gravidez, porquanto esta faz existir fisicamente, no ato, um espaço interior que o psiquismo por si só não consegue “alargar”.

Contra o fundo de um dispositivo como esse, não faltam as ameaças de despersonalização. O ato sexual pode exemplarmente ser a ocasião para isso, o ato que de forma brutal confronta o sujeito com o coração do problema: a existência psíquica de um só. Aqui seria preciso poder descrever com bastante fineza aquilo que separa a maneira esquizóide de ausentar-se, de uma resposta neurótica pela frigidez.

Evocar o núcleo psicótico seria bem cômodo, mas então estaríamos falhando precisamente naquilo que convém distinguir. A figura de alienação psíquica da psicose nasce da circunstância de que um outro é eu. Na configuração “limite” à qual me refiro, o único eu é um outro, um outro fora-de-si.

Podemos formular a hipótese seguinte: para poder ser, e ser suficientemente para que o mal-estar não se torne ulteriormente a forma privilegiada do sofrimento psíquico, é preciso que a identificação com o objeto primário (digamos: o seio), que essa identificação/introjeção (difícil de distinguir) disponha de base suficiente. Ser tem como condição de possibilidade um “eu sou o seio (logo) eu sou”, fórmula (infraverbal) da qual serei levado a fazer a fantasia fundadora do primeiro narcisismo.

O triunfo maníaco do bebê como majestade (“eu sou o seio!”) só é possível se o ambiente permitir essa ilusão. O aporte de Winnicott nesse ponto, o da onipotência e do objeto encontrado/criado, como se sabe, é essencial. Sem esquecer os precursores: Ferenczi, fala do “meio” [entourage] e de seu “tato”. Todas estas são observações que lhe ocorrem em contato com uma experiência clínica próxima daquela com que Winnicott se defronta. Entretanto, as opção de um e de outro são diferentes: quando um fala de ruptura na continuidade do ser devida à usurpação, o outro evoca a linguagem adulta da paixão. Um fala de necessidade; o outro não sai da sexualidade.

Depois, há o precursor inevitável: o próprio Freud, especialmente através de determinados desenvolvimentos do Projeto de 1895. Aquilo que em Winnicott se denomina “ambiente”, “meio” em Ferenczi, em Freud é Verständigung (comunicação); entre o adulto que socorre e os gritos de apelo à ajuda por parte da criança no Hilflösigkeit. Acerca desse encontro, Freud pensa que é a fonte primeira da moralidade. De maneira mais implícita, indica sobretudo que o psiquismo está fadado a constituir-se na relação com o outro.

Essa pista aberta por Freud não virá a ser muito seguida por ele, mas também nunca será abandonada. Não está longe de confundir-se, na sequencia da obra, com a idéia renovada da sedução. A “comunicação” do parágrafo sobre a experiência de satisfação de 1895, a consideração do par dissimétrico adulto/ bebê, de fato só será reencontrada em seguida sob os auspícios da sedução, digamos do amor que se mistura aos cuidados, para nos atermos a uma fórmula que não se afina muito com comunicação.

A idéia da criança, entregue em seu Hilflösigkeit ao arbítrio da sexualidade adulta, é explicitamente formulada em 1896 em A etiologia da histeria. Mas essa psicogênese da perversão situa-se fora do campo de nossa interrogação. Muito mais interessante é a evolução da idéia sob a pena de Freud, tal como se formula principalmente em três oportunidades: nos Três ensaios, em Uma lembrança de Leonardo da Vinci e no Esboço de 1938,7 portanto, até o final. Distinta desta vez da perversão singular, a idéia é então a de uma sedução extensiva ao “comércio” entre o adulto e a criança, na inextricável mistura de cuidados e de amor (incluída a sexualidade inconsciente). Sabemos a extensão dada recentemente por Jean Laplanche a esse tema. A idéia da sedução leva a pensar que a “usurpação”, a desadaptação da criança que esta implica, longe de ficar no interior da área da necessidade, participa da vida pulsional.

Voltemos um pouco atrás. “Eu sou o seio, eu sou...” Nos casos em que o narcisismo se constituiu inicialmente sobre uma base sólida, no final será possível dispensar-se de se mostrar exageradamente impaciente, exigente demais. Ao contrário daquilo que é evidenciado por uma experiência clínica em que prevaleça a dor de existir. Para este último caso, tornou-se banal destacar a fragilidade dos investimentos objetais, como se toda a libido estivesse monopolizada por um trabalho do gênero “barragem contra o Pacífico”, para reparar as brechas que não param de se abrir num envelope narcísico jamais construído.

Qualquer que seja a pertinência dessas formulações, convém notar que na maioria das vezes estão em sintonia com a problemática manifesta do paciente. Desde que o ego esteja no centro da atenção, a distância entre a palavra do analisando e o comentário teórico corre sempre o risco de estreitar-se. No entanto, não é porque estejam em primeiro plano, que o ego e o narcisismo são os únicos. O que acontece do lado do objeto, tal quando se reproduz alguma coisa disso na situação analítica, na transferência? Lá onde as patologias do narcisismo predominam, o objeto, esse misto sempre transicional de dentro/ fora, externo/interno, me/not me, em geral resulta de uma elaboração incerta. Será por falta, como quase sempre se dá a entender, ou por excesso? Um excesso de fora, excesso de alteridade, de estraneidade, dificilmente metabolizável.

A clínica dita borderline parece-me caracterizar-se de início por sua capacidade de impor a estranheza, a estraneidade daquilo que significa “o outro”. No fundo, com a psicose é mais simples e mais claro (o que não quer dizer mais fácil): lá, ao menos, o processo primário predomina. O inconsciente, no psicótico, é algo familiar.

Nada disso acontecia com essa paciente que atendo face a face, e que expõe numa palavra a radical estraneidade daquilo que, digamos, “nos reúne”... Mui- to raramente ela me olha nos olhos, e quando o faz é com rapidez e com uma intensidade difícil de sustentar. E diz: “Não consigo olhar alguém nos olhos, eu não sei quando começar, quando parar.” Donde, bem poderia ser que o objeto propriamente dito, o ob-jectus, seja o recalcado por excelência. Recalcado pela paciente, eventualmente pelo terapeuta quando a resposta clínica proposta toma a forma da “aliança terapêutica”.

AMOR/DESAMPARO

Espera-se o amor de transferência, chega o desamparo... O que será que leva de um ao outro? Acredita-se que sejam opostos, eles se revelam intercambiáveis.

Em O mal-estar na civilização, Freud conduz uma livre reflexão sobre a questão da felicidade e de algumas vias que tentam alcançá-la. O amor sexuado, observa ele, proporciona a mais forte das experiências, a de uma sensação de prazer que arrasa e fornece assim o modelo da aspiração à felicidade. Como é possível que esse caminho, uma vez encontrado, não seja seguido mais e mais? É que essa técnica de vida tem um ponto de fragilidade: “É quando amamos que estamos mais privados de proteção contra o sofrimento, e é quando perdemos o objeto amado ou seu amor, que estamos mais infelizes e no Hilflösigkeit”. Para rimar com amor, sofrimento e infelicidade, como traduzir Hilflösigkeit senão por desamparo? O amor (compreendido em sua parte não narcísica) é “agarrar-se” aos objetos do mundo exterior, abertura mantida para o outro e sua alteridade e, nesse ponto, homogênea do estado de desamparo do pequeno ser humano. Uma homogeneidade de movimento que não é uma identidade. “Amor” é uma palavra retrospectiva, como um destino do Hilflösigkeit.

  • Psicanalista, professor da Universidade de Paris VII, membro da Association Psychanalytique de France (APF).
FONTE: Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica











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