quinta-feira, dezembro 12, 2019

A INGÊNUA LIBERTINA




Como acompanhar a narrativa da jovem Minne sem lembrar de outras personagens que retrataram a figura da mulher burguesa bem casada, mas insatisfeita e descontente com o papel de esposa? Como não lembrar, por exemplo, das duas mais famosas personagens do século XIX: Madame Bovary, Anna Karenina? 

Contudo, apesar das semelhanças entre essas três personagens, uma dessemelhança fundamental se apresenta entre elas: Minne não é levada a um final trágico, como os de Emma e Anna. Certamente não podemos deixar de nos interrogar sobre, ao menos, dois fatores que poderiam esclarecer essa significativa diferença. 

Em primeiro lugar, a mudanças de valores morais do século XIX para o século XX. Lembremos que o século XIX foi marcado pela inflexível moral vitoriana que, conforme Freud, produziu uma rígida repressão sexual na sociedade civilizada. Em segundo lugar, arriscamos sugerir a questão de gênero na narrativa ficcional: Emma e Anna foram construídas por mãos masculinas, Minne é fruto do “devaneio”, como queria Freud, de uma mulher. Provavelmente estes dois elementos, assim como outros que possam ser sugeridos por estudiosos da cultura, estão em causa no desfecho dessas narrativas. Não é o nosso objetivo aprofundar esse viés de análise no texto. Mas antes, levantar a questão e suscitar outras possibilidades de análise.  

Voltemo-nos então para o romance de Colette. Sidonie-Gabrielle Colette nasceu na Borgonha em 1873 e morreu em Paris com 81 anos, consagrada como grande estilista da língua francesa.

Nas palavras de Maria Rita Kehl, “foi um monstro das letras e um fenômeno de massa. Vários de seus romances, desde a série inaugural dos Claudine, foram best-sellers, ao mesmo tempo em que seu estilo foi reconhecido por gente do porte de Proust, Cocteau, Sartre e Simone de Beauvoir.

Escreveu a vida toda, sem nunca ter tido a ambição de ser um gênio da literatura. Casada aos 19 anos com o quarentão mulherengo Willy, com quem teve sua iniciação erótica, Colette começou a escrever para superar uma suposta depressão decorrente das inúmeras traições do marido.”

Por um longo tempo, Colette não assumiu a autoria de seus romances, 
era o nome do marido – Willy – que aparecia nas capas das edições.   Só em 1923 passou a assinar sua obra. “A partir de então, sua escrita foi motivada acima de tudo pela "ambição louca de ganhar a vida por si mesma, no teatro e na literatura". 

Em A ingênua Libertina, publicado em 1909, Minne é uma garota que manifesta, desde muito jovem, um impertinente descontentamento com a educação estabelecida pela moral burguesa na alvorada do século XX.   Na primeira parte do livro, então com “catorze anos e oito meses”, acompanhamos o despertar de suas primeiras fantasias românticas e sexuais. O mistério da erotização do corpo levanta questões sobre o modelo do feminino representado pela figura materna: suas crenças e valores.

Frente à mãe, a jovem de pele alva, olhos negros e cabelos cacheados comporta-se conforme o esperado.  “Não é por medo que Minne esconde seus pensamentos da mãe. Um instinto caridoso a aconselha a permanecer, perante os olhos de Mamãe, uma criança grande obediente, cuidadosa como uma gata branca, que diz ‘Sim, mamãe’ e ‘Não, mamãe’, que vai às aulas e se deita às nove e meia da noite...”

Mas o que se passa fora do controle da mãe revela uma pré-adolescente “de inquieta sabedoria, que pouco fala, raramente ri, presa em segredo ao drama, à aventura romanesca, à paixão “.  Uma jovem impulsiva, “fria, que não conhece nem o medo, nem a piedade, e que se entrega em pensamentos a heróis sanguinários”. 

Assim como a jovem Emma Bovary, as leituras fecundam a selva fantasmática de Minne. Mas se Emma era fecundada por melodramas românticos, Minne se deixa fertilizar pelas colunas policiais dos jornais que lê escondido da mãe. Sua fantasia romântica/sexual não tem como protagonista nenhum príncipe encantado, mas um tipo desconhecido, Cabelo de Anjo, que, segundo as colunas policias, se encontra foragido da polícia. A jovem será capaz de não só elaborar fantasias com Cabelo de Anjo, mas de procurá-lo pelas ruas de Paris, interpelando homens que encontra pelas ruas. Esses encontros evidenciam uma adolescente que joga com a sedução, mas não se deixa enganar facilmente.

Mas além do seu mundo de fantasias está a convivência com o primo de dezessete anos. Nas trocas afetivas entre os dois adolescentes a autora se autoriza a uma inversão dos papéis tradicionalmente estabelecidos. Na narrativa estabelecida por Colette, é a personagem feminina que apresenta comportamentos perversos. Antoine é constantemente atormentado pela prima: sua permissão  para que ele lhe de apenas beijinhos no rosto, seus mandos e proibições, seus recursos para humilhá-lo, sua habilidade em descrever amores inventados - sem outro propósito senão o de torturar o jovem apaixonado; testemunham a sujeição do jovem frente a um gozo perverso do feminino.

Na segunda parte do livro o relacionamento entre os primos culminará em um casamento, conforme o desejo da mãe. No entanto, o lugar ocupado por cada um continuará o mesmo.  O cenário perfeito para o jogo de poder e submissão, com os parceiros se adaptando a seus lugares de dominadora e de amante subjugado. “Pobre Mamãe! Ela não achou nada melhor para me dizer antes de ir embora: ‘Case com Antoine, minha querida: ele a ama, e você não pode casar com outro...’ Ora essa! Eu poderia casar com trinta e seis mil outros, com qualquer um, contando que não fosse esse.”

“Com qualquer um, contando que não fosse esse.” Eis aqui um dizer que fala do desejo. Esse homem não. Esse homem, segundo o significado dado pela mãe, se situa na ordem da necessidade e não na ordem do desejo. Antoine, apesar de sua devoção, torna-se o representante da ferida narcísica de Minne. “Essa pobre mamãe, ela estava convencida de que eu trazia escrito na testa: “Eis aqui a moça que dormiu fora de casa! Dormiu fora de casa! As consequências que isso me trouxe!”

Minne, essa personagem narcísica, hedonista, movida pelo prazer, nunca se submeteria ao julgamento da mãe. Ela não pode amar a esse homem que ratifica diariamente o empobrecimento de sua imagem. É preciso que os desdobramentos das suas experiências sexuais e amorosas fora do casamento, venham deslocar o marido do lugar de significação dado pela mãe. Quando isso finalmente acontece Minne pode aceitar e reconhecer o amor de Antoine. 


MARIA HOLTHAUSEN
Grupo de Leitura - 25/11/2019


    

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