quinta-feira, junho 18, 2020

ANGÚSTIA



Angústia e castração


Marco Antonio Coutinho Jorge

O tema da angústia é abordado por Freud, do início ao fim de sua obra, por meio de duas teorias bem delimitadas.
A primeira teoria da angústia é baseada essencialmente no ponto de vista econômico: trata-se de uma grande quantidade de energia sexual que invadiu o sujeito, de um grande acréscimo de excitação que se aliviaria por meio da descarga dessa energia sexual. Freud irá falar aí de um coito insatisfatório. A angústia é, então, considerada como um intenso afeto de desprazer vinculado estritamente à sexualidade.
A segunda teoria freudiana da angústia a considera como um verdadeiro sinal de alarme, motivado pela necessidade de o eu se defender diante da iminência de um perigo. Trata-se eminentemente de uma reação à perda, à separação de um objeto fortemente investido. Logo, esta segunda teoria da angústia representa uma releitura que Freud faz a partir do momento em que inclui os novos elementos de sua doutrina: o Édipo e a castração.
A angústia surge aqui basicamente como angústia de castração e está ligada à perda e à separação. Freud passará a considerar a angústia, enquanto angústia de castração, como sendo um dado universal. Mas não deixará de mencionar, numa de suas “Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”, três diferentes possibilidades na origem do afeto da angústia: a angústia real, ocasionada por algum evento oriundo do mundo externo; a angústia neurótica, desencadeada por elementos pulsionais provenientes do isso; a angústia de consciência, produzida pelo supereu. Mas a segunda teoria da angústia em Freud está ligada essencialmente ao eu ponto fundamental que será retomado por Lacan em sua teoria do eu como sendo da ordem do imaginário. Veremos mais à frente que, para Lacan, a angústia será considerada como um sinal do real que invade a ordem imaginária do eu.
Desde Freud e depois com Lacan, o trauma é o exemplo princeps do fator desencadeador da angústia. Trauma que pode ser considerado seja em sua vertente ligada aos eventos do mundo externo, seja em sua vertente ligada à pulsão.
O trauma é aquilo para o que o sujeito não possui uma representação simbólica para lidar com ele, algo que se revela como inassimilável pelo sujeito. Desse modo, o trauma rompe o sentido dentro do qual o sujeito encontra alguma homeostase e introduz uma falta de sentido, um não-senso. Dito de outro modo, o trauma introduz algo de real – não-senso – no imaginário do sujeito, no sentido homeostático dentro do qual todo sujeito tende a se instalar.
Por isso as teses de Otto Rank sobre o trauma do nascimento são objeto de uma resposta por parte de Freud em 1926, em "“Inibição, Sintoma e Angústia"”. Rank pretendia atribuir ao que considerava como sendo o trauma primordial, o trauma do nascimento, um valor principal. Mas Freud se insurge contra essa concepção que considera por demais simplista e indica uma ordem traumática que pode ser reativada por diferentes situações, desencadeando diversos tipos de angústia em diferentes fases da vida do sujeito.
Lacan irá dedicar todo um ano de seu seminário à angústia e é precisamente em relação à angústia que ele irá criar aquilo que considerava como sendo sua única invenção: o objeto a. Se Freud aborda a angústia pelo viés da perda do objeto, Lacan irá conceber o advento da angústia precisamente na relação com a proximidade desse objeto. Para Lacan, o que angustia o bebê não é que o objeto seio falte, mas sim que ele o invada. A angústia surge quando algo vem ocupar o lugar do objeto faltoso do desejo, o objeto a. Ela revela a proximidade do objeto a, objeto causa do desejo, cujo comparecimento significaria a morte do desejo. 
Lacan irá reler o texto de Freud sobre o Unheimlich, o estranho, mostrando que a sensação do estranho e a angústia que ele causa estão relacionadas com a proximidade do objeto, quando no familiar acha-se insinuada a presença da Coisa e do estranho, dito de outro modo, “a sen- sação do desejo do Outro”.
Lacan considera, por isso mesmo, a angústia como sendo o afeto de base, o afeto por excelência, ou, como ele mesmo diz, o afeto que não engana. Todas as outras inúmeras gamas de afetos possíveis são apenas derivados simbólicos e imaginários – amor e ódio, por exemplo – do afeto da angústia. No que ela é a insinuação da Coisa e do estranho, a angústia acarreta a falta de palavras, a falta de possibilidade de simbolização. Nisso reside a articulação que Lacan fará entre a angústia e o gozo. A entrada do sujeito no mundo simbólico se dá através da perda do gozo, que fica para sempre situado fora da estrutura psíquica. Lacan dirá que o sujeito não pode afirmar: “Eu gozo”, pois o gozo é precisamente a falta do verbo, a ausência da palavra, o mais-além do simbólico. Nesse sentido, a angústia é a insinuação, a evocação desse gozo perdido e que, como tal, se revela mortífero para o sujeito.
O conceito de gozo, introduzido por Lacan, terá inúmeras consequências na compreensão de fatos clínicos. Para Lacan, o gozo está ligado à pulsão de morte introduzida por Freud em “"Mais Além do Princípio de Prazer"”. Embora para Lacan, segundo algumas precisas indicações de Freud, “toda pulsão seja pulsão de morte”, as pulsões sexuais se caracterizam por constituir um poderoso obstáculo à pulsão de morte, no que elas investem os objetos a vestidos, revestidos com suas vestimentas imaginárias e construídas simbolicamente para cada sujeito a partir de sua história edípica e de seus avatares.
As pulsões sexuais, ruidosas por natureza, fazem anteparo, por meio da fantasia, a esse encontro com o real da Coisa. Mas a grande lição de Lacan nesse aspecto foi a de nos mostrar que, mais-além dos objetos sexuais cativantes, a pulsão, como vetor único dirigido à morte e ao gozo, se orienta na direção da Coisa em seu caráter mortífero. Exemplo disso na clínica psicanalítica são as toxicomanias graves, nas quais o sujeito abdica de todo e qualquer prazer que lhe seria proporcionado pelos objetos sexuais – i (a) – e é claro que por objetos sexuais deve-se entender todos os objetos investidos libidinalmente e não somente aqueles propriamente sexuais – em prol do (suposto) gozo que lhe é proporcionado pela droga que funciona no lugar da Coisa. Outro exemplo que apresenta um caráter universal são as diferentes formas de masoquismo nas quais a dimensão prazerosa do sexual é cooptada pela dor e pelo gozo: no masoquismo erógeno, diretamente pela dor física; no masoquismo feminino, pela fantasia (e encenação) masculina da humilhação relacionada com a passividade feminina; e no masoquismo moral, pela diversificação quase infinita das manifestações ligadas ao fracasso, ao sofrimento, à culpa.
O caráter avassalador da angústia provém de que ela presentifica, no seio mesmo da estrutura psíquica, aquilo que foi abandonado em sua própria constituição. Uma série de fenômenos corporais -– sensação de despedaçamento corporal etc –- presentes na esquizofrenia atestam aquilo que Lacan designou, na “"Apresentação das Memórias de um doente dos nervos”", como sendo o sujeito do gozo na psicose, em oposição ao sujeito do significante. Trata-se, diz Lacan, da “origem sórdida do nosso ser” que, ao entrar no mundo simbólico e abandonar o sujeito do gozo, se constitui como sujeito do significante.
A angústia deve, então, ser entendida dentro dessa dialética da entrada do sujeito na ordem simbólica, através da operação que Lacan denominou de castração simbólica. Moustapha Safouan pôde afirmar, quanto a isso, numa frase que se pode considerar como lapidar sobre o assunto, que “a única coisa que acaba com a angústia de castração é ... a castração”.
Ou seja, é somente a castração simbólica que instaura a perda da Coisa e funda o sujeito enquanto sujeito desejante, isto é, referido a uma falta. O desejo é sinônimo de falta, assim como a pulsão é sinônimo de insatisfação quanto ao gozo que ela almeja.
A tripartição estrutural introduzida por Lacan desde sua conferência pronunciada em julho de 1953 na Sociedade Francesa de Psicanálise “"O Simbólico, o Imaginário e o Real”" e, a partir daí, jamais abandonada, é aquela que irá permitir uma compreensão da angústia dentro do quadro clínico destacado por Freud em “"Inibição, Sintoma e Angústia"”. Lacan abordará o assunto no seminário de 1974-75, R.S.I., no qual pretende rever uma série de questões sob a ótica, recentemente introduzida por ele, do nó borromeano.
De S.I.R. a R.S.I., a ordem das letras se alterou, o que revela por si só a primazia dada por Lacan ao real no último segmento de seu ensino. Lacan falará aqui da propriedade borromeana da estrutura como sendo a radical indissociabilidade dos três registros psíquicos: real, simbólico e imaginário. No centro extimo do nó borromeano, Lacan irá inscrever o objeto a, furo em torno do qual a estrutura psíquica borromeana se constrói. Ele irá introduzir aqui a noção de trou-matisme – palavra-valise que, ao associar o furo – trou – ao trauma – traumatisme –, revela que o trauma é o furo e, logo, ele é contingencial: não há como não haver trauma. A noção de trauma como contingência já havia sido referida por Lacan no escrito sobre a “Subversão do sujeito”.
Nesse seminário, Lacan irá fazer os registros R.S.I. trabalharem em sua propriedade borromeana para destacar três regiões de interseção correspondentes a três formas de gozo em sua relação com o objeto a: entre o real e o simbólico, Lacan nomeia o gozo fálico; entre o imaginário e o real, o gozo do Outro; e entre o simbólico e o imaginário, situa o sentido a jouisens. Além disso, concebe três diferentes invasões de um registro sobre outro para indicar nelas a trilogia clínica freudiana: a invasão do simbólico no real corresponde ao sintoma; a invasão do imaginário no simbólico corresponde à inibição; e a invasão do real no imaginário corresponde à angústia.
Tais invasões de um registro sobre outro partem de definições depuradas que Lacan fornecerá de cada um desses registros. Trata-se de definições precisas, podemos dizer até minimalistas, que enxugam todos os desenvolvimentos lacanianos anteriores em torno da questão do sentido: o imaginário é definido como da ordem do sentido; o real, Lacan o considera como o avesso do imaginário, o não- sentido ou não-senso; quanto ao simbólico, podemos resumir toda a concepção lacaniana do significante enquanto eminentemente binário (baseada na lógica exposta por Freud em alguns trabalhos e, em especial, em “"A Significação Antitética das Palavras Primitivas”", e defini-lo como sendo da ordem do duplo sentido.
Se o simbólico representa a ambiguidade, a anfibologia, o equívoco, o duplo sentido, o imaginário é precisamente a amputação do simbólico de sua característica primordial, é a redução desse duplo sentido ao sentido unívoco. Quanto ao real, Lacan dirá que ele é o ab-sens, o sentido enquanto ausente, o sem-sentido.
Assim, a inibição é o efeito da invasão do simbólico pelo imaginário, isto é, ela representa a redução do sentido; o sintoma, sendo a invasão do real pelo simbólico, tem como paradigma excelente o sintoma histérico, cujo corpo expressa simbolicamente a verdade de seu desejo; a angústia representa a invasão do sentido pelo não-sentido, por isso seu paradigma mais excelente prossegue sendo o trauma, isto é, a irrupção do não-senso radical do real no seio da homeostase imaginária.
Na neurose obsessiva, segundo Freud, o eu foi formado muito precocemente, o que, aliás, permite a ele situar esta constituição precoce do eu como o único elemento que poderia responder pela escolha dessa neurose. Levando-se em conta a observação freudiana sobre a maior incidência da neurose obsessiva nos sujeitos masculinos e da histeria nos sujeitos femininos – e mesmo que se considere com Lacan não mais a diferença anatômica apenas, mas também as posições subjetivas masculinas e femininas –, podemos observar que o obsessivo (o qual afirma, ele próprio, ter sido muito amado pelo Outro), tendo se identificado com o falo imaginário e constituído seu eu com uma consistência extremamente forte, apresentará mecanismos de defesa muito estruturados, em especial aqueles destacados por Freud: o isolamento, a supressão do afeto e a anulação retroativa.
Os rituais obsessivos, os atos obsessivos funcionam como verdadeiros impedimentos para o surgimento da angústia, posto que ligam toda a energia libidinal para sua consecução. O obsessivo não consegue evitar o ritual justo porque sua função é a de impedir a emergência da angústia e a supercomplexificação dos rituais se acentua sempre nessa direção e com esse objetivo. Por isso, Freud irá dizer que a angústia precedeu os sintomas obsessi- vos, que foram criados precisamente para evitar seu surgimento.
No caso da histeria, os sintomas histéricos convertem toda a energia em sintomas corporais e, por isso, eles impedem igualmente o aparecimento da angústia. Na histeria, o mecanismo do recalque sendo prevalente, a representação recalcada retorna através da conversão, produzindo o sintoma que, ao expressar o desejo, terá revelada na análise a fantasia a ele subjacente. Toda análise de um sintoma (S - R) consistirá, por isso mesmo, no destacamento de uma fantasia inconsciente que suporta o desejo. Freud escreveu dois artigos em 1908, “"Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade"” e "“Algumas Observações Gerais sobre os Ataques Histéricos"”, especialmente para dar relevo a essa relação íntima entre sintoma e fantasia.
Tal fantasia ocupa, na neurose, um lugar estrutural e é efeito do recalcamento originário, a partir do qual ela constitui uma tela protetora em relação ao real e constitui a realidade psíquica. Daí Lacan situar o fim da análise como sendo a travessia da fantasia, ou seja, o acesso do sujeito aos elementos significantes que lhe permitiram fazer face ao real.
Na fobia do pequeno Hans, Freud irá observar que o surgimento da angústia é exatamente aquilo que, por um lado, sucede o surgimento da diferença instaurada entre Hans e a imagem fálica após dois eventos sumamente importantes: primeiro, o nascimento de sua irmã Hanna, e, segundo, o advento da excitação sexual, que Lacan menciona como sendo o despertar de seu pênis enquanto real. O surgimento da pulsão produz o descolamento de Hans de sua imagem fálica, já que ele ocupou o lugar, segundo Lacan, da metonímia do falo imaginário.
Por outro lado, a angústia de Hans é sucedida pela constituição do objeto fóbico - o cavalo, no qual Lacan irá isolar um resíduo dessa mesma angústia. Freud tenta interpretar sem êxito o sentido daquela “mancha negra” no focinho do cavalo, à qual Hans se referia insistentemente junto a seu pai. Lacan dirá que o sentido da “mancha negra” a que se refere Hans é o de que ela remete à angústia que o objeto fóbico, o cavalo, veio precisamente obliterar. Lacan irá recomendar ainda: procurem em todo objeto fóbico esse elemento de imprecisão porque ele está sempre presente. Ele remete precisamente à angústia que o objeto fóbico veio tamponar e que insiste, ainda assim, em se insinuar para o sujeito. φ

Bibliografia
FREUD, S. "“Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade"” (1908), in Obras completas, v.IX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. "“Algumas observações gerais sobre ataques histéricos"” (1908), in Obras completas, v.IX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
REUD, S. "“A significação antitética das palavras primitivas"” (1910), in Obras completas, v.XI. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “"O estranho"” (1919), in Obras completas, v.XVII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “"Mais-além do princípio de prazer”" (1920), in Obras completas, v.XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “"Inibições, sintomas e angústia"” (1926), in Obras completas, v.XX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
JORGE, Marco Antonio Coutinho, “"A pulsão de morte"”, in Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n.26, p.23-39, out.2003. Publ.Círculo Brasileiro de Psicanálise.
LACAN, J. “"Apresentação das Memórias de um doente dos nervos"”, in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. “"O simbólico, o imaginário e o real”", in Nomes do pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, J. O seminário, livro 22: R.S.I., inédito.

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