Francisco Bosco
Numa
entrada de 18/11/1956, Susan Sontag anuncia em seu diário o projeto de escrever
“Notas sobre o Casamento”. Não conheço muito de sua obra, tendo lido apenas um
punhado de ensaios de sua autoria, logo não sei se ela levou adiante o projeto.
Em entradas anteriores e posteriores do primeiro volume de seus Diários – 1947-1963 (Companhia
das Letras, 2009), entretanto, há algumas observações que deveriam constar
dele. Com base nelas – faz parte da admiração intelectual herdar o desejo do outro –, tomo para mim, aqui,
a tarefa de escrever algumas notas sobre o casamento. É oportuno esclarecer que
as observações de Sontag que vou comentar (servindo-me delas apenas como ponto
de partida para outras percepções que lhes são independentes) dizem respeito à
experiência da autora com Philip Rieff, com quem se casou aos 16 anos (e de
quem se separaria seis anos depois), e, o que é mais importante, num momento de
confusão e angústia com a própria sexualidade. Apesar de estar vivendo no
Estado mais liberal da Califórnia, esse momento de sua adolescência situa-se
nos anos 1950, portanto antes da explosão da revolução sexual, e fica claro que
Sontag ainda lutava consigo mesma contra a estigmatização da homossexualidade.
Acredito que a unilateralidade de seus julgamentos, cujo pessimismo incorre
quase sempre em generalizações e reducionismos, deva-se decisivamente aos
tormentos psicossociais que estão no cerne de sua resolução intempestiva de
realizar um casamento heterossexual. Resolução assim relatada em seu diário
(3/1/1950): “Casei com P. com plena consciência + medo de minha própria vontade
apontada para a autodestrutividade”.
As
observações de Sontag sobre o casamento convergem para dois juízos principais:
o de que o casamento se resume a um movimento inercial, preso a uma lógica da
repetição, e o de que ele, em vez de aguçar, embota os sentimentos. Esses dois
aspectos podem ser conferidos na entrada de 4/9/1956: “Quem inventou o
casamento foi um torturador astuto. É uma instituição destinada a embotar os
sentimentos. Toda a questão do casamento se resume na repetição. O melhor que
ele almeja é a criação de dependências fortes e mútuas”. Um pouco adiante, na
entrada de 18/11/1956, Sontag prossegue no registro veemente: “Casamento se
baseia no princípio da inércia. Proximidade sem amor”. Para mim, contudo,
Sontag não poderia estar mais equivocada.
Há
uma obra da fotógrafa norte-americana Nan Goldin que me ajudará a argumentar em
outro sentido. Essa obra, Heartbeat,
apresenta-se como cinco séries de fotos que, projetadas sobre uma tela, vão
dispondo, cada uma, dezenas de instantâneos, à maneira de um filme
drasticamente ralentado. Cada série leva o nome dos membros do casal que a
protagoniza e um subtítulo (que é um comentário de Nan Goldin sobre o que ela
considera a experiência desse casal: por exemplo, Joanne et Aurelie – French Kiss). As fotos,
trazendo o olhar característico de Nan Goldin, mostram cenas banais da
intimidade, do cotidiano dos casais. Em composição com elas, e duplicando o
fluxo temporal em que elas vão se sucedendo, ouve-se uma magnífica – solene,
pungente, pode-se dizer mesmo sacra – canção interpretada por Björk. À medida
que as fotos vão passando, ocorre uma verdadeira (aqui lamento o trocadilho) revelação.
A
sucessão dos instantâneos não produz uma narrativa para a frente, no tempo, mas sim para baixo, fazendo
surgir outra dimensão, de uma profundidade vertiginosa, profundidade que também
não se situa no espaço. Mais precisamente, do eixo horizontal da narrativa
emana um eixo vertical cuja dimensão, nem temporal nem espacial, é, justamente,
aquela da experiência amorosa no casamento. Esse eixo vertical é característico
da experiência do casamento porque resulta da repetição unida à intimidade.
Assim, a verdadeira consequência da repetição, no casamento, é produzir uma
diferença de radicalidade muito maior do que as diferenças que se
situam em seu plano horizontal, e que ele, pode-se dizer, até certo ponto barra
ou dificulta. A repetição, assim, gera e sustenta um eixo vertical e
vertiginoso que é a um tempo o lugar da salvação e do trágico.
Tentemos
compreender isso. Toda relação erótica configura uma passagem. O verso do
poeta emerge de uma abertura do mundo à sua linguagem (ou, talvez mais
exatamente, dentro dela), assim como o desejo sexual é um canal aberto que
conduz uma pessoa à outra. Eros se deixa reconhecer (também) por essa passagem.
Mas o eixo vertical a que me refiro é outra coisa. Sua existência depende,
seguramente, de manter-se aberta uma passagem, mas o que caracteriza seu ser
não é o desimpedimento, a liberdade da passagem, e sim seu poder gravitacional,
sua força que impele para baixo. Esse “para baixo”, é preciso compreendê-lo num
sentido ontológico (não importa que ilusório): sua gravidade alivia-nos da
leveza insustentável de nossa condição ontológica, de seu absurdo irredimível
(é esse também o sentido do romance de Kundera). É, portanto, a meu ver o amor,
e não o erotismo, o que nos ilude de nossa descontinuidade
fundamental, para usar o conceito de Bataille. Eros, como disse, é, sim, uma
passagem – mas que leva, um a outro, por uma súbita abertura, dois seres
descontínuos, sem que sua
descontinuidade essencial seja abolida por essa passagem. É somente
no eixo vertical da experiência amorosa, nessa sua dimensão específica, que o
outro se revela como capaz de doar um sentido, uma espécie de gravidade
ontológica, atando o ser, que é solto, a algo que o transcende e justifica. É a
isso que creio que Guimarães Rosa se referia ao dizer que o amor “é um descanso
na loucura”.
E
é à luz disso que se deve entender, num sentido não neurótico, a dependência
produzida pelo casamento, a que Sontag se refere. A dependência não tem
necessariamente caráter neurótico, tampouco reduz-se ao problema da
redistribuição libidinal (tópica freudiana do luto). A dependência tem a ver,
numa instância superior, com o trágico: perder o ser amado é perder essa
gravidade ontológica sem a qual imediatamente nos transformamos em uma espécie
de astronautas da terra – flutuando, sem “descanso”, no infinito da existência.
Um
casamento sem Eros, ou com Eros debilitado, deve, apesar de tudo, ser desfeito.
Eros, é claro, não se reduz ao sexo; sua presença verifica-se em tudo que, no
outro, pelo outro, nos vitaliza, contribui para o aumento de nossas potências.
O contrário de Eros é a neurose, a repetição sem diferença, sem transformação,
a manutenção de laços paralisantes, a dependência, em suma, por covardia
existencial.
Voltando
à obra de Nan Goldin, nela um único verso, insistente, é entoado por Björk: “Lord, Jesus Christ, son of God, have
mercy upon me”. Ouvimo-lo repetidamente, enquanto vemos as fotos.
Seu sentido está ligado ao trágico da experiência amorosa (e a um deleuziano
modo de ser atravessado por forças maiores do que se pode aguentar), à
possibilidade de perda do outro. A obra de Nan Goldin, em tempos de
superficialidade e anestesia afetivas, revela-nos, para dizer de forma quase
obscena – e certamente cafona –, o que significa, ou significou, morrer de amor.
Significa, justamente, a perda desse fundamento ontológico que se torna o
outro. “Have mercy upon me”:
à mercê de Cristo é tanto a doação do amor quanto a súplica para que não nos
seja retirado. Barthes, ao perder a mãe (com quem, e só com quem, foi, de certo
modo, casado), imprecava: “Quem foi o Lúcifer que inventou o amor e a morte ao mesmo tempo?”. Mas,
talvez, sem a morte não houvesse o amor: os anjos têm amor pelos mortais, não
por outros anjos.
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