ESP: O senhor refletia sobre o livro há muito tempo, até 40 anos. Por que se trata de uma obra tão pessoal e importante?
LF: Eu me sinto como se estivéssemos entre amigos, ao fogo de
uma lareira na serra. Sim, este livro é de longe o mais importante a meu ver
entre todos os que escrevi. É o primeiro que no qual eu emprego minha própria
filosofia, minha análise do
tempo presente, que me parece caracterizado por três grandes traços: a
desconstrução dos valores tradicionais, a emergência da globalização liberal e
o nascimento do casamento por amor e da família moderna. Estes três traços são ligados entre eles, e
formam uma paisagem coerente. É nesta paisagem que nossas vidas vão tomar
sentido. Sim, também é verdade que se trata de um
livro de toda uma vida.
ESP: Sobre A Revolução do Amor,
comecemos por sua ideia de base: algo de revolucionário teria acontecido há alguns séculos: a
invenção do casamento por amor na Europa. Qual é a amplitude desta
revolução?
JF:
É imensa! O que eu chamo de "revolução
do amor" é o nascimento da família moderna, ou seja, a passagem do
casamento arranjado pelos pais e pelos vilarejos, ao casamento escolhido
livremente pelos jovens imbuídos de amor. Esta revolução na vida
privada chacoalhou nossas existências. Ela aportou um novo princípio de
sentido, que exige uma nova filosofia. Mas, ao contrário do que poderíamos
crer, ela não chacoalha apenas
nossas existências privadas, mas toda a nossa relação com a coletividade. É o
que eu chamo de "segundo humanismo". O primeiro foi o humanismo da lei e da
razão. Era o do Iluminismo e dos direitos humanos, dos Republicanos
franceses e de Kant. O segundo humanismo
é um humanismo da fraternidade e da simpatia. Minha
convicção é que existe desde então uma única visão do mundo movida por este
sopro de uma utopia possível. Porque o ideal que ela visa a realizar não é o
dos nacionalismos, nem as ideias revolucionárias. Não se trata mais de organizar os grandes massacres em nome de
princípios mortíferos que se acreditava serem exteriores e superiores à
humanidade, mas de preparar o futuro para os que nós amamos mais, o das
gerações futuras.
ESP: Essa revolução produziu efeitos sobre a arte e a moral, mas há
efeitos ainda em progresso, como a evolução da condição da mulher e dos
homossexuais, por exemplo. Quais são os indícios desta revolução
hoje?
JF:
Antes de mais nada, é preciso dizer que esta revolução do casamento de amor,
escolhido e não imposto, começa na Europa e depois se estende a todo o mundo
cultural ocidental. Isso quer dizer que no resto do mundo o casamento
tradicional, imposto pelos pais e pelos vilarejos continua a ser a regra. No Ocidente, nós temos vivido desde o século 20 uma formidável
desconstrução dos valores tradicionais. Ela às vezes teve efeitos negativos, em
especial na escola, mas também formidavelmente positivos, em especial para os
homossexuais e para as mulheres. Observe que em um país como a
Suíça, no coração da Europa, o último cantão a conceder o direito de voto às
mulheres o fez, pense bem, em 29 de abril de 1991! Isso quer dizer que, até
então, as mulheres ainda eram vistas como crianças. Na França, foi um pouco
mais cedo, mas, enfim, foi preciso esperar o fim da Segunda Guerra Mundial para
que as mulheres tivessem o direito de voto. Quanto aos homossexuais, lembre-se o que a Organização Mundial da
Saúde (OMS) definia a homossexualidade como uma doença até 1990! Sim, nosso
mundo ocidental mudou mais nos 50 anos da segunda metade do século 20 do que
nos 500 anos anteriores! E eu não falo nem mesmo das revoluções
científicas, da genética, do digital, etc.
ESP: Falemos sobre a destruição dos valores
tradicionais. No seu entender, parte desse processo vem do fato de que as
ideias não merecem mais sacrifício, só o humano. É isso o retorno da
"sacralização", do reencantamento do mundo?
JF:
Como a "consciência infeliz" da qual falava Hegel, nós
temos sempre a tendência de nos dar conta na história do que se destrói e
morre, quase nunca do que surge, toma forma e vida. Logo, temos uma propensão ao pessimismo, propensão tão forte que dá
asas ao pensamento negativo. Ao contrário do otimismo, sempre um pouco
simplório, ele confere à primeira vista uma presunção de inteligência.
Às vésperas do século 21, é verdade, a maior parte dos valores tradicionais, em
especial a nação de direito e a revolução de esquerda, desmoronaram, ao menos
na Europa. Logo, devemos constatar, pelo menos na Europa, que os motivos
tradicionais do sacrifício coletivo, violento e maciço, foram liquidados. Quem desejaria nos dias de hoje, ao menos nos países que vivem da
cultura europeia, morrer por Deus, pela pátria ou pela revolução? Não muita
gente, ou pelo menos mil vezes menos do que no início do último século.
Mas, ao encontro da morosidade ambiente, eu defendo que esta é uma grande
notícia, não do século, mas do milênio. Champanhe! No que diz respeito às
guerras nacionalistas, como eu poderia lamentar, eu que estudei na Alemanha, o
tempo em que meu pai atacava meus professores (e reciprocamente)? Quanto às estupidezes mortíferas do maoismo, com suas dezenas de
milhões de mortos em condições atrozes, quem, fora alguns intelectuais senis
corroídos pelo desejo de se pretender interessante, poderia não se felicitar da
sua liquidação?
ESP: Isso não quer dizer que nós vivemos a era do
desencantamento do mundo? Há mesmo lugar ainda, hoje, para alguma
espiritualidade?
JF: Não creio nisso que vivamos uma era do desencantamento do mundo. Aí está até mesmo a ilusão arquetipal desta consciência infeliz que adora tanto não adorar. O que nós vivemos não é de forma alguma a liquidação do sagrado, o eclipse dos valores (da espiritualidade), mas sua encarnação em nova face, a da humanidade. Questione-se honestamente: por quem ou pelo que você estaria pronto a arriscar sua vida? Em outros termos, o que você considera sagrado no sentido próprio, como digno de sacrifício? A resposta para a imensa maior parte seria: é o homem que é sagrado, o próximo, mas também o seu contrário, o seguinte. Em todo caso, não são as abstrações vazias da religião e da política tradicionais. Vivemos o nascimento de uma nova face do humanismo, que não é mais aquele de Voltaire e Kant, dos direitos do homem e da razão, desses iluminismos que portaram, é verdade, um vasto projeto de emancipação, mas que conduziram também ao imperialismo e à colonização. Trata-se, ao contrário, de um humanismo pós-colonial e pós-metafísico, da transcendência do outro e do amor. Precisaremos, então, dessas novas categorias filosóficas (uma espiritualidade sem Deus) para refletir sobre suas armadilhas e perspectivas.
JF: Não creio nisso que vivamos uma era do desencantamento do mundo. Aí está até mesmo a ilusão arquetipal desta consciência infeliz que adora tanto não adorar. O que nós vivemos não é de forma alguma a liquidação do sagrado, o eclipse dos valores (da espiritualidade), mas sua encarnação em nova face, a da humanidade. Questione-se honestamente: por quem ou pelo que você estaria pronto a arriscar sua vida? Em outros termos, o que você considera sagrado no sentido próprio, como digno de sacrifício? A resposta para a imensa maior parte seria: é o homem que é sagrado, o próximo, mas também o seu contrário, o seguinte. Em todo caso, não são as abstrações vazias da religião e da política tradicionais. Vivemos o nascimento de uma nova face do humanismo, que não é mais aquele de Voltaire e Kant, dos direitos do homem e da razão, desses iluminismos que portaram, é verdade, um vasto projeto de emancipação, mas que conduziram também ao imperialismo e à colonização. Trata-se, ao contrário, de um humanismo pós-colonial e pós-metafísico, da transcendência do outro e do amor. Precisaremos, então, dessas novas categorias filosóficas (uma espiritualidade sem Deus) para refletir sobre suas armadilhas e perspectivas.
ESP: O senhor diz que a globalização tem um papel na
desconstrução dos valores. Estamos na era do consumo de massa e da economia
global, o que gera um impacto social e altera nossa maneira de ver o mundo,
certo?
JF:
Sim, é isso. O verdadeiro motor da
desconstrução dos valores tradicionais foi o capitalismo moderno. Marx já tinha
compreendido isso de forma genial quando dizia que o capitalismo era a
revolução permanente. Por quê? Porque a competição, sobretudo quando é mundial,
leva inevitavelmente à lógica da inovação permanente, da inovação pela
inovação. Uma empresa que não inova o tempo todo está fadada a morrer. Mas há
mais do que isso. Os que desconstruíram os valores tradicionais no século 20
eram com frequência de esquerda, mais ou menos boêmios ou anarquistas, como em
Maio de 68. A verdade do século é que esta grande desconstrução serviu aos
interesses do capitalismo.
ESP: Fale mais sobre isso.
JF:
Foi necessário que os valores e as autoridades tradicionais fossem
desconstruídas pelos boêmios, pelos jovens de cabelos longos, libertários,
anarquistas, republicanos e antiburgueses para que o capitalismo, ele também
moderno e fadado à inovação pela inovação, pudesse fazer entrar nossos filhos
na era do grande consumo de massa sem o qual seu enfraquecimento e seu futuro
globalizado simplesmente não teriam sido possíveis. Eis o que me parece uma das
verdades mais profundas do século passado, verdade que vai crescer no século
que está aí. Se nossos filhos tivessem
os mesmos valores que nossos avós, eles não comprariam um telefone celular por
ano, ou um MP3, ou um novo videogame. Do contrário, se nossos antepassados
pudessem ver um grande centro comercial ao estilo americano, eles acharia
provavelmente que estes novos templos edificados ao deus do consumo escoam
besteiras e obscenidades. Eles talvez pensassem que estas bugigangas
absurdas que transbordam das vitrines nós distanciam dos verdadeiros valores,
como os deveres em relação ao próximo, mas também em relação a si mesmo. Logo,
foi necessário que as visões tradicionais do mundo fossem desconstruídas
totalmente para que, enfim livre dos velhos freios, nós pudéssemos nos
consagrar ao consumo sem complexos, ao menos no limite de nosso poder de
compra.
ESP: Sua ideia de reencantamento é um paradoxo à de
Max Weber, que falava no início do século 20 do desencantamento do mundo. Minha
questão é: o reencantamento é só positivo, ou também tem sua "parte do
diabo"?
JF:
Você tem razão, há uma verdadeira parte do diabo. Não sou ingênuo. Quando eu falo da revolução do casamento escolhido, do casamento do
amor em nossas vidas, não quero dizer que nós entramos no mundo ideal, no qual
todo mundo se ama, ou todo mundo é bonito e gentil. Antes de mais nada, porque
o reverso da medalha do amor, é o ódio. Não há rosas sem espinhos, nem amor sem
ódio. Além disso, o amor dos seus, dos próximos, pode levar a um egoísmo louco.
Nós estaríamos prontos a tudo pelo sucesso de nossos filhos, inclusive a
sacrificar o dos outros. Tudo isso é verdade. Mas também é verdade que o amor
que dá sentido a nossas vidas não é mais o amor pela nação, nem pela revolução. A questão
que as gerações futuras vão definir, como os ecologistas já compreenderam, é
cada vez mais crucial: que mundo vamos deixar a nossos filhos? Eis essa nova e
grande questão política não diz respeito só à ecologia, mas à dívida pública,
ao futuro da proteção social na época da globalização, à regulação financeira
ou ao choque de civilizações. Não é porque o amor dá sentido a nossas vidas que
os problemas desaparecem. Mas nós podemos observá-los em uma perspectiva de
sentido novo, em relação às gerações futuras.
ESP: Quando falamos em um mundo no qual o casamento
de amor está no centro de uma revolução, como devemos ver as civilizações em
que o casamento ainda é determinado por interesses financeiros, políticos ou
diplomáticos?
JF:
Sem defender o eurocentrismo, é preciso reconhecer que nosso velho
continente inventou algo de único e de precioso, de singular e de grandioso:
uma cultura da autonomia dos indivíduos como nenhuma outra, uma exigência de
pensar por si mesmo, de sair dessa "menoridade" infantil - como dizia
Kant sobre o Iluminismo - mantida por todas as civilizações religiosas, todas
as teocracias e todos os regimes autoritários. Este movimento
caminha em direção à autonomia, como aconteceu primeiro com a arte, desde o
século 17, quando ela deixou de ser exclusivamente religiosa, depois se
infiltrou em toda a civilização europeia, da filosofia, racionalista, à
política, laica e democrática, passando pela ciência, hostil aos dogmatismos
clericais, e pela vida privada, quando o casamento decidido pelo amor substitui
o casamento racional imposto pelos pais e pelos vilarejos. Este é o gênio da
Europa que acabaria por si mesmo por abolir a escravidão e a colonização, por
se desfazer dos totalitarismos e, enfim, reconhecer a alteridade. Nada, nesta
valorização da civilização europeia, implica o menor racismo, a menor tendência
neocolonial. Outras civilizações são igualmente grandiosas, mas sim, é
inegável, a civilização europeia inventou a autonomia política, como a
democracia, assim como a autonomia privada, como o casamento por amor e a
família escolhida. E, francamente, como não se apegar a isso?
ESP: O senhor diz que o sagrado reencarna na cultura
ocidental. Mas e as revoluções no mundo árabe, marcada por princípios modernos,
como a liberdade e a democracia? Devemos esperar um dia uma nova onda de
revoluções? A dinâmica do Ocidente é válida para todo o mundo?
JF:
Sim, eu estou convencido disso. As revoluções árabes, embora corram o risco de
serem apropriadas pelo islamismo radical, são apesar de tudo uma novidade
magnífica. Observe como o mundo evoluiu nos últimos 50 anos. Quando eu era
criança, a velha Europa estava tomada por ditaduras. Franco ainda era vivo, a
revolução dos cravos em Portugal não tinha acontecido e a Grécia ainda sofria o
regime fascista dos coronéis! A Rússia e os países do leste viviam na pior
tirania, e a América Latina estava povoada de ditaduras. Tudo isso mudou para
melhor, e apesar do delírio pessimista que reina hoje, esta é a verdade. Mesmo
a China é cem vezes mais democrática do que no tempo de Mao e da Revolução
Cultural que deixou 70 milhões de mortos em circunstâncias atrozes. O paradoxo
é: nós vamos viver um declínio econômico e social na Europa, mas ao mesmo tempo
uma formidável vitória dos valores da democracia europeia. Estou certo que,
como aconteceu aqui, um "segundo humanismo" vai se seguir ao
primeiro.
FONTE:
JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO – 08/06/2012
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