sexta-feira, abril 17, 2009

Aula de 14 de abril



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Texto para o Cartel de MG

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Em 1953, na fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise, Lacan pronuncia uma conferência que intitula de “O simbólico, o imaginário e o real. A partir daí, a tripartição estrutural real-simbólico-imaginário – RSI – foi objeto de contínua investigação até o último de seu Seminário.



Vinte anos depois (1974-75) apresenta o Seminário denominado RSI, reunindo os três registros sob a ótica do nó borromeano. Nesse Seminário, Lacan utiliza a imagem do nó borromeano para representar as relações de dependência recíprocas entre os três registros. Esses três registros são absolutamente indissociáveis. Eles se entrelaçam e, juntos, dão consistência e existência ao psiquismo. Podemos dizer que a noção do nó borromeano em Lacan é análoga a noção de estrutura psíquica em Freud.




O Real



O campo do Real não é a realidade externa, material ou não, nem muito menos a realidade psíquica de Freud, constituída pela fantasia; o Real é o que subsiste a toda simbolização. É o que sempre resta, o impossível de simbolizar. Como impossível, o Real é o que não cessa de não se escrever.

Nesse campo Lacan situa as pulsões parciais. O objeto a, na sua vertente de Das Ding - a Coisa -, o Vazio; é o objeto causa de desejo.

Desde o Seminário 10 – a angústia –, Lacan muda sua concepção de desejo: da intencionalidade à causalidade. Já não se trata do desejo, à maneira da concepção de consciência husserleriana, movido pela intenção, um desejo que se dirige ao objeto

d ---------------------→ a



Trata-se, a partir de então, do desejo “causado”, determinado pelo objeto.



a ----------------------→ d




O desejo intenção corre atrás do seu objeto, circunscrevendo-o na dimensão imaginária. É radicalmente diferente considerar que o objeto está atrás do desejo, que o causa, o determina. Lacan, no Sem. 10, toma o exemplo do fetichista. O fetiche é o Dasein, estar ali. O desejo não se dirige ao fetiche, não é sua meta, mas sim presença necessária que causa e determina a aparição do desejo.



O Simbólico


Se em Lévi-Strauss o simbólico é o lugar da cultura, em Lacan, o simbólico não se resume a ela. Para a teoria lacaniana, o Simbólico é a rede significante, o conjunto dos significantes marcado pelo significante da falta de um significante que pudesse totalizá-lo. O simbólico, portanto, é da ordem da contingência. É o que cessa de não se escrever.


No campo do simbólico o objeto a ganha estatuto de semblante. É aí que podemos falar de pulsão oral – objeto seio, pulsão anal – objeto fezes, pulsão escópica – objeto olhar e pulsão invocante – objeto voz.


O Imaginário


O Imaginário é mais que a imagem e a imaginação. O imaginário é o sistema dos significados ou das significações cristalizadas. É da ordem do necessário: do que não cessa de se escrever.


No campo do imaginário se constitui o estádio do espelho. Onde o olhar do Outro (a mãe) enlaça a libido do sujeito a sua imagem. É o campo do narcisismo e do amor.


Embora o objeto a escape a especularização ele é a condição da imagem narcisista – i(a). Ao mesmo tempo em que a imagem mascara o objeto, forma-se a partir dele.


Lacan esvazia o predomínio imaginário que os prós-freudianos, sob a batuta de Melaine Klein, haviam construído na clínica e na teoria psicanalítica, povoando-a de objetos bons, objetos maus, fases de desenvolvimento e interpretações capazes de revelar o sentido oculto da fala do analisando.


Na trilha desse esvaziamento imaginário, muitas vezes, utiliza, metaforicamente, os conceitos da filosofia para propor uma nova leitura dos conceitos freudianos. Como, por exemplo, o recurso a Hegel e à “dialética do senhor e do escravo” vai servir para repensar o complexo freudiano do Édipo em termos de uma dinâmica intersubjetiva, e não como um sistema de escolhas e de relação de objeto.



segunda-feira, abril 06, 2009



Textos para o Cartel de MG
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O espelho
Esboços de uma nova teoria da alma humana
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Machado de Assis
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Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:


- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.

- Nem conjetura, nem
opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

- Duas?

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...


- Perdão; essa senhora quem é?

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...


Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

- Espelho grande?

- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

- Não.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?


- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.


- Matá-lo?

- Antes assim fosse.

- Coisa pior?

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhastão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

- Mas não comia?

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

- Na verdade, era de enlouquecer.

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...


Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.
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Cartografia de um Corpo Reinventado
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Francisco Bosco, in: Banalogias
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O corpo das putas é um corpo singular. Uma espécie de mapa em que linhas contratuais organizam regiões de acordo com seu estatuto “jurídico”: cada zona desse corpo assumirá um sentido determinado por sua relação com o fato, primordial, de que se trata de um corpo sob contrato. Ocorre que o fato de haver contrato implica imediatamente o haver também a possibilidade de sua transgressão; é dessa dialética que resultará uma cartografia original, redefinidora dos valores e significações dos lugares do corpo. Toda a trama, complexa, do sexo pago se tece a partir desses dois fios principais, contrato e transgressão.
O primeiro e principal efeito de se pôr o sexo sob contrato é a forma como isso atinge o imaginário. No erotismo não-pago há sempre uma alta dose de imaginário, às vezes cansativa, embora ao mesmo tempo eroticamente poderosa: “quem sou eu para o outro?”, “será que ele me deseja?”, “será que ele vai gostar de minha perfomance?” etc. O contrato, em princípio, é como uma rolha em toda essa hemorragia narcísica. Eu não sou uma imagem para o outro, não preciso seduzi-lo nem ser seduzido por ele, não há dúvidas quanto a que interesse esta em jogo. O contrato zera o imaginário, na medida em que substitui a lógica particular da imagem por aquela, genérica, do dinheiro. Trata-se de reduzir o sexo ao sexo.
Talvez o sentido decisivo do sexo pago seja portanto esse: a anulação do imaginário. É por isso que a prostituição nada tem a ver com o mundo do amor, dos relacionamentos, ou mesmo do sexo sem compromisso. Pode ser que esse último deseje o esvaziamento do imaginário, mas está submetido à lógica da escolha particular, o que acarreta a presença da imagem. Já o sexo pago é um sexo vazio, desde que se entenda isso como sua maior virtude. A coisa se complica, entretanto, pelo fato de que tão forte quanto o apelo do contrato é o apelo de sua transgressão. Entrar no campo do imaginário vazio é expor-se, imediatamente, à tentação de restabelecê-lo sob outras regras. Aqui começa o enredo do sexo pago.
A cartografia do corpo das putas é bastante conhecida, pelo menos em suas regiões mais expressivas: a boca é a zona de maior intimidade, a boceta é o próprio objeto do contrato, o cu pode ou não ser contratuado. É claro que, referindo-me à boca, falo do beijo, e não da tradicional felação, também objeto clássico do contrato. Entre o corpo do “contratante” e o corpo do “cedente” há assim uma série de combinações legais ou infratoras. As infrações, contudo, são de categorias bastante diversas. Putas não gostam que se lhes enfie os dedos na boceta, mas isso é uma infração, paradoxalmente, dentro dos termos da lei: uma espécie de barganha, uma negociação. O contrato do programa estabelece a penetração do pau, não a dedada, mas a dedada é um movimento que se situa ainda na lógica do sexo vazio, irredutível. A mesma coisa quanto ao sexo anal, quando não acordado previamente.
O beijo na boca, contudo, caracteriza uma outra categoria de transgressão, e é aqui que a trama se adensa. O sexo costuma ser o reduto mais inexpugnável da privacidade do sujeito. Submetê-lo à lógica da mercadoria, torná-lo indiscriminadamente público conduz à necessidade de reconfigurar critérios e espaços para a preservação da intimidade. É assim que a boca ressurge, no corpo reinventado das putas, como região interdita ao público, item proibitivo do contrato, lugar que restabelece o corpo privado tornado público pelo contrato. Só que a boca, por esse mesmo movimento de escapar ao contrato, torna-se símbolo desse escape, e converte-se, para o contratante, em objeto do desejo de transgredir a lei.
É um fetiche clássico e uma fantasia banal de virilidade o beijo na boca das putas. Por ele restabelece-se o imaginário, triunfante, sob a forma da distinção transgressora: “ela me escolheu, mesmo sob contrato”, “eu paguei pelo sexo, mas, como sou especial, ela me deu, espontaneamente, a intimidade”. O beijo na boca marca a passagem do geral ao particular, do público ao privado, do grau zero da imagem ao transbordamento do imaginário. Algo semelhante – porém não igual – ocorre quanto ao desejo de o contratante fazer a puta gozar. Pois o contrato prevê apenas o gozo do contratante e, conferindo ao contratado um estatuto pragmático, como que afasta dele a experiência do gozo. De certa forma, a puta não gozar é a lei. O gozo da puta é transgressivo, íntimo, passa ao espaço privado. Isso não quer dizer que a puta não tem prazer enquanto faz sexo profissionalmente, mas, sim, que não tem obrigação de tê-lo, e que a repetição profissional cria um contexto em que seu gozo, imaginariamente, é tomado como uma distinção.
O cruzamento dos imaginários se restabelece no sexo pago, portanto, nestes termos: aquele que paga deseja a intimidade e o privado da puta como transgressão do contrato, transgressão cujo sentido é uma afirmação da auto-imagem; ocorre que a puta sabe disso, e pode negociar sua intimidade, encenando o gozo ou permitindo beijar-se, oferecendo, assim, o espaço privado como recurso profissional, usando a restrição do contrato de forma a sofisticar o uso do próprio contrato. É preciso repetir a ressalva: isso não significa que o gozo da puta é necessariamente encenado, que o beijo na boca é sempre performático, mas sim que toda passagem à intimidade, “falsa” ou “verdadeira” (ou as duas coisas ao mesmo tempo), dá-se a partir dessa trama prévia, no contexto de sua ambigüidade.
Mas talvez a região mais interditada do corpo da puta seja aquela, transgeográfica, do afeto. A palavra é o instrumento mais obsceno do sexo pago. Uma puta dificilmente dá um passo nesse sentido, pois sabe que quem paga o faz para livrar-se, em princípio, do imaginário (o afeto envolve sempre a imagem). Ao mesmo tempo, a puta pode jogar com o afeto, uma vez que o contrato está bem constituído, e então o afeto ressurge como transgressão maior, distinção das distinções: o amor substitui o sexo num lance em que o contrato é espetacularmente rasgado por força de uma particularidade irresistível. Mas também aqui o afeto faz parte de uma trama que inclui o afago no imaginário de quem paga, podendo ser outro recurso profissional.
Mais habitual, talvez, é a passagem ao afeto pelo discurso de quem paga. Aí a questão chega a seu ponto conflituoso máximo. Querer estabelecer uma comunicação afetiva, não-pragmática com uma puta pode ser algo de uma violência insuportável. É preciso não confundir, aqui, o afetivo com a delicadeza. A delicadeza é uma forma pela qual quem paga respeita o trabalho da puta. Já o afeto corre sempre o risco do desrespeito: pode ser tomado, seja como intolerável discurso da redenção (“tenho pena de você, da sua vida”), seja como uma veleidade antropológica (querer saber mais da vida da puta), seja ainda como uma transgressão muito abusiva rumo ao espaço privado. Não importa qual a intenção de quem paga ao fazê-lo, o afeto pode sempre parecer uma forma de mascarar a violência social que não deixa de ser o sexo sob contrato (o que não exclui o prazer, o gozo, a alegria das putas). Sim, o afeto no sexo pago é a cordialidade – no sentido conceitual – em estado puro, com sua ambivalência irredutível: esplendor e obscuridade.
É por isso que, no belo conto do escritor Nilo de Oliveira, “Pornografia Pessoal de um Ilusionista Fracassado” (que consta no livro Putas, antologia de contos luso-brasileiros), um homem leva uma puta de 11 anos a um quarto de hotel, assiste à sua tentativa de parecer uma puta experiente (fazendo strip-tease, performando com segurança), fica com pena de si e dela, coloca-a numa banheira (ela entra contrita, eriçada como um gato), é tomado por um afeto de redenção (dar carinho para redimi-la de sua vida miserável), põe-se a ensaboá-la (limpar as máculas da vida de puta), e quando olha para ela nota que ela o encara... com ódio. É assim que se estupra uma puta: penetrando o para-além de seu corpo. De resto, todo redentor é arrogante.


sexta-feira, abril 03, 2009



A pulsão




A pulsão, conforme Freud, não obedece a nenhuma causalidade ou finalidade predeterminadas numa suposta ordem natural.
A temporalidade das pulsões é completamente indiferente a toda a noção de encadeamento causal, ou seja, a pulsão não participa de nenhuma sequencia de causalidade.
Por não ter nem origem nem meta estritamente definidas, é uma força errante alheia a toda a necessidade biológica ou social.
Por ser uma força errante, nem constitui nem submete-se a um esqueleto inteligível do devir.
Se a pulsão tem uma dimensão histórica, seu devir é devir de devir.
A noção freudiana de pulsão desconstrói toda a idéia que pretenda enxergar a presença de uma razão imanente ao aparelho psíquico, pois sua atuação leva à contradição e a correlações provisórias nas instâncias do aparelho psíquico onde comparece e se motamorfoseia.

A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS

  (O) Curso Livre (da) Formação chega ao 23º Módulo abordando o tema   “A clínica hoje: Os novos sintomas” e acontece nos dias 01 e 02 de m...