terça-feira, outubro 01, 2019

A MOÇA DO INTERNATO: PSICANÁLISE E LITERATURA

Madonna de Andrea del Sarto




O que o Outro materno quer de mim?

A Moça do Internato foi publicado na Rússia, pátria da autora, em 1861. Nesse mesmo ano, nascia em São Petersburgo – Império Russo, a filósofa, escritora e psicanalista Lou Andreas-Salomé. 

Esta feliz coincidência, permite-nos abrir um espaço para associar a trajetória de vida de Lou Andreas-Salomé com a da personagem Liôlienka, tendo como ponto de ancoragem o significante da feminilidade. Para isso, partimos da premissa de que ambas, a mulher e a personagem, atravessam a posição feminina idealizada pela sociedade patriarcal. 

A conhecida frase de Simone de Beauvoir - “Não se nasce mulher, tona-se mulher.” – espelha o pensamento freudiano retratado no texto A Feminilidade, de 1933:“não queremos descrever o que a mulher é – isso seria para ela uma tarefa impossível de resolver -, mas, sim, pesquisar como ela se torna mulher...”[i]Partimos, portanto, do pressuposto que os discursos precedem os indivíduos e os inscrevem em determinadas posições na ordem do mundo.  Homens e Mulheres são os primeiros lugares que ocupamos como seres biológicos, mas, também, como sujeitos da linguagem.  

Em A Moça do Internato, a autora revela as particularidades desse discurso, dentro de uma família de classe média, na Rússia do século XIX.  Liôlienka é uma moça que parecia ter uns 15 anos, nascida em uma pequena vila no interior da Rússia. Como toda boa moça ela estuda, costura, cuida dos irmãos, vai a igreja e responde com educação as demandas apresentadas pela família e pelas professoras da escola. Seu lugar no mundo está constituído pelo desejo do Outro. É desse lugar que ela responde como mulher. É nesse lugar que ela se sente segura e acolhida, mesmo que completamente alienada.

A alienação ao desejo do Outro impõe uma posição passiva que sustenta o espaço de tranquilidade dentro do contexto familiar, mas não proporciona satisfação. Pois, como anuncia Freud no texto acima referido, é preciso um grande esforço psíquico para que a passividade se estabeleça. Então, para apaziguar o enorme esforço, a jovem produz, como milhares de outras jovens até hoje, um espaço de satisfação subtraindo-se da realidade que a cerca:

  – Eu gosto de me abster completamente da realidade que me cerca.
 – E por que você precisa disso? A realidade é tão ruim assim? – perguntou Veretítsin. 
– Não, está tudo bem, mas fica melhor assim: quando eu pego um livro e simplesmente perco a noção até do que eu sou... É como se você se retirasse para um mundo completamente diferente...

Protegida pelos livros, a vida da jovem Liôlienka segue seu banal roteiro até ser descoberta pelo vizinho, que sem temor nem ternura, avança sobre a cerca em direção à alma da adolescente.  Veretítsin é um jovem exilado, caído em desgraça profissional e submetido a um trabalho massacrante de copista.  Ressentido com o destino que lhe foi imposto, sofrendo por um amor não correspondido pela jovem Sofia, seu olhar sobre a sociedade é cruel e impiedoso.

...você será sempre boa e carinhosa: tudo isso para o deleite do seu pai e sua mãe. Eu sei disso tão bem que tô quase a cumprimentando por ser tão obediente, preciosa e gentil: você cumpre maravilhosamente bem sua missão. Sempre se comporta assim. Viva inteiramente para seu pai e sua mãe. Entristeça-se para alegrá-los. Enfie a cara nos livros, trabalhe e faça tudo que tiver de fazer. Desfile deslumbrante quando eles a apresentarem – essa é a vontade deles. Será formidável para eles: afinal, você é uma propriedade. Se você nunca pediu a eles para nascer, não tem direito de questionar o que fazer, de viver ao bel-prazer. Quando falei do novíssimo chapéu de sol branco, eu estava imaginando a alegria da sua mãe escolhendo por você de acordo com o gosto dela, e eu quis precavê-la a não questioná-la. É a alegria de sua mãezinha, não interfira. E quando eles a apresentarem em público, claro, os pais e mães dos seus coleguinhas ficarão se questionando por que Deus não deu a graça de terem uma filha tão encantadora quanto você. Se você encontrar suas amigas, lógico que você não vai revelar que o triunfo dos seus pais veio à custa de sua tristeza... O que estou dizendo! Veja bem, não se arrependa, o importante é alegrar seus pais....   

A garota empalideceu e não retirou os olhos de Veretítsin nem por um segundo, enquanto quebrava os galhos secos sobre a cerca.

As palavras atravessam a cerca do jardim que separa a jovem Liôlienka de seu vizinho, bem como as tramas imaginárias que a protegiam da espinhosa realidade familiar. Perde-se a magia da fantasia amorosa e a reivindicação do amor e do reconhecimento da mãe que mantém a menina/mulher conectada ao vínculo materno. Até então, a jovem encontrava-se alienada ao mundo do desejo e das significações do Outro materno. Todas as suas experiências de vida só adquiriam consistência quando a mãe atribuía algum sentido a elas. 

O discurso enigmático do vizinho coloca em cena o dilema da feminilidade. Diante do enigma, surge o não-saber e, por efeito, a angústia. Sem o aparato fantasmático que constituía o ideal da boa filha, desvela-se o lugar de objeto de gozo do Outro:  sua posição de submissão e de objeto/dejeto no qual ela foi constituída enquanto sujeito alienado ao desejo do Outro. As demandas da mãe e, até mesmo do pai, que até então eram sustentadas pela fantasia pré-edipiana da filha de completar o Outro materno, agora denunciam a crueldade da educação familiar.

Liôlienka sentou-se, colocou a linha na agulha e pôs-se a pensar diante do bastidor: por que tudo parecia tão estranho para ela nesse dia? Por que não se chateara antes com o mundo? Por que nunca quis abandonar tal vida?

O desejo da mãe legisla sobre o destino da filha e a identificação tende a moldar o ego segundo as características daquele que foi tomado como modelo: - E você tá louca de não querer o que seu pai e sua mãe querem? – irrompe a mãe. – Onde você aprendeu a responder desse jeito?

Para a mãe de nossa jovem personagem, como para tantas outras mães do século XIX, a herança da feminilidade, que deveria ser transmitida às gerações seguintes através de suas próprias filhas, se funda na maternidade. A imagem da santa representada pela Madona com o menino Jesus obtém o status do que há de mais sublime na feminilidade. Lembremos que essas mesmas teses “que beatificaram as mulheres como madonas do lar, produzindo a ideia da maternidade como vocação instintiva feminina”[ii]foram, também, ratificadas pela teoria freudiana. Dentro da lógica fálica, onde ser é ter, ter um filho é a única saída possível para uma mulher. 

Abrir mão desse espaço idealizado nunca foi uma escolha fácil, pois é necessário que o sujeito se abstenha de estar a serviço do Outro Materno consentindo com a separação.  O afastamento, produzido pelo processo de separação, coincide com a travessia da fantasia que até então sustentava a resposta ao ideal materno. A falta do objeto de satisfação, antes encontrado no corpo da mãe, faz com que a criança saia da posição de inércia e se torne um sujeito desejante. Para tanto é necessário “fazer o luto da posição de menina da mãe para tornar-se mulher e esboçar um caminho singular em direção a algo de feminino em si mesma”.[iii]Abrindo para a mulher outros destinos pulsionais além daquele mãe/esposa insatisfeita,  aprisionada no espaço privado. Destinos esses que vão desde a conquista de um corpo erótico até a afirmação de sua própria voz, como fizeram a mulher e a personagem que deram início a este texto. 

Maria Holthausen


[i]FREUD, Sigmund, Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferência XXXIII – A Feminilidade, 1933
[ii]NERI, Regina, A psicanálise e o feminino: um horizonte da modernidade, 2005.
[iii]SANTOS, Fernanda Cristina Wandal dos, RANDAELLI, Juliana, Alienação e Separação: impasses da relação mãe e filha, 2016.


Texto apresentado no Grupo de Leitura de 30/10/2019 - Usina Dizer

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