sábado, dezembro 11, 2021

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE - 2022

 


APRESENTAÇÃO

Três são os elementos fundamentais que compõem a trajetória de formação em psicanálise: análise, teoria e supervisão. A primeira é a mais importante e única estritamente singular, em que, a partir da escolha do analista e de sua desconstrução, alcançamos o “lugar do analista”. Não se trata de um lugar de saber, mas de uma habilidade para escutar, que sempre exige a desconstrução da própria escuta, do que nela pudesse haver de normativo. Em psicanálise, a teoria está a serviço da desconstrução da norma. O que sempre exigirá a supervisão, a crítica acerca dos limites éticos da prática, levando o analista a se perguntar “em favor de quem opera minha escuta: de uma escola ou de um dizer singular?”

DESCRIÇÃO

(o) Curso (da) Formação aqui proposto consiste numa série de encontros mensais em formato híbrido (simultaneamente virtual e presencial), de sete horas cada qual distribuídas nas sextas à noite e sábados pela manhã, nos quais, a partir da experiência clínica de reconhecidos profissionais em psicanálise, serão discutidos os principais conceitos clínicos vigentes nas práticas de escuta analítica e de construção de casos clínicos. No total, serão 23 módulos, perfazendo um total de 161 horas.

OBJETIVO

Ao final do curso, os participantes estarão aptos ao reconhecimento das principais configurações conceituais relativas às práticas de escuta analítica e de construção de casos clínicos de orientação psicanalítica.

DINÂMICA

A atividade consiste numa formação clínica, na qual profissionais convidados na condição de analistas docentes irão debater com os participantes os discursos e dizeres que compõem “(O) Curso Livre (da) Formação” clínica dos psicanalistas.

A sequência dos módulos foi minuciosamente definida pela coordenação para que os participantes tenham 100% de aproveitamento do curso. A atividade disponibiliza a inscrição individual dos módulos (assim como desconto especial para estudantes) a ser encontrada em nosso site.

Não é exigida formação por parte do participante. O curso emite certificado após a participação de, no mínimo, 18 módulos.

COORDENAÇÃO:

Dra. Maria Holthausen

Psicanalista, Historiadora, Doutora em Literatura

LOCALIZAÇÃO:

usinadizer.com.br


MODÚLO I -

A arte da escuta:
Diferentes modos de operar a prática clínica

O que significa “clínica” para a psicanálise? Uma forma de responder a essa questão é por meio do recurso etimológico, que distingue entre, pelos menos, três modos distintos de se formular a noção de clínica. O primeiro corresponde à prática dogmática de aplicação de um saber (ou Pharmacon), como é o caso da clínica médica (Klinikós) e de todos os discursos científicos, pensados a partir de Hipócrates. Num segundo sentindo, a noção de clínica corresponde às práticas de sugestão alavancadas por metas ou ideias, como costuma acontecer nas terapias, tal como estas foram originalmente concebidas por Alexandre de Filón, no século I d.C. e ampliadas, no século XX, com a incorporação de narrativas psicológicas. Ambos os sentidos se distinguem de um terceiro, ao qual o próprio Freud recorre e que tem a ver com o estilo crítico dos cínicos gregos que, ao operarem a parresia (ou dito verdadeiro sobre aquilo que se oculta na vida civilizada), provocam um desvio (parênklises) na forma como a cidade vê a si própria, apontando para a presença daquilo que, no século I a.C., o epicurista Lucrécio denominará de elemento desviante (clinamen).

DATAS e HORÁRIOS
11/02/2022 (sexta) – 19h às 22h
12/02/2022 (sábado) – 9h às 13h

LOCAL FÍSICO
UsinaDizer
Av. Rio Branco, 533. Sala 301.
Florianópolis/SC.

LOCAL ONLINE
Sala criada no Zoom (programa para conferência).
Link para download gratuito do software: https://zoom.us/.

INVESTIMENTO

R$ 350,00

CUPOM ESTUDANTE
Estudante tem desconto de R$100 adicionando o cupom EST250 durante a compra. É necessário comprovar ligação com instituição de ensino apresentando documento válido.

BIBLIOGRAFIA

1. FREUD, Sigmund, Sobre a Psicoterapia, 1905, Fundamentos da Clínica Psicanalítica, Obras Incompletas de Sigmund Freud, Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
2. JORGE, Marco Antonio Coutinho, Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan – A prática analítica, Vol.3, Ed. Zahar, 2017.
3. MÜLLER, Marcos José. Outros num casamento: ensaio literário em filosofia, psicanálise e gestalt. Florianópolis, Usinadizer, 2019.
4. MÜLLER-GRANZOTTO, M.J. & R. L. Clínicas Gestálticas. O sentido ético, político e antropológico da teoria do self. São Paulo, Summus, 2012.


quarta-feira, agosto 18, 2021

CONTEXTUALIZANDO ULISSES DE JAMES JOYCE





 

CONVITE



O Seminário “Contextualizando Ulisses” será uma forma de empreender uma leitura efetivamente ativa do grande romance de James Joyce, Ulisses, utilizando para-textos e outras referências para não apenas decifrar seus enigmas, mas, sobretudo, conquistar o prazer do texto que lhe é devido.

A ideia é oferecer um guia de leitura para o texto de Joyce apresentando, em cada um dos encontros, as suas linhas mestras e seus sentidos possíveis, capítulo por capítulo.

Destina-se a estudantes e amantes das letras e da literatura, filósofos, psicólogos e psicanalistas.

Para participar do Seminário precisará ter o livro em mãos, já que ele será a base de nossos estudos. 

Existem três traduções de Ulisses disponíveis em português. Os participantes podem escolher qual delas mais lhe convier. 


Os Seminários serão apresentados por Gustavo Capobianco Volaco: psicanalista, professor, doutor em literatura pela UFSC – tese: The Funny Can Wake - e Pós-Doutor em Psicologia Clínica pela USP. 


Encontros On-line: plataforma Zoom

Início: Setembro 2021 

Inscriçõeswww.usinadizer.com.br

e-mailcontato@usinadizer.com.br

telefone: (48) 3030-7474

 

 

segunda-feira, maio 24, 2021

PSICOSE



 



O DIAGNÓSTICO DE ESTRUTURA PSICÓTICA 


Para poder colocar esta questão, são necessárias algumas observações, porque a clínica à qual geralmente estamos acostumados — a clínica psiquiátrica clássica — é uma clínica em que, se não há fenômenos psicóticos, se não aparecerem fenômenos elementares da psicose, não há psicose. O que é normal em qualquer clínica que seja uma clínica descritiva, fenomenológica, onde não é possível se elaborar uma categoria nosográfica sem recorrer a fenômenos. 

Então, para a clínica clássica, se não há fenômenos elementares da crise, quer sejam do lado de manifestações alucinatórias, ou do lado da constituição do delírio, não há categoria nosográfica de psicose. 

A clínica psicanalítica não é uma clínica descritiva, nem fenomenológica, mas é uma clínica estrutural, há medida em que o diagnostico se estabelece na transferência. O que não quer dizer que o diagnóstico seja um diagnóstico sobre a transferência do sujeito, considerando a transferência que ele organiza como um fenômeno a mais. Não é disso que se trata. Trata-se do fato que na transferência que o discurso do paciente organiza, a partir do lugar no qual o paciente coloca o "terapeuta" é que um diagnóstico é possível, é que uma clínica da psicose é possível.

Era necessária esta premissa para explicar o fato de que se possa falar de estruturação psicótica fora de qualquer crise e até fora de qualquer tipo de manifestação tradicionalmente considerada como psicótica: delírio, alucinações auditivas, cenestésicas, visuais, enfim qualquer tipo de fenômeno psicótico, segundo a clínica clássica. 

Em outras palavras, a clínica psicanalítica, por ser estrutural, quer dizer, por ser fundada na transferência (com a hipótese que o laço transferencial desdobre a estrutura mesma do paciente), permite um diagnóstico de psicose mesmo na ausência de fenômenos classicamente psicóticos. Mais precisamente, a clínica psicanalítica pode falar de estrutura psicótica, na ausência de qualquer crise psicótica e das suas manifestações

Então, para introduzir algumas considerações sobre o que seria uma estruturação psicótica fora de crise, lembrei-me de um exemplo.

É o caso de um paciente, cuja análise durou mais ou menos um ano. Foi certamente a primeira vez em que cheguei — e, tenho que dizer, cheguei com ajuda — ao diagnóstico de psicose na ausência de qualquer manifestação fenomênica de psicose.

Tratava-se de um paciente norte-americano. Acontece que uma das minhas línguas é o inglês e, em Paris, há relativamente poucos psicanalistas que podem trabalhar com pacientes ingleses ou norte-americanos. Este paciente chegou ao meu consultório mais ou menos trazido. Mas não trazido fisicamente por alguém, trazido no sentido de que a mulher dele, que frequentava os meios analíticos, falara para ele que talvez ele devesse fazer uma análise. Então ele ligou, chegou e ficou "trabalhando" comigo mais ou menos um ano.

Era um jovem de uns 30 e poucos anos, bonito, vagamente parecido com James Dean e talvez não só́ fisicamente. A sua história era bastante extraordinária. 

Foi militar combatente no Vietnã, deixou o exército americano no fim do seu período, não foi um desertor, nada disso. Decidiu voltar aos EUA do jeito mais interessante possível. Apesar do fato de que "interessante" não seja uma palavra que fazia parte do seu vocabulário, vale a pena notar. Ele voltava, mas não tinha chegado aos EUA, porque voltara através da Birmânia, Índia. Ficou na Índia por muito tempo. Tinha se relacionado com drogas nessa época e chegou finalmente à Europa. Na Europa ele encontrou uma mulher com a qual se casou. A mulher era herdeira de uma empresa importante em Paris. Permaneceu com ela na França ocupando um posto de direção na administração desta empresa. 

O problema que levou sua mulher a enviá-lo, era o seguinte: ele era casado com ela, sem filhos, e por outro lado, acabou sendo também o amante da sua sogra, o que, aparentemente trazia problemas à mulher, talvez à sogra, não sei, mas não colocava nenhum problema para ele. Porém ele chegou e ficou no consultório mais ou menos um ano. O que era difícil é que eu não tinha a menor ideia do porquê ele vinha. Vinha regularmente, falava o que normalmente um paciente em análise, bem educado, pode falar: de sua infância, de sua história, das coisas sobre as quais normalmente um paciente fala. 

O fim da história foi assim: um dia eu soube — porque fiquei um tempo sem notícias dele, não veio mais e eu não sabia por que — que ele estava num bar, num bar qualquer e, não sei como, alguns bandidos que aparentemente estavam preparando um assalto acharam que ele tinha a cara do negócio, propuseram que ele participasse neste assalto, ele aceitou e foi com eles. O assalto saiu mal, um assaltante morreu e ele foi preso. Nesta ocasião, a mulher dele me ligou, e tudo isso acabou com uma expressão jurídica, pois escrevi um certo número de considerações sobre ele, por razões judiciais. Tudo isso não saiu muito mal para ele: um divórcio e um tempo de prisão relativamente breve antes de uma expulsão. 

O que era extraordinário nesta pessoa — e por isso resulta difícil falar dele — é que ele era disponível a qualquer coisa. Não no sentido da docilidade, no sentido de que teria sido fácil manipulá-lo, mas no sentido de que qualquer estrada e qualquer direção eram para ele direções possíveis, estradas possíveis. 

Isso traduz o que aconteceu no final de sua história e também o que aconteceu no início de sua história francesa, por exemplo. O fato de ter sido combatente no Vietnã, com uma história pesada, como a de qualquer combatente no Vietnã, de ter sido depois hippie na Índia e chegar a Paris e inserir-se no melhor da alta sociedade. 

Tudo isso ele fazia perfeitamente. Mas fazia perfeitamente, eu diria, sem nem mesmo medir a diferença de valor e de significação que havia entre essas coisas. Desde este ponto de vista, o fim da história é significativo. Ele aceitou — e porque diabo aceitou — envolver-se em um assalto a uma agência de banco, ele que nunca cometera um ato criminoso... e aceitou porque eles pediram. A verdade é que ele aceitou porque "por que não?". Era também interessante que no quadro da sua atividade, como por exemplo dirigir o Departamento Administrativo de uma empresa importante, ele estava perfeitamente no seu papel. Não havia nada no seu comportamento que testemunha-se uma impossibilidade ou uma dificuldade particular para funcionar num registro fálico ordinário. Era possível para ele referir-se a significações fálicas distribuídas num meio superfálico, como pode ser o meio social da alta burguesia comercial de Paris. 

Ele falou-me um pouco da sua infância, que era uma infância particular, numa região dos Estados Unidos, que por sinal eu conheço bem, era uma infância ligada a uma seita protestante bastante fechada. Não vou entrar em detalhes porque nem precisa. Vou lembrar duas coisas principalmente: a primeira é uma interpretação que foi sem efeito, o que achei interessante. Era uma interpretação relacionada com o fato de que, entre os seus pais, ele estava constantemente numa posição de mensageiro, como se fala em inglês, de "go-between". A posição de alguém que estava carregando mensagens de um ao outro, ida e volta, naturalmente sem nada querer saber das mensagens. Como se a tarefa fosse de manter, estabelecer, tecer a rede dos laços, de percorre-la sem por isso ter que privilegiar uma direção, um sentido ou mesmo um dos polos relacionados por ele. Havia algo disso também na circulação dele entre a sua esposa e a sua sogra. 

A segunda é o sentimento que eu tinha, escutando o que ele contava, que essa infância estava situada num espaço infinito, mas num espaço infinito que não era ideologizado. Quero dizer com isso que ele certamente não é o único jovem americano a ter feito, depois da saída da guerra do Vietnã, uma excursão para a Índia e experimentado algumas drogas mais ou menos pesadas. O que era interessante, com respeito a esta experiência, é que ele não expressava posição ideológica sobre este assunto. Não havia posição ideológica alguma relativa a qualquer tipo de libertação, por exemplo, típica dos jovens americanos dessa época. Nada se apresentava, no que ele falava, como uma forma de significação eletiva, mas tudo tinha significação. Tudo tinha significação até o ponto que ele podia, em qualquer situação, ser o homem da situação. Ele, por outro lado, fora um militar exemplar, tinha medalhas e tudo o que precisava. Isso esquecera de falar. 

No começo da cura deste paciente, a questão diagnostica, na minha cabeça, era diferencial entre perversão e alguma coisa que talvez fosse psicose. Do lado da psicose era justamente o fato de que eu não estava entendendo nada sobre o que lhe colocava a necessidade de confrontar-se comigo duas vezes por semana, porque na verdade ele não se confrontava comigo. Não havia nada na sua relação comigo da ordem de uma cumplicidade, não havia nada da ordem de um desafio, não havia nada tampouco da ordem de uma queixa neurótica. A análise era um percurso, como podia ter sido o seu percurso na Índia, ou o seu percurso na alta burguesia de Paris, no assalto ao banco ou na guerra do Vietnã. Deste ponto de vista, havia certa significação, mas uma significação de forma alguma privilegiada. Não sei se dá para entender este tipo de pessoa, que talvez a psiquiatria clássica chamasse de um psicopata logrado, perfeito. Não sei se é possível, porque, normalmente, para o neurótico, o tipo de escolhas que se produziram numa vida como esta, são escolhas sempre eminentemente dramáticas. Neste caso, a dimensão do drama era ausente, porque todas as escolhas que ele fazia — escolhas de grande importância ou de grande consequência do ponto de vista de um neurótico normal — eram para ele e no seu relato triviais. 

Se tomei esse exemplo, que foi para mim, sob todos os aspectos, instrutivo, foi para começar a pensar no que seria um sujeito cujo horizonte de significações não estaria organizado ao redor de uma unidade de medida possível. Um sujeito que estaria num mundo no qual existe significação. Mas, no final das contas, todas as significações são significações em si mesmas, não se medem a uma significação que distribui as significações do mundo. 

E um sujeito eminentemente errante, errante no sentido da errância, não do erro. Um sujeito que pode errar, errar no sentido de atravessar o mundo e seus caminhos. Entretanto, refere-se a um sujeito para o qual o conhecido provérbio que diz "todos os caminhos levam à Roma" não vale, porque os caminhos vão de fato em direções próprias, e cada caminho vale a pena. Mas, por outro lado, por que errar? Por que ele não poderia ter ficado numa posição? Por que ele não poderia, por exemplo, ter ficado no Exército Americano, na Índia, na alta sociedade de Paris? Por que escolhe num momento qualquer, a direção de um assalto a um banco? Porque justamente há alguma coisa a mais. 

Trata-se de um horizonte de significações que não é organizado ao redor de uma significação central que organizaria todas as outras. E, como consequência dessa posição, o sujeito tem que errar. Mas errar não na procura de algo que poderia ser encontrado como significação final, nada disso. Isso seria mais o "erro neurótico" do que o "errar psicótico". Errar porque não existe um lugar a partir do qual podemos medir a significação do que estamos fazendo. Nesta medida é evidente que a única coisa que resta é percorrer todos os caminhos. O que resta é um percurso infinito, um percurso sem parada. Vale a pena notar: um percurso infinito, mas um infinito não idealizado como o infinito de uma procura. O infinito de um mapa, o que é bem diferente. O infinito de um mapa que poderia ser o mapa, não da terra, mas do céu, um mapa do infinito. Por isso o interesse para ele da análise não era diferente do interesse para ele de qualquer tipo de experiência. Digamos, era uma experiência a mais, um caminho a mais no mapa. 

Apesar de tudo isso, era um homem viável socialmente, embora para o neurótico médio, bastante misterioso. 

A partir deste caso já podemos pensar algumas coisas: por exemplo, não podemos concluir, de modo algum, que um sujeito desse tipo não seja sujeito. Não podemos pensar que ele esteja tomado nos registros Imaginário e Real somente. Porque ele tem indubitavelmente uma significação de sujeito. Ele está tomado numa articulação simbólica, chega a circular neste registro. Mas, se está tomado numa articulação simbólica, está tomado certamente de um jeito diferente do que um neurótico. 


Contardo Calligaris, in:  Introdução a uma clínica diferencial das psicoses, Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.


segunda-feira, abril 19, 2021

Estruturas familiares e formas de Subjetivacão

 


LAÇOS E DESENLACES NA CONTEMPORANEIDADE

Joel Birman 

 

I.             Estrutura familiar e formas de subjetivação

A intenção primordial deste ensaio é a de procurar tecer algumas articulações possíveis entre certas características psíquicas, que se evidenciam nas subjetividades contemporâneas, com as transformações apresentadas pela estrutura familiar na atualidade. Se estas transformações foram fundamentais, revirando a família e as formas de conjugalidade de ponta-cabeça, sem dúvida, é preciso que se afirme e se reconheça isso logo de início. Desta maneira, é necessário delinear as mudanças ocorridas no campo da família hoje, sem as quais a leitura das especificidades psíquicas a que me referi acima e que se disseminam na atualidade perde não apenas qualquer densidade, mas também qualquer significação. Este é o meu ponto de partida aqui e a minha aposta metodológica fundamental ao longo deste ensaio. 

Não se pode perder de vista, no que concerne a isso, aliás, que certas modalidades de experiência subjetiva, descritas pelo discurso psicanalítico desde o percurso freudiano inaugural, assim como as formas de dor e de sofrimento que lhes são correlatas, têm uma relação crucial com a estrutura moderna da família, como ainda veremos aqui posteriormente. O discurso freudiano reconhece a legitimidade teórica deste enunciado e suas teses são inseparáveis de um certo modelo de família. 

Com efeito, no seu ensaio de 1908, intitulado “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos”, Freud realizou uma brilhante genealogia da civilidade ocidental e sua inflexão decisiva na modernidade, destacando os efeitos catastróficos produzidos nas individualidades pelo imperativo então instituído da moral monogâmica (Freud, 1908/ 1973a). Com isso, a inserção do erotismo no campo da família monogâmica produziu as ditas “doenças nervosas” na modernidade que, ao lado da agressividade, da violência e da criminalidade que disso também seriam decorrentes, constituíram aquilo que Freud denominou mal-estar no final dos anos 20 (Freud, 1930). A impossibilidade de circulação e de expressão da sexualidade perverso-polimorfa, no campo desta estrutura de família, teria então provocado múltiplos efeitos nefastos sobre o psiquismo (Freud, 1908/ 1973a). 

Portanto, para evidenciar as linhas de força que se esboçam nas ditas transformações da atualidade, é preciso descrever a estrutura familiar na sua complexidade social e histórica, destacando os processos político e econômico que nela se condensam. Para isso, é preciso diferenciar devidamente as estruturas da família na modernidade e na atualidade, para que as linhas de força e as valências presentes na construção subjetiva possam ser bem evidenciadas. Esta leitura contrastiva é fundamental para a genealogia que me proponho a realizar aqui das formas de subjetivaçã(Foucault, 1976)nestes diferentes contextos e tempos históricos. 

Esta modalidade teórica de leitura aqui proposta se justifica em decorrência das mudanças psíquicas evidenciadas na atualidade, pelas quais uma transformação significativa se mostra patente. Esta transformação se inscreve então no registro eminentemente clínico, onde uma mudança no campo da demanda se torna evidente. 

Assim, as neuroses clássicas se tornam hoje cada vez mais rarefeitas na demanda de cuidados, à medida que a conflitualidade psíquica se dilui de forma progressiva e significativa. A conflitualidade interior é cada vez mais substituída pelos embates que se estabelecem entre os indivíduos e destes com as instâncias exteriores, no campo social e interpessoal. Em decorrência disso, as performances e a apresentação das imagens de si de cada um se superpõem cada vez mais à interlocuçãe ao discurso entre os indivíduos. Consequentemente, a agressividade e a violência se disseminam como um rastilho explosivo, de maneira que a irritabilidade crescente toma totalmente aqueles de fio a pavio. Por isso mesmo, o corpo se transformou num lugar crucial onde o mal-estar se enuncia como queixa, pelo qual o indivíduo indica de maneira ostensiva que algo não está bem com ele. A sensibilidade excessiva dos indivíduos em relação à autoimagem é transbordante, de forma que a depressão passa a dominar a cena contemporânea, assumindo o lugar privilegiado que era ocupado anteriormente pela angústia

Não pretendo retomar esta descrição no presente ensaio, já que foi por mim desenvolvida em outros contextos, a que remeto o leitor (Birman, 2006a; 2006b). Porém, é evidente que esta problemáticas se relaciona com o que está em pauta no presente ensaio, no qual vou permanecer especificamente na relação entre estas mudanças psíquicas e a nova configuração da ordem familiar. 

De qualquer maneira, a pertinência teórica desta problemática para a psicanálise é que as novas modalidades de subjetivação colocam em questão o dispositivo clínico da cura-tipo, configurado pelo discurso freudiano, como se evidencia claramente nas publicações psicanalíticas dos últimos anos. Estaria justamente aqui a atualidade desta problemática eminentemente contemporânea.

II. Da família extensa à família nuclear 

A família moderna se iniciou na passagem do século XVIII para o século XIX, identificando-se assim com o incremento do poder social assumido pela burguesia na tradição ocidental. Daí porque essa configuração de família foi denominada seja nuclear seja burguesa, indicando então com isso a sua ruptura com a família pré-moderna. 

Quais foram as mudanças cruciais que então ocorreram? A família pré-moderna foi denominada extensa pelos historiadores e cientistas sociais. O que isso quer dizer, afinal de contas? Nada mais nada menos que conviviam no mesmo espaço diferentes gerações, além do casal parental, acompanhado dos filhos e dos agregados. A autoridade do pai era quase absoluta e incontestável, como a figura do rei no espaço público, aliás, condensando então o pater potestas (Ariès & Chartier, 1991) o poder soberano que estava aqui no seu auge (Foucault, 1974). A figura da mulher seria aqui um mero apêndice nesta estrutura, corpo que se presta para a mera reprodução da prole, não obstante certos avanços face à mulher realizados pelo Cristianismo. 

Ao longo do século XVIII algumas transformações importantes começaram a se evidenciar, no sentido da constituição de espaços de privacidade no campo da família. Assim, os pais começaram a possuir um espaço privado no interior da casa, no qual a intimidade seria preservada. Os filhos, que viviam anteriormente numa misturada promíscua com os pais, passam a ter também um quarto privado. Na dependência dos recursos econômicos da família, os meninos e as meninas seriam também separados em espaços distintos, para impedir qualquer promiscuidade sexual entre aqueles. As relações sexuais entre os pais, enfim, passaram a acontecer no espaço exclusivo da intimidade do casal, inscrevendo-se então nos registros do secreto e do segredo (Ariès, 1973). 

Este conjunto de transformações convergiu para a constituição da família nuclear, na qual se inseriam agora tão somente as figuras dos pais e dos filhos. O poder paterno foi então relativizado, mantendo-se ainda no espaço privado; mas tendo no espaço público os seus signos mais ostensivos. Porém, a figura do pai foi permanentemente evocada e aludida pela figura da mãe, quando a criança ultrapassava os limites esperados e a possibilidade do castigo se fazia presente. Seria o pai então o agente da punição face à falta da criança, evocada que era permanentemente pela mãe nestas situações de transgressão. O discurso freudiano alude a isso o tempo todo, de maneira literal, referindo-se assim ao castigo e à castração. 

Neste contexto, a figura da mulher foi reduzida à condição de mãe, de forma que a gestão do espaço privado da família ficou inteira ao seu encargo. Estava aqui incluída não apenas a administração doméstica da casa, mas também a gestão da saúde e da educação das crianças. Vale dizer, a figura da mulher-mãe se incumbia do espaço privado da família e das bordas dessa, nas suas articulações com as instituições médica e pedagógica. É evidente que ocorreu aqui um incremento do poder social da mulher, enquanto mãe, que se contrapunha ao poder paterno. No entanto, a relação entre estes poderes era ainda assimétrica, pendendo para o pólo do pai.

De que maneira interpretar estas transformações radicais, num sentido mais abrangente? 

III. Biopolítica 

Para compreender devidamente essas mudanças é preciso inscrevê-las no campo da biopolítica, que seria constituinte da modernidade ocidental. Pela mediação da biopolítica ocorreu uma medicalizaçãdo espaço social, pela qual a medicina passou a regular os corpos no registro individual e coletivo. Pretendia-se assim engendrar a qualidade de vida da população (Foucault, 1976), como signo maior da riqueza das nações.

Foi assim que a população se transformou em objeto e alvo do poder, o que não ocorria anteriormente. O biopoder foi então uma das modalidades específicas assumidas pelo poder neste contexto. Com isso, uma outra forma de história foi também engendrada, denominada biohistória, mediante a qual a produção da espécie passou também a se inscrever nos cálculos do poder. A categoria de corpo-espécie foi então enunciada, com os seus dispositivos e discursos, à medida que a reprodução sexual e a regulação das genealogias passaram a ser também imperativos do poder, em nome sempre da produção de riqueza (Foucault, 1976). 

Em decorrência disso, a demografia foi constituída como saber, para regular as variações e cortes da massa populacional. Do nascimento à morte, as diferentes idades da vida passaram a ser objeto da vigilância biopolítica, submetidas que foram à quantificação estatística. Ao lado disso, a epidemiologia foi também constituída como saber, procurando regular quantitativamente a incidência e a prevalência das enfermidades. A polícia médica se constituiu na segunda metade do século XVIII, inicialmente na Alemanha e se disseminando em seguida para os demais países europeus, visando esquadrinhar as cidades e o campo, nas suas relações com a sujeira e a limpeza, isto é, com as diversas fontes de saúde e de doença. A circulação do ar passou a ser objeto de controle médico estrito, de maneira que as edificações passaram a ser programadas de acordo com a produção das impurezas. Enfim, a limpeza urbana foi instituída como projeto do controle das doenças e de prevenção da saúde das populações. 

Estamos lançados assim no campo da higiene social, que dominou o processo de medicalização ao longo do século XIX. O espaço social foi então meticulosamente esquadrinhado, de forma que as categorias do normal, do anormal e do patológico passaram a definir as ações normativas dos dispositivos biopolíticos (Foucault, 1963). A periculosidadesocial se enunciou como uma problemática crucial neste contexto, de maneira que o crime e a loucura foram inscritos neste projeto de normalizaçãinfinita do espaço social (Foucault, 1997; 1999). Enfim, as classes perigosas passaram a ser um dos alvos fundamentais da regulação biopolítica. 

É preciso indicar agora como este dispositivo da biopolítica incidiu sobre a ordem familiar, não apenas marcando os seus personagens e suas práticas, mas também engendrando novas formas de subjetivação. 

IV. A biopolítica no discurso freudiano 

Nesta perspectiva, se a promoção da saúde era fundamental a mulher-mãe deveria ser saudável, sendo condensada nela a figura da mãe-higiênica. Assim, para constituir uma prole saudável exames pré-nupciais foram progressivamente instituídos, para impedir desta maneira a conjunção de anomalias com o futuro marido. Ao lado disso, as enfermidades genitais femininas deveriam ser devidamente controladas, assim como a gestação e o parto, em nome da qualidade de vida da prole. Daí por que a ginecologia e a obstetrícia tenham sido constituídas neste contexto histórico (Birman, 2001). 

No que concerne à figura do homem, como pai que seria de uma prole saudável, necessário foi o controle social sistemático da prostituição pela medicina, para impedir os efeitos nefastos das doenças venéreas. Com efeito, se os homens poderiam dispor de uma ampla e complexa rede de bordéis, ao longo dos séculos XIX e XX, as prostitutas deveriam ser submetidas a exames regulares, para que fosse constatada a inexistência do “mal” venéreo como condição primordial do exercício profissional. Os atestados médicos eram então conferidos a estas mulheres, como garantia de que não transmitiriam doenças aos homens e à sua prole (Birman, 2001). 

No que tange à prole, a discriminação das idades da vida foi então delineada. Os níveis de maturidade intelectual e afetivo foram assim esboçados, numa relação entre os potenciais evolutivos e involutivos daqueles momentos da vida. A hierarquia presente no processo escolar e nas técnicas pedagógicas correlatas se inscrevia neste modelo psicobiológico da vida, ao mesmo tempo evolutivo e desenvolvimentista. A infância, a adolescência, a idade adulta e a velhice foram assim destacadas nas suas especificidades biológicas e morais. 

Sabe-se que o que denominamos infância e adolescência foi uma invenção marcante do Ocidente, que ocorreu apenas na passagem do século XVIII para o século XIX (Ariès, 2003). Isso porque a produção da qualidade de vida da população dependia agora de um investimento massivo nestas idades da vida, nos registros da saúde e da educação. O Capital econômico e simbólico das nações estaria aqui então condensado. A qualificação vital dos adultos, enfim, estaria na dependência estrita da qualificação dos jovens. 

Em decorrência disso, a pediatria e a puericultura como especialidades médicas foram constituídas neste contexto histórico. Ao lado disso, a universalização do ensino foi também instituída, para constituir uma população bem educada, e que não ficasse restrita às elites e à aristocracia como no Antigo Regime. A totalidade da população passou a ir à escola desde então, sendo isso transformado num preceito constitucional das sociedades democrática e republicana na modernidade. 

Quais foram os efeitos de subjetivação desta problemática? 

Antes de mais nada, a figura da mulher-mãe era o objeto de uma experiência sacrificial em nome do investimento dos filhos. A libido feminina se condensava na gestão da ordem familiar, nas conjunções dessa com as instituições médica e escolar. Os filhos consumiam toda a libido feminina, considerando-se aqui inicialmente o engendramento daqueles e os seus cuidados posteriores. A figura do homem-pai ficava a salvo disso, protegido que era pela sua inserção no espaço público. Por isso mesmo, o discurso freudiano pôde enunciar, em “A moral sexual 'civilizada' e a doença nervosa dos tempos modernos”, que as mulheres pagaram um preço muito maior pelo projeto da civilização do que os homens (Freud, 1908/1973a). É evidente, repito, que Freud se refere aqui à modernidade, bem entendido. 

Este sacrifício feminino se evidenciava na representação das mulheres nos discursos psiquiátrico e psicanalítico. Assim, a figura da mulher era enunciada pela sua condição de ser nervosa inicialmente e de ser histérica em seguida, no discurso psiquiátrico (Foucault, 2003). Com a psicanálise o nervosismo e a histeria foram interpretadas numa leitura libidinal, de forma que a insatisfação feminina estava sempre em causa. Esta insatisfação se redobrou numa leitura do masoquismo feminino, marca por excelência que seria da dita experiência sacrificial. Posteriormente, o masoquismo sacrificial assumiu francamente a forma da melancolia, como se pode depreender dos ensaios freudianos sobre a sexualidade feminina (Freud, 1925/1973c; 1931/ 1973d; 1932/1936). 

Aonde isso nos conduz, afinal das contas? O masoquismo sacrificial conduziria as mulheres a um total depauperamento de si, no qual aquelas perderiam qualquer viço e brilho. O discurso freudiano nos mostrou isso com precisão pela figura exemplar da mãe de Dora, pois esta não poderia desta maneira escolhê-la como objeto de identificação, tendo que se servir para tal da Sra. K, objeto do desejo do pai de Dora (Freud, 1905/1975). A ruptura entre as figuras da mãe e da mulher, destacada por Freud na leitura do imaginário infantil, seria então a resultante deste processo histórico e biopolítico, no qual a figura da mulher foi reduzida à figura da mãe, com todos os desdobramentos que isso evidentemente implica. 

O discurso freudiano retomou esta mesma problemática no ensaio sobre a jovem homossexual, em 1919 (Freud, 1914/ 1933). Decepcionada com a figura da mãe, pelo novo filho, a jovem se distancia daquela e transforma uma outra mulher em objeto de desejo e de identificação (Freud, 1914/1973b), que não era possível com a figura materna. Em 1917, num comentário inserido no ensaio inicial sobre Dora, Freud nos disse que o laçhomossexual das jovens mulheres se inscrevia nesta mesma problemática (Freud, 1914/1973b), qual seja, pelo laço com uma outra mulher a jovem buscava uma identificação com o feminino, que não se encontrava na figura da mãe em função de sua impossibilidade. Vale dizer, as jovens se voltariam e se dirigiam para outras mulheres para descobrir o que é ser uma mulher, uma vez que, com a figura da mãe depauperada e esvaziada da potência libidinal, isso não seria possível.

A contrapartida disso, no registro do masculino, se evidencia no discurso freudiano sobre a fantasia dos meninos, permeada que seria essa pela oposição entre a maternidade e o erotismo. Com efeito, a figura da mãe-santa não poderia ser marcada pelo erotismo, pois este a desqualificaria efetivamente como puta. Daí a decepção e o nojo dos meninos, com a figura materna, ao descobrir nessa a presença do erotismo (Freud, 1905/1962). Não obstante o fato de nesta leitura de Freud este fantasma sexual masculino ser considerado universal, parece-me que ele se inscreve no campo historicamente delineado pela biopolítica. Isso porque se a mãe representa o sacrifício libidinal face à devoção da prole, esse sacrifício se faria às custas do seu erotismo. 

Portanto, aquilo que aparece no fantasma da menina no registro da identificação se enuncia no fantasma do menino no registro do objeto do desejo. No entanto, o que está em pauta nestas diferentes formas de subjetivação seria a oposição das figuras da mãe e da mulher constituídas no campo da biopolítica, no qual a segunda foi sacrificada em nome da primeira. 

Em decorrência deste sacrifício libidinal materno, os filhos acabavam por contrair uma dívida com a figura da mãe. Isso implicava cobranças e culpabilizações desta com aqueles pela vida toda, mas que se incrementavam bastante com a saída dos filhos da casa dos pais. O mesmo não ocorria na relação dos filhos com a figura do pai, justamente porque este não era destituído de sua potência libidinal na experiência familiar. 

Porém, a totalidade deste processo de subjetivação se condensa na célebre passagem enunciada pelo discurso freudiano em 1914, em “Introdução ao narcisismo”, de que para os pais os filhos ocupam a posição de “sua majestade” (Freud, 1914/1973b). Enquanto ocupam a posição fantasmática de “sua majestade o bebê”, pelo massivo investimento libidinal realizado pelas figuras parentais, os filhos iriam idealmente realizar tudo aquilo que estes não puderam empreender na existência, justamente porque se sacrificaram pelos filhos no campo biopolítico da família moderna. Com efeito, enquanto condensação maior do Capital econômico e simbólico da nação, a criança foi alçada à condição de soberana, pois a qualidade de vida da população, como signo maior que seria da riqueza do Estado, dependeria deste lugar onipotente conferido ao infante. Foi apenas neste contexto histórico, marcado que foi pela biopolítica, enfim, que a criança foi transformada no símbolo do futuro propriamente dito, que passou a colorir e encantar os nossos fantasmas sobre o infantil e a criança.

Podemos reconhecer assim como um conjunto de enunciados fundamentais do discurso freudiano se inscreveu no horizonte histórico delineado pelo biopoder, que configurou uma modalidade específica de família, de laços conjugais e de laços entre pais e filhos, que foram cruciais para a constituição de certas formas de subjetivação na modernidade. 

A indagação que se coloca agora é a seguinte: o que ocorre na atualidade, no que concerne a isso? É o que veremos em seguida. 

V. Desejo e reprodução

Nos anos 50 e 60, do século XX, foi desencadeado um processo radical de transformação da estrutura familiar moderna, que perdeu alguns de seus eixos fundamentais, como indicamos acima. O movimento feminista foi o seu desencadeador, à medida que as mulheres passaram a pleitear em outro lugar e uma outra posiçãsocial, pois demandavam a igualdade das condições com os homens. Pretendiam assim dispor das mesmas oportunidades sociais e de reconhecimento simbólico, buscando então se inserir no mercado de trabalho. 

Este movimento teve a sua condição concreta de possibilidade, no entanto, na invenção de procedimentos anticoncepcionais seguros. Desde então estes procedimentos foram se multiplicando e se aprimorando do ponto de vista técnico, de forma que a reprodução sexual pudesse ser bem controlada, pelas mulheres e pelos homens. 

Se o controle de natalidade era já realizado desde o século XIX, por meios e instrumentos biopolíticos que pretendiam produzir a população bem qualificada, não obstante a oposição sistemática da Igreja Católica, os seus procedimentos eram arcaicos e bastante incertos. Se a biopolítica enunciava, com Malthus, que enquanto a população crescia em progressão geométrica as fontes de alimentação cresciam em progressão aritmética, necessário seria restringir o tamanho da população para evitar a catástrofe da escassez e da precariedade alimentares. Ao lado disso, a demografia constatava, desde o final do século XVIII, que ocorria uma baixa da taxa de mortalidade e que a de natalidade se incrementava, invertendo então, pela primeira vez no Ocidente, esta relação. Com isso, o terror do fim da sociedade, que perseguiu a nossa tradição desde sempre, pôde ser finalmente apaziguado, pois a reprodução biológica sempre esteve atrelada à reprodução social. Por isso mesmo, as proles foram bastante reduzidas se comparadas às sociedades tradicionais e pré-modernas, até mesmo para que o investimento na qualidade de vida da população pudesse efetivamente se fazer com uma prole reduzida. 

Não obstante tudo isso, as gestações eram imprevisíveis e no limite incontroláveis, de maneira que as mulheres ficavam à mercê de suas proles, que ocupavam quase todo o seu tempo e nada mais lhes restava para que pudessem investir em qualquer outra atividade. Portanto, o registro do desejo ficava regulado pelo registro da reprodução biológica, em nome sempre da reprodução social.

Contudo, com a invenção de meios anticoncepcionais seguros e múltiplos, as mulheres puderam separar finalmente os registros do desejo e da reprodução biológica, podendo então definir quando ter filhos e quantos filhos queriam ter. Com isso, a liberdade feminina se instituiu em larga escala, podendo ser mulher e mãe ao mesmo tempo, pois não estavam mais assujeitadas ao determinismo dos ciclos hormonais que sempre aprisionaram os seus corpos. Como se sabe, isso provocou uma importante revolução dos nossos costumes, provocando o exercício amplo, geral e irrestrito do desejo na nossa tradição. 

Assim, as mulheres passaram a se capacitar intelectualmente para se inserir no mercado de trabalho, em condição de igualdade com os homens. Foram então para a Universidade, que anteriormente ficava restrita aos homens, não obstante as raras exceções que também ocorreram. Passaram então a priorizar mais as suas carreiras, colocando-as numa mesma posição que o casamento. Com isso, este passou a se realizar mais tarde na existência das mulheres, pois essas queriam constituir uma experiência importante, que as consolidasse no campo da profissão, antes de se lançarem na aventura da maternidade. 

Além disso, como o ideal de constituição da família e da prole como seu correlato não ficava mais de pé́, como no século XIX e até os anos 50 do século XX, pois as mulheres queriam se realizar como singularidades e não apenas como mães, as separações também se disseminaram. Com efeito, o laço conjugal entre um homem e uma mulher, assim como os laços homossexuais em seguida, somente seria possível de se produzir e de se manter caso os parceiros pudessem manter a sua condição desejante na conjugalidade. Caso contrário, cada qual saía em busca de outras relações, para articular a demanda do desejo na relação conjugal. 

Por condição desejante na conjugalidade é preciso entender aqui não apenas o exercício prazeroso do erotismo entre os parceiros, mas também a possibilidade que cada um ofereçao outro para a expansão de sua potência de ser e de existir. Os impasses conjugais poderiam se constituir nestes dois registros do desejo, tornando assim possível ou impossível a continuidade dos laços conjugais. 

VI. Nova ordem familiar 

Constituiu-se assim uma outra configuração da ordem familiar, bastante diferente da família nuclear moderna. Passou a se tornar comum que cada um dos parceiros tivesse já uma prole anterior e que estas proles fossem conjugadas na nova cena conjugal, independentemente de a nova relação possibilitar outros filhos. As crianças, em contrapartida, passaram a se inscrever em dois cenários familiares, o que foi constituído por cada uma das figuras parentais. 

Ao lado disso, as famílias monoparentais se incrementaram progressivamente, em escala internacional, de forma que os filhos passaram a viver apenas com um dos pais. Além disso, a extensão da prole se restringiu mais ainda, não sendo rara a existência de uma só́ criançnuma família. A diminuição da potência reprodutiva nos países europeus se transformou num padrão demográfico ao mesmo tempo importante e apavorante para os Estados atuais, que temem pelo seu futuro, pelo incremento da imigração dos países pobres. 

Tudo isso coloca em cena as crianças e os jovens, que foram impactados de maneira radical por tais transformações. As modalidades da socialização familiar e das formas de subjetivação foram subvertidas, em relação à família nuclear moderna. 

Assim, as mulheres saíram de casa para ir em busca de um projeto identitário e singularizante, mas, em contrapartida, os homens não voltaram para compensar e equilibrar a ausência materna. Com isso, as crianças passaram a frequentar desde muito cedo as creches e as escolas maternais, que passaram a suprir a ausência das figuras parentais. Com o crescimento das crianças a ausência destas se fazia ainda presente, de maneira que os empregados passaram a suprir tais ausências, quando os recursos financeiros possibilitaram isso, ou o excesso de atividades programadas. 

Neste contexto, o espaço do jogo infantil foi evidentemente restringido, tendo na performance e na socialização compartilhada as suas contrapartidas. Parece-me que a fantasmatização das crianças foi aqui atingida de maneira frontal, assim como aquilo que é o seu correlato, qual seja, a potencialidade de simbolização e de articulação linguageira. 

Algumas mães passaram a realizar a dupla jornada de trabalho neste contexto, para suprir as suas ausências. Com isso, se desgastam excessivamente, de maneira a perturbar as suas relações tanto com o parceiro quanto com os filhos. 

Tudo isso acabou por produzir uma crise importante na relação da família com a escola, que está longe de ser resolvida. Assim, na ausência relativa das figuras parentais essas passaram a exigir que a escola realizasse não apenas a socialização primária mas também a secundária (Bourdieu & Passeran, 1970), isto é, a constituição do ethos primário e não apenas o ensino como foi instituído com a escola no século XIX. As escolas relutam em fazer isso, pois modificaria inteiramente a sua estrutura, e a questão permanece em aberto. As creches e as escolas maternais entraram já em parte na transmissão da socialização primária, que outrora era atribuição exclusiva da família, na ausência relativa dos pais nos primeiros anos de vida da criança. Parece-me, no entanto, que um novo pacto social entre a família e a escola será́ instituído no futuro, considerando as transformações que estão em curso. 

VII. Formação de subjetivaçã

Este conjunto de transformações incidiu na economia do narcisismo das crianças inicialmente e dos adolescentes em seguida, produzindo novas modalidades de subjetivação e de transtornos psíquicos, que passaram a caracterizar a subjetividade na contemporaneidade. 

Antes de mais nada, o autismo. Esta forma de perturbação psíquica foi apenas descrita nos anos 30, do século XX, pelo psiquiatra norte-americano Leo Kanner. Desde então, o seu crescimento tem sido vertiginoso, em escala internacional, de maneira a se destacar como uma modalidade específica de perturbação psíquica, da contemporaneidade. A sua emergência e ascensão irrefutável se articulam com as transformações familiares a que me referi acima. 

No que concerne a isso, com efeito, a ausência relativa das figuras parentais no campo familiar e o anonimato nos cuidados das crianças e sobretudo dos infantes (babás, creches, escolas maternais) têm uma relação direta com a expansão do autismo. O desinvestimento narcísico daqueles seria aqui a condição concreta de possibilidade desta modalidade de dor psíquica. 

Em seguida, as perturbações psíquicas se condensam cada vez mais nos registros do corpo, da ão e das intensidades (Birman, 2006b), nos quais a passagem ao ato passa a dominar a regulação psíquica, com descargas sobre o corpo e a ação. Se isso evidencia a pobreza dos processos de simbolização como afirmei acima, por um lado, denota ainda a perda do investimento narcísico, pelo outro, com a extensão daquilo que André́ Green denominava narcisismo de morte. Com efeito, da síndrome do pânico às perturbações psicossomáticas, passando pelo incremento da irritabilidade, da agressividade e da violência, e chegando às depressões, o que está sempre em pauta é a desnarcisação e a fragilização dos processos de simbolização (Birman, 2006b). 

Por isso mesmo, o que se passou a denominar fronteiriçoestados-limite se incrementou nas estatísticas epidemiológicas, constituindo entidades novas nas nosografias psiquiátrica e psicanalítica. Foi neste contexto social e teórico, aliás, que Winnicott formulou o conceito de falso si-mesmo e destacou o lugar das perturbações psíquicas articuladas com o desmame e a desnarcisação (Winnicott, 

1975). Ao lado disso, Pontalis pontuou a presença da dita desnarcisação e da fragilidade simbólica nos ditos estados-limite, nos quais a presença de uma boa escolaridade e do bom domínio da língua não impediriam a constituição de sujeitos com frágil potencial da metaforização (Pontalis, 1988). 

Com isso, o que Freud denominava neuroses atuais tende a predominar sobre as psiconeuroses, numa inversão do que ocorria no final do século XIX e nos primórdios do discurso freudiano (Freud & Breuer, 1895/1971). Porém, se as neuroses atuais não são mais facilmente transformáveis em psiconeuroses, isso se deve seja à narcisação frágil seja à pobreza dos processos de simbolização. 

Não se pode esquecer ainda a disseminação das compulsões hoje, que como ações falhas dominam o horizonte das perturbações psíquicas. Com efeito, das drogas à comida, passando ainda por outros objetos, as compulsões representam na atualidade um contingente importante no campo das perturbações psíquicas, no qual se pode evidenciar a conjunção de uma negatividade narcísica com uma fragilidade dos processos de simbolização.

Este narcisismo de morte se enuncia de forma eloquente nas depressões contemporâneas, que se destacam cada vez mais como a prima donna das perturbações psíquicas na atualidade. O que se apresenta aqui é a presença marcante do vazio no centro da experiência psíquica, de forma que o dito narcisismo de morte se evidencia pela pregnância assumida pelo masoquismo na experiência psíquica contemporânea. Seria este o correlato do narcisismo de morte nesta experiência, indicando assim o domínio da pulsão de morte sobre a pulsão de vida no aparelho psíquico. 

VIII. Estilo adolescente de existência e a autoridade parental 

Porém, se lançarmos agora este conjunto de transformações em curso num plano mais abrangente, podemos depreender ainda algumas decorrências cruciais do que ocorre na contemporaneidade. 

Assim, se todos podem ser desejantes ao mesmo tempo e isso perdurar por toda a vida, a diferença entre a condição da adolescência e a que se faz presente no adulto e na velhice deixa de existir. Com efeito, as fronteiras psíquicas entre a adolescência e os demais momentos da existência tendem cada vez mais a se esfumaçar e até mesmo se apagar. Pode-se ser pai, mãe, avó e avô na atualidade sem perder o fulgor da adolescência, no qual a potência desejante se encontra ainda sempre presente. O que se impõe como indagação hoje, nesta expansão do estilo adolescente de existência, é se aquela separação destas idades da vida não foi um artefato produzido pelo discurso biopolítico dominante nos últimos duzentos anos e se este agora não tende a se transformar nas suas linhas fundamentais de força

Uma das consequências disso é a perda da autoridade das figuras parentais aos olhos dos filhos, para os quais aquelas figuras se diferenciam deles cada vez menos, pois exercem um mesmo estilo de existência. Se este processo se iniciou lentamente nos anos 60, o seu incremento posterior se acelerou de maneira incrível, mudando completamente os padrões costumeiros de autoridade parental, na nossa tradição, de forma inequívoca. 

Nesta transformação radical que se opera em face da infância hoje algumas consequências se avolumam e passam a nortear o nosso projeto de civilidade pós-moderna. Assim, a ausência e a diminuição flagrante da prole denota um não-desejo de crianças, na atualidade de nossa tradição, de maneira que um novo fantasma se constituiu. Este fantasma pode ser enunciado como matemos as crianças. Isso não tem mais o sentido que lhe deu Leclaire num ensaio brilhante dos anos 80, intitulado “Mata-se uma criança” — que se fundava no limite a ser conferido à onipotência narcísica do infantil, para que o sujeito pudesse se constituir, num campo definido pelo discurso da biopolítica dos séculos XIX e XX —, mas o de não se querer ter mais filhos e crianças, pois estes perturbam e impedem a nossa possibilidade desejante de existir. Enfim, as crianças passariam a atrapalhar a nossa liberdade e mobilidade, de existir e de desejar. 

Portanto, não devemos estranhar que a pedofilia tenha se transformado em uma de nossas obsessões contemporâneas, pois se nos empenhamos em matar as crianças como um fantasma fundamental hoje, as crianças deixam de ser o signo por excelência do futuro, como eram no início do século XIX, e se transformam no objeto para o gozo imediato dos adultos, no nosso imaginário contemporâneo. 

 

 REFERÊNCIAS 

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Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. 


In: Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(72): 47-62, jun. 2007.

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