segunda-feira, maio 24, 2021

PSICOSE



 



O DIAGNÓSTICO DE ESTRUTURA PSICÓTICA 


Para poder colocar esta questão, são necessárias algumas observações, porque a clínica à qual geralmente estamos acostumados — a clínica psiquiátrica clássica — é uma clínica em que, se não há fenômenos psicóticos, se não aparecerem fenômenos elementares da psicose, não há psicose. O que é normal em qualquer clínica que seja uma clínica descritiva, fenomenológica, onde não é possível se elaborar uma categoria nosográfica sem recorrer a fenômenos. 

Então, para a clínica clássica, se não há fenômenos elementares da crise, quer sejam do lado de manifestações alucinatórias, ou do lado da constituição do delírio, não há categoria nosográfica de psicose. 

A clínica psicanalítica não é uma clínica descritiva, nem fenomenológica, mas é uma clínica estrutural, há medida em que o diagnostico se estabelece na transferência. O que não quer dizer que o diagnóstico seja um diagnóstico sobre a transferência do sujeito, considerando a transferência que ele organiza como um fenômeno a mais. Não é disso que se trata. Trata-se do fato que na transferência que o discurso do paciente organiza, a partir do lugar no qual o paciente coloca o "terapeuta" é que um diagnóstico é possível, é que uma clínica da psicose é possível.

Era necessária esta premissa para explicar o fato de que se possa falar de estruturação psicótica fora de qualquer crise e até fora de qualquer tipo de manifestação tradicionalmente considerada como psicótica: delírio, alucinações auditivas, cenestésicas, visuais, enfim qualquer tipo de fenômeno psicótico, segundo a clínica clássica. 

Em outras palavras, a clínica psicanalítica, por ser estrutural, quer dizer, por ser fundada na transferência (com a hipótese que o laço transferencial desdobre a estrutura mesma do paciente), permite um diagnóstico de psicose mesmo na ausência de fenômenos classicamente psicóticos. Mais precisamente, a clínica psicanalítica pode falar de estrutura psicótica, na ausência de qualquer crise psicótica e das suas manifestações

Então, para introduzir algumas considerações sobre o que seria uma estruturação psicótica fora de crise, lembrei-me de um exemplo.

É o caso de um paciente, cuja análise durou mais ou menos um ano. Foi certamente a primeira vez em que cheguei — e, tenho que dizer, cheguei com ajuda — ao diagnóstico de psicose na ausência de qualquer manifestação fenomênica de psicose.

Tratava-se de um paciente norte-americano. Acontece que uma das minhas línguas é o inglês e, em Paris, há relativamente poucos psicanalistas que podem trabalhar com pacientes ingleses ou norte-americanos. Este paciente chegou ao meu consultório mais ou menos trazido. Mas não trazido fisicamente por alguém, trazido no sentido de que a mulher dele, que frequentava os meios analíticos, falara para ele que talvez ele devesse fazer uma análise. Então ele ligou, chegou e ficou "trabalhando" comigo mais ou menos um ano.

Era um jovem de uns 30 e poucos anos, bonito, vagamente parecido com James Dean e talvez não só́ fisicamente. A sua história era bastante extraordinária. 

Foi militar combatente no Vietnã, deixou o exército americano no fim do seu período, não foi um desertor, nada disso. Decidiu voltar aos EUA do jeito mais interessante possível. Apesar do fato de que "interessante" não seja uma palavra que fazia parte do seu vocabulário, vale a pena notar. Ele voltava, mas não tinha chegado aos EUA, porque voltara através da Birmânia, Índia. Ficou na Índia por muito tempo. Tinha se relacionado com drogas nessa época e chegou finalmente à Europa. Na Europa ele encontrou uma mulher com a qual se casou. A mulher era herdeira de uma empresa importante em Paris. Permaneceu com ela na França ocupando um posto de direção na administração desta empresa. 

O problema que levou sua mulher a enviá-lo, era o seguinte: ele era casado com ela, sem filhos, e por outro lado, acabou sendo também o amante da sua sogra, o que, aparentemente trazia problemas à mulher, talvez à sogra, não sei, mas não colocava nenhum problema para ele. Porém ele chegou e ficou no consultório mais ou menos um ano. O que era difícil é que eu não tinha a menor ideia do porquê ele vinha. Vinha regularmente, falava o que normalmente um paciente em análise, bem educado, pode falar: de sua infância, de sua história, das coisas sobre as quais normalmente um paciente fala. 

O fim da história foi assim: um dia eu soube — porque fiquei um tempo sem notícias dele, não veio mais e eu não sabia por que — que ele estava num bar, num bar qualquer e, não sei como, alguns bandidos que aparentemente estavam preparando um assalto acharam que ele tinha a cara do negócio, propuseram que ele participasse neste assalto, ele aceitou e foi com eles. O assalto saiu mal, um assaltante morreu e ele foi preso. Nesta ocasião, a mulher dele me ligou, e tudo isso acabou com uma expressão jurídica, pois escrevi um certo número de considerações sobre ele, por razões judiciais. Tudo isso não saiu muito mal para ele: um divórcio e um tempo de prisão relativamente breve antes de uma expulsão. 

O que era extraordinário nesta pessoa — e por isso resulta difícil falar dele — é que ele era disponível a qualquer coisa. Não no sentido da docilidade, no sentido de que teria sido fácil manipulá-lo, mas no sentido de que qualquer estrada e qualquer direção eram para ele direções possíveis, estradas possíveis. 

Isso traduz o que aconteceu no final de sua história e também o que aconteceu no início de sua história francesa, por exemplo. O fato de ter sido combatente no Vietnã, com uma história pesada, como a de qualquer combatente no Vietnã, de ter sido depois hippie na Índia e chegar a Paris e inserir-se no melhor da alta sociedade. 

Tudo isso ele fazia perfeitamente. Mas fazia perfeitamente, eu diria, sem nem mesmo medir a diferença de valor e de significação que havia entre essas coisas. Desde este ponto de vista, o fim da história é significativo. Ele aceitou — e porque diabo aceitou — envolver-se em um assalto a uma agência de banco, ele que nunca cometera um ato criminoso... e aceitou porque eles pediram. A verdade é que ele aceitou porque "por que não?". Era também interessante que no quadro da sua atividade, como por exemplo dirigir o Departamento Administrativo de uma empresa importante, ele estava perfeitamente no seu papel. Não havia nada no seu comportamento que testemunha-se uma impossibilidade ou uma dificuldade particular para funcionar num registro fálico ordinário. Era possível para ele referir-se a significações fálicas distribuídas num meio superfálico, como pode ser o meio social da alta burguesia comercial de Paris. 

Ele falou-me um pouco da sua infância, que era uma infância particular, numa região dos Estados Unidos, que por sinal eu conheço bem, era uma infância ligada a uma seita protestante bastante fechada. Não vou entrar em detalhes porque nem precisa. Vou lembrar duas coisas principalmente: a primeira é uma interpretação que foi sem efeito, o que achei interessante. Era uma interpretação relacionada com o fato de que, entre os seus pais, ele estava constantemente numa posição de mensageiro, como se fala em inglês, de "go-between". A posição de alguém que estava carregando mensagens de um ao outro, ida e volta, naturalmente sem nada querer saber das mensagens. Como se a tarefa fosse de manter, estabelecer, tecer a rede dos laços, de percorre-la sem por isso ter que privilegiar uma direção, um sentido ou mesmo um dos polos relacionados por ele. Havia algo disso também na circulação dele entre a sua esposa e a sua sogra. 

A segunda é o sentimento que eu tinha, escutando o que ele contava, que essa infância estava situada num espaço infinito, mas num espaço infinito que não era ideologizado. Quero dizer com isso que ele certamente não é o único jovem americano a ter feito, depois da saída da guerra do Vietnã, uma excursão para a Índia e experimentado algumas drogas mais ou menos pesadas. O que era interessante, com respeito a esta experiência, é que ele não expressava posição ideológica sobre este assunto. Não havia posição ideológica alguma relativa a qualquer tipo de libertação, por exemplo, típica dos jovens americanos dessa época. Nada se apresentava, no que ele falava, como uma forma de significação eletiva, mas tudo tinha significação. Tudo tinha significação até o ponto que ele podia, em qualquer situação, ser o homem da situação. Ele, por outro lado, fora um militar exemplar, tinha medalhas e tudo o que precisava. Isso esquecera de falar. 

No começo da cura deste paciente, a questão diagnostica, na minha cabeça, era diferencial entre perversão e alguma coisa que talvez fosse psicose. Do lado da psicose era justamente o fato de que eu não estava entendendo nada sobre o que lhe colocava a necessidade de confrontar-se comigo duas vezes por semana, porque na verdade ele não se confrontava comigo. Não havia nada na sua relação comigo da ordem de uma cumplicidade, não havia nada da ordem de um desafio, não havia nada tampouco da ordem de uma queixa neurótica. A análise era um percurso, como podia ter sido o seu percurso na Índia, ou o seu percurso na alta burguesia de Paris, no assalto ao banco ou na guerra do Vietnã. Deste ponto de vista, havia certa significação, mas uma significação de forma alguma privilegiada. Não sei se dá para entender este tipo de pessoa, que talvez a psiquiatria clássica chamasse de um psicopata logrado, perfeito. Não sei se é possível, porque, normalmente, para o neurótico, o tipo de escolhas que se produziram numa vida como esta, são escolhas sempre eminentemente dramáticas. Neste caso, a dimensão do drama era ausente, porque todas as escolhas que ele fazia — escolhas de grande importância ou de grande consequência do ponto de vista de um neurótico normal — eram para ele e no seu relato triviais. 

Se tomei esse exemplo, que foi para mim, sob todos os aspectos, instrutivo, foi para começar a pensar no que seria um sujeito cujo horizonte de significações não estaria organizado ao redor de uma unidade de medida possível. Um sujeito que estaria num mundo no qual existe significação. Mas, no final das contas, todas as significações são significações em si mesmas, não se medem a uma significação que distribui as significações do mundo. 

E um sujeito eminentemente errante, errante no sentido da errância, não do erro. Um sujeito que pode errar, errar no sentido de atravessar o mundo e seus caminhos. Entretanto, refere-se a um sujeito para o qual o conhecido provérbio que diz "todos os caminhos levam à Roma" não vale, porque os caminhos vão de fato em direções próprias, e cada caminho vale a pena. Mas, por outro lado, por que errar? Por que ele não poderia ter ficado numa posição? Por que ele não poderia, por exemplo, ter ficado no Exército Americano, na Índia, na alta sociedade de Paris? Por que escolhe num momento qualquer, a direção de um assalto a um banco? Porque justamente há alguma coisa a mais. 

Trata-se de um horizonte de significações que não é organizado ao redor de uma significação central que organizaria todas as outras. E, como consequência dessa posição, o sujeito tem que errar. Mas errar não na procura de algo que poderia ser encontrado como significação final, nada disso. Isso seria mais o "erro neurótico" do que o "errar psicótico". Errar porque não existe um lugar a partir do qual podemos medir a significação do que estamos fazendo. Nesta medida é evidente que a única coisa que resta é percorrer todos os caminhos. O que resta é um percurso infinito, um percurso sem parada. Vale a pena notar: um percurso infinito, mas um infinito não idealizado como o infinito de uma procura. O infinito de um mapa, o que é bem diferente. O infinito de um mapa que poderia ser o mapa, não da terra, mas do céu, um mapa do infinito. Por isso o interesse para ele da análise não era diferente do interesse para ele de qualquer tipo de experiência. Digamos, era uma experiência a mais, um caminho a mais no mapa. 

Apesar de tudo isso, era um homem viável socialmente, embora para o neurótico médio, bastante misterioso. 

A partir deste caso já podemos pensar algumas coisas: por exemplo, não podemos concluir, de modo algum, que um sujeito desse tipo não seja sujeito. Não podemos pensar que ele esteja tomado nos registros Imaginário e Real somente. Porque ele tem indubitavelmente uma significação de sujeito. Ele está tomado numa articulação simbólica, chega a circular neste registro. Mas, se está tomado numa articulação simbólica, está tomado certamente de um jeito diferente do que um neurótico. 


Contardo Calligaris, in:  Introdução a uma clínica diferencial das psicoses, Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.


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