quinta-feira, janeiro 24, 2019

A REPETIÇÃO NA TEORIA LACANIANA: TIQUÊ E AUTOMATON


REPETIÇÃO E PULSÃO DE MORTE: um comentário sobre Leila

Doris Rinaldi





A psicanálise, como afirma Lacan no Seminário XI (1964), é uma praxis orientada para aquilo que  no coração da experiência é o núcleo do real. A importância que o conceito de Repetição assume  na teoria psicanalítica está intimamente vinculada a esta demarcação do vetor de orientação do campo psicanalítico, na medida em que ela não pode ser pensada independentemente de uma praxis.

 Foi justamente a partir de observações clínicas  que  Freud teve a sua atenção despertada para o fenômeno da Repetição. Desde a formulação da noção de uma representação coercitiva ( Zwangsvorstellungen), que apresenta em 1894 no texto  “As psiconeuroses de defesa”, ele já esboça o conceito de repetição como algo constituinte do funcionamento psíquico. Em 1914, ao se deter sobre os fenômenos da transferência na clínica, dá à noção o estatuto de um conceito, ao identificar a compulsão à repetição a uma maneira de  recordar  que se presentifica no tratamento. Nesse  momento procura articular os conceitos de repetição, transferência e resistência, o que faz com que a força do conceito fique enfraquecida pela interseção com o conceito de transferência. 

É em 1920, em “Além do princípio do prazer”, que  vai atribuir ao fenômeno da compulsão à repetição o caráter de uma força demoníaca que sobrepuja o princípio do prazer, o que o leva a formular o conceito de pulsão de morte, como a tendência a retornar que funda a orientação do sujeito humano na busca do objeto. A partir desse  momento fica evidenciada a importância do conceito de repetição, que pode  ser considerado como constitutivo do próprio conceito de inconsciente, na medida em que revela o movimento da pulsão que está na base da constituição do iconsciente. Repetição, inconsciente e pulsão estão, assim, intimamente ligados e é por isso que Lacan os considera, juntamente com o conceito de transferência, como os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, dedicando a eles um de seus Seminários (Seminário XI (1964-65)).

Ao dar destaque ao conceito de repetição enquanto conceito fundamental, Lacan é sensível  à ligação que  Freud estabelece entre repetição e pulsão de  morte,  na medida em que esta última denuncia o que há de essencial na repetição, que ele designa como encontro do real. Para Lacan, a repetição é esse trabalho fundamental da pulsão de morte que relança insistentemente algo inassimilável, da ordem do real. É esse encontro, essencialmente faltoso, que os sonhos traumáticos trazem de volta, no movimento de retorno a uma impossível origem, a um estado de repouso absoluto, com a eliminação de todas as tensões. No lugar desse objeto impossível de encontrar, o que se encontra sempre é o real, o que introduz a diferença no circuito da repetição. É este inassimilável à cadeia simbólica, traumático, que determina o movimento do desejo, que é sempre desejo de outra coisa. 

Lacan se valeu do vocabulário de Aristóteles para tratar as duas faces da repetição: tiquê e automaton. Enquanto o automaton aponta para a repetição sintomática, como insistência dos signos comandada pelo princípio do prazer, a tiquê indica esse  encontro do real, que vigora sempre por trás do automaton, para além do princípio do prazer. Para ele, em toda pesquisa de Freud fica evidente  que é desse  real que se  trata.

Para trabalhar melhor estas formulações, em particular a relação entre repetição e pulsão de morte, nos valeremos da narrativa trazida por um filme de Dariush Merjui (Irã,1997), que apresenta de forma pungente o drama do desejo humano, através do destino de uma mulher de classe  média na sociedade iraniana atual. O filme leva o seu nome: Leila e pode ser pensado como uma história clínica. Ele se desenvolve num cenário de cenas repetidas: entre a primeira e a última, uma narrativa que vai do drama à tragédia, em que a repetição, em sua face de automaton, traz em si um real insuportável que evidencia a ação da pulsão de morte.

No primeiro tempo do filme, a ação tem início numa refeição festiva, ao ar livre, em que é acertado o casamento de Leila. Seu irmão traz um amigo que se tornará seu marido. Tudo já está previsto no contexto dos arranjos familiares  e  não parece haver escolha para ela, nem tampouco para ele. Apesar disso, o amor surge como um imprevisto e a vida em comum desenvolve-se de forma apaixonada.

 Neste percurso, entretanto, algo se interpõe como um sintoma, cujo sentido, como diz Lacan, é o real, enquanto aquilo que se coloca em cruz para impedir que as coisas andem bem.( Lacan, 1986:24). Após algum tempo de casados, as famílias se inquietam pelo herdeiro que não chega e o jovem casal procura especialistas para ver o que está ocorrendo. Esta situação preocupa principalmente a mãe do rapaz, uma vez que este é seu único filho homem, responsável, portanto, pela continuidade do nome da família. Ela aguarda ansiosamente um neto que lhes assegure a imortalidade. Sintoma social, onde estão traçados os papéis de homens e  mulheres numa sociedade patriarcal fortemente hierarquizada e tradicional, em que o valor de uma mulher está ligado ao filho que pode dar a um homem..

Nesse momento começa o drama de Leila: tal como vaticinado por sua sogra, que não admite que o filho possa falhar, ela constata, após algumas visitas ao médico e uma série de exames, que não poderá cumprir este papel, já que está impossibilitada de gerar um filho. A princípio isto não parece incomodar seu marido que reafirma o amor por ela e chega a sugerir que adotem uma criança. Após algumas visitas a orfanatos, Leila se recusa a optar por esta solução, assumindo a sua falha e dizendo ao marido que esta impossibilidade não o atinge, uma vez que ele pode gerar um filho que seja sangue do seu sangue. Pesa sobre ela a culpa  por não cumprir o seu papel social, assim como por não satisfazer a demanda do Outro que a intima a produzir o falo enquanto potência imaginária e referência simbólica de uma determinada ordem. As mulheres, como diz  Lacan, são falóforas, na medida em que produzem meninos.

O que  move Leila ao assumir uma postura em que recusa o amor de seu marido, reduzindo-se à função de procriadora, numa posição marcada pelo real da privação? É sob a pressão da sogra, que não por acaso ela chama de  “A Mãe”, que surge como um supereu insaciável, inscrição arcaica de uma imagem materna onipotente, que Leila caminha, como Édipo, para a maldição consentida. É “A Mãe” que insiste em lembrar-lhe o desejo inconfesso de seu filho de ter um filho, exigindo que ela consinta que ele se case com outra mulher que possa satisfazer esse desejo, apesar dos protestos do próprio e até  mesmo do pai deste e de suas irmãs. A este desígnio Leila se submete, na tentativa de satisfazer não o desejo de seu marido, mas o desejo da Mãe. Parecem estar soldados aí a busca de satisfação do desejo da Mãe e o desejo de  ser Mãe, na medida em que este lhe dá acesso ao “tornar-se mulher”.

O desejo da mãe é original e fundador, mas ao mesmo tempo destrutivo e  mortal. Ele deve ser mediado pela função paterna que opera uma metaforização, permitindo o surgimento do sujeito. O Nome-do-Pai surge como substituição significante ao desejo da mãe . No filme esta função parece enfraquecida, a partir da existência de uma tensão na sociedade iraniana entre antigos e novos valores. Os novos valores que se insinuam expressam-se na defesa do marido de uma relação amorosa exclusiva, em que a mulher não se reduz à função de reprodutora, assim como na revolta das cunhadas que tentam convencer Leila a não seguir as imposições da Mãe. Há, portanto, uma valorização do feminino para além do papel que é destinado às mulheres pela tradição e uma mudança na relação entre os sexos. Até  mesmo o pai do rapaz  reprova o comportamento da Mãe, considerando absurda sua pressão sobre Leila. Do outro lado está a inquebrantável determinação da Mãe em atingir seu objetivo: seguindo a tradição, dar continuidade à linhagem masculina. As figuras masculinas que poderiam barrar esse caminho são, contudo, demasiadamente passivas, como o pai do rapaz e o próprio rapaz que acaba por também se submeter ao desejo materno. Parecem estar na fronteira, indecisos entre duas ordens. É a Mãe que, paradoxalmente, surge como representante da ordem tradicional masculina, que outorga aos homens o poder de ter várias mulheres, em que estas aparecem veladas, cobertas por xales, dessubjetivadas. 

Neste contexto, o supereu se manifesta, como diz Lacan (1953-54), como uma instância cega e repetitiva. É o “tu deves” que é, ao mesmo tempo, a lei e a sua destruição. A presença constrangedora e repetitiva da Mãe leva Leila a engajar-se na busca de uma outra mulher para o marido, numa posição passiva, masoquista, que revela o poder desse supereu arcaico. 

É nesta busca que a função da repetição se instala, revirando a posição de Leila de uma passividade  masoquista para uma atividade silenciosa. Como a netinha de Freud, no jogo do Fort-da,, ela procura dominar a experiência de perda através de uma atividade repetitiva em que supostamente controla a situação. Após convencer o marido a escolher outra mulher que lhe possa dar um filho dentre as candidatas arranjadas pela Mãe, sucedem-se cenas que configuram um ritual onde Leila prepara cuidadosamente a roupa do rapaz para o encontro com a candidata, seguindo-o em quase todos os passos que o levam a ela. A partir de um acordo entre eles, que determina que este  só poderá aceitar uma mulher aprovada por Leila, ela o acompanha no carro até um certo ponto do percurso para o encontro, para onde ele retorna ao final, narrando o que aconteceu. Eles conversam na volta para casa, momento em que ela rompe seu silêncio, divertindo-se com os defeitos que  o rapaz sempre encontra nas candidatas,  o que preserva a relação entre eles.

Podemos considerar este como o segundo tempo do filme, em que a repetição assume a forma sintomática do automaton, uma vez que o ritual surge como uma formação substitutiva que vem em lugar da falta de relação que passa a marcar o convívio do casal. Ele tem a função de impedir a irrupção de um real traumático, garantindo que o encontro com a outra não se consume, o que aplaca o sofrimento e permite um certo gozo ao casal. A insistência deliberada de Leila em submeter-se ao desejo da Mãe, que a cada candidata recusada apresenta outra, anuncia, contudo,  um desfecho trágico. Como Antígona, Leila mascara, com seu heroísmo, o drama de não poder ser mãe.

Ironicamente, como se fosse um acaso, o rapaz se interessa por uma das candidatas e o ritual, pela ação da pulsão de morte, desenvolve-se até o seu ponto máximo, onde vem à tona aquilo que pretende esconder: o real.  Novo encontro é combinado com a mesma moça e desta vez uma diferença se apresenta: Leila acompanha seu marido no carro, saltando, como sempre,  um pouco antes do local do encontro. É lá que permanece, não mais para reencontrá-lo, mas para vê-lo passar no carro com a outra e aprová-la, como fora combinado previamente. A partir disso, o casamento é acertado e Leila, levando ao ápice sua compulsão, arruma silenciosamente a casa para receber a nova mulher. Num ritual trágico, prepara, com mais esmero do que nunca, a roupa de gala que o rapaz usará na cerimônia, retirando a seguir todos os seus pertences do quarto do casal e arranjando-o cuidadosamente  para a noite de núpcias. Nesta tentativa de apagar-se a si mesma, apagar seu desejo,  recolhe-se ao quarto dos fundos e aguarda a chegada do novo casal. 

O momento em que estes entram na casa, acompanhados dos convidados para a festa do casamento, inaugura o terceiro momento do filme. Nele se observa a irrupção de um real insuportável, que revira novamente a posição de Leila. Diante da alegria dos convidados numa reunião festiva que, de certa forma, marcadas algumas diferenças, relembra a primeira cena do filme, ela deixa a casa, correndo enlouquecida pela rua, refugiando-se na casa de sua família, que nem sequer sabia de seu drama. 

A cena que se  segue  define o final do filme, pois Leila vomita compulsivamente, fixando-se em seguida em uma mudez da qual não mais sairá. Se a cena inicial do filme foi uma refeição coletiva festiva, em que Leila foi o prato principal através da combinação de seu casamento e da definição de um destino ao qual ela não poderá fugir, a repetição desta comemoração traz à boca de cena o real impossível, como algo inassimilável que retorna no vômito de Leila.

Daí em diante, o filme se encaminha na direção do fracasso: fracasso do novo casamento, pois o rapaz não se conforma com a ausência de Leila e fracasso da tentativa de satisfazer o desejo da Mãe, pois do novo enlace nasce uma menina. Em vão são as tentativas do rapaz, após separar-se da segunda esposa, de retomar a relação com Leila. Isto não é mais possível. Tendo ido longe demais na traição de si mesma, ela está muda e morta para a vida, evidenciando de forma radical a ação da pulsão de  morte como tendência para o retorno ao estado de não-vida, anterior à vida, que pressupõe a passagem pela morte.

 A última cena do filme repete integralmente a primeira, neste retorno à origem. Uma refeição coletiva, festiva, ao ar livre. Como no início, o rapaz é novamente convidado pelo irmão de Leila, mas desta vez chega acompanhado de uma menina. Leila, sem ser vista, o observa à distância, de uma janela, mas não desce para a festa. Tudo está acabado para ela, que surge, nesta cena, como a demonstração viva da impossibilidade. A presença da menina, contudo, deixa a pergunta: será tempo de recomeçar?...


Referências Bibliográficas
FREUD,  Sigmund   -  “Recorda, repetir e elaborar” (1914), Obras Psicológicas Completas., Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago Ed. 1976.
________________   -    “Além do princípio do prazer” (1920), Obras Psicológicas Completas., Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago Ed. 1976
GUYOMARD, Patrick  - O gozo do trágico: Antígona, Lacan e o desejo do analista. Rio de Janeiro,  Jorge Zahar Ed., 1996. 
LACAN,  Jacques  -   Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964),  Rio de Janeiro,  Jorge Zahar Ed., 1979.
________________   -   Seminário I, Os escritos técnicos de Freud (1953-54),  Rio de Janeiro,  Jorge Zahar Ed., 1983.
________________ -   “A terceira”(1974), Che vuoi?, outubro , ano 1, no., Porto Alegre, Cooperativa Cultural  Jacques  Lacan,1986.
________________  -  “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,  1998.

In:  Estados Gerais da Psicanálise
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