segunda-feira, agosto 22, 2022

ROMANCE FAMILIAR



Liturgia: Sagrada Família, tempo para “recapitular” – Diocese de Anápolis




 ASSUNTOS DE FAMÍLIAS NO INCONSCIENTE

 

Jacques Alain Miller


 

A família foi, na China, durante séculos, o princípio ordenador do universo, como se ela apresentasse uma hierarquia natural, fundasse uma harmonia universal. O pai como chefe e a mãe ao seu lado: tal é o modelo de ordem universal regendo o laço social, mas também o movimento dos planetas – o que reenvia a família - no extremo, do lado da natureza. Pensar a família como estando ao lado da natureza é uma tentação, uma vez que entre os animais, este tipo de laço existe (não entre os insetos que se apresentam a nós, muito mais como uma metonímia da sociedade), mas em outras espécies. Há sempre a tentação de fundar a família sobre a reprodução.

É possível que hoje, no discurso da ciência se possa dar o matema da reprodução, dar uma fórmula significante. Isso torna ainda mais necessário o estabelecimento de uma descontinuidade entre os modos de reprodução e a família, e explica também aquilo que nós chamamos de "dimensão histórica da família", que não foi sempre tal como nós a conhecemos hoje: no decorrer do tempo, foram inventados diferentes modelos de família, o que nos permite estabelecer esta descontinuidade entre a natureza e a família.

 

Família, Santa Família

O traço de gênio do cristianismo, tão distante da crença chinesa, foi ter elevado a família ao divino, ao ponto que falamos de Santa Família. A psicanálise, como o cristianismo, é também solidária da família. Lacan diz que a psicanálise participa da ideologia edipiana, que não é uma subversão da família. Ao contrário, os analistas pensavam, de certo modo, em consolidar a família e os valores exaltados pela psicanálise até Lacan, eram os valores familiares. Os judeus mergulhavam aí as raízes tão profundas que os analistas norte-americanos pensavam que, ao final de sua análise, o analista deveria ser casado e fiel; essas eram para eles as condições para o fim da análise.

A psicanálise, na versão popular, praticou uma espécie de deciframento da vida a partir da família, como se não reencontrássemos na vida senão diferentes metonímias do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs. A psicanálise contribuiu para esta familiarização do mundo, como se ela tivesse se deixado absorver pela neurose.

Há sempre alguma coisa a resolver nos laços de família, como se houvesse aí alguma coisa a ser compreendida, como se aí residisse sempre um problema não resolvido cuja solução deve ser buscada em alguma coisa que a família tem escondida. Segundo Lévi-Strauss, a família é um grupo social que apresenta três características ao menos: ela tem origem no casamento, ela é formada pelo marido, pela esposa, e pelas crianças nascidas dessa união, e ainda mais alguns membros. Seus membros são unidos pelos laços legais, de direitos e pelas interdições sexuais.

O que nós poderíamos dizer, hoje, dessa definição da família? Que ela tem origem no casamento? Não, a família tem origem no mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou no crime. Que ela seja formada pelo marido, pela esposa e suas crianças, etc.? Não, a família é formada pelo Nome-do-Pai, pelo desejo da mãe e pelo objeto a. Que eles são unidos por laços legais, por direitos, por deveres e etc.? Não, a família é essencialmente unida por um segredo, ela é unida pelo não dito. Qual é o segredo? Qual é esse não dito? É um desejo não dito, é sempre um segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a mãe?

É por essa via que o falo se introduz na família, que é seu deus mais essencial. É por isso que na China existe o culto dos ancestrais, aqueles que estão mortos – que cessaram de gozar – a fim de não perturbar a harmonia da família. Para o neurótico, há sempre alguma coisa incrível no laço sexual entre o pai e a mãe. Que significa o Édipo senão que eles não gozam daquilo que deveriam gozar?

E se o gozo da mãe não foi interditado para o menino, ele ficará toda a sua vida envolvido nesse gozo. Compreendemos bem porque o cristianismo inventou a Santa Família, pois é preciso nada menos que Deus para normalizar, normatizar, o gozo materno. O princípio de unidade, da Santa Família do inconsciente, é o segredo.

 

A família encarnada

Lacan aporta algo fundamental ao ligar o tema da família com a língua para explicar racionalmente o segredo da família. O ponto de partida é que a língua falada por cada um é um assunto de família e que a família no inconsciente é, primordialmente, o lugar onde aprendemos a língua materna. É por isso que o lugar da família está ligado à língua que falamos, quero dizer, que falar, falar numa língua já é dar testemunho de um laço com a família. É por isso que é desejável fazer uma análise na sua língua materna. É possível fazer uma análise numa outra língua, mas alguma coisa então se perde, embora outra coisa possa ser recuperada, pois quando alguém faz uma análise numa outra língua se efetua uma desfamiliarização. Com efeito, nossa própria língua, que nós falamos, é sempre a língua que alguém falava antes de nós. Logo, se a família é uma "encarnação", ela é uma encarnação daquilo que Lacan chama de lugar do Outro. Em psicanálise, o lugar do Outro se encarna na figura da família.

Eu disse que a língua não se "aprende" no sentido pedagógico de aprendizagem; nascemos na língua, no mundo da língua, aquela que nós falamos, e é nisso que a metapsicologia freudiana encontra seus verdadeiros fundamentos. Lacan procurou um fundamento biológico para a falta-a-ser, mostrando que o ser humano nasce inacabado, mais inacabado que qualquer outro animal, pois, para satisfazer suas necessidades, lhe é preciso o cuidado do outro. Os animais também têm necessidade dos cuidados do outro quando são pequenos, mas o que especifica o humano é que ele chama o Outro, que ele transforma em gritos os apelos, de modo que os primeiros gritos da criança são já balbucios, com escansões nos sons que variam de uma língua para a outra; muito rápido, aquilo que dizem as crianças – o balbucio, os barulhos – se distingue segundo a língua em que se banharam.

 

A família, lugar da demanda

Podemos dizer que a família se instala no inconsciente do neurótico porque ela é o lugar onde o sujeito experimentou o perigo. A família, com efeito, é o lugar do Outro da língua, logo, é o lugar do Outro da demanda. A demanda deve passar pela língua - com os efeitos traumáticos que se produzem sobre as necessidades do ser humano – pois, ao passar pela demanda, se produz um desvio das necessidades que serão, então, marcadas por uma falta. É o que Lacan isola nas primeiras anotações de seu texto dos anos trinta "Os complexos familiares". No segundo parágrafo, ele comenta a economia paradoxal dos instintos na família, que ele centra justamente sobre o fato que os instintos são, na espécie humana, tributários de modificações paradoxais das necessidades. Nesta época, ele afirmava que, no quadro da família humana, pode-se observar que as instâncias culturais dominam as instâncias naturais. O que é uma maneira de dizer que, no homem, a língua, por meio do significante, domina tudo aquilo que é natural e que é o que se passa na família humana.

Nesse desvio, seus efeitos traumáticos, são essencialmente o fruto da produção de um resto, aquilo que não se pode demandar. A incidência da demanda sobre a necessidade é a produção de alguma coisa que não podemos demandar porque não podemos dizê-la, de sorte que a consequência da demanda é dupla: o desejo e a pulsão, para chamá-las pelo seu nome em psicanálise. O desejo é a parte implícita do significado veiculada pela demanda, é a parte latente, escondida; o desejo é a parte que podemos interpretar naquilo que foi dito. A pulsão é a parte não interpretável do dito, é como uma doença da necessidade natural: aquilo que nós chamamos de objeto pulsional é objeto de uma necessidade não natural que se manifesta com insistência, mas que não conhece um ciclo de satisfação que lhe permita chegar ao fim. Na satisfação freudiana, a pulsão é constante, ela não conhece o ciclo, e Freud a define como eterna.

No espaço da família, o sujeito faz a experiência da demanda, do poder como poder de sim ou não, ele faz sua primeira experiência de reconhecimento da fala. É também nesse espaço que o sujeito começa a decifrar o desejo – ele me diz isso, mas o que ele quer em me dizendo isso? –, que é a questão sobre o desejo do Outro, questão que nasce primordialmente no espaço da família. Por essa razão, ela é um lugar inesgotável de interpretação, pois cada família tem um ponto de "não se fala disso", não existe família sem esse ponto; isso pode ser o tabu do sexo ou falar da falta de um ancestral. No centro dos assuntos de família encontram-se sempre coisas proibidas.

Bem entendido, há primeiramente o tabu do incesto. É a razão pela qual a família como lugar do Outro da língua, é também o lugar do Outro da lei. Se vocês não compreendem o que é o lugar do Outro em Lacan, pensem a família como encarnação de um espaço onde o gozo supremo – que é, para os dois sexos, gozar da mãe - é proibido; ela é interditada, eis porque podemos dizer que o lugar do Outro, segundo Lacan, é a metáfora da família.

 

O conto familiar

A família é um mito que dá forma épica àquilo que opera a partir da estrutura, e as estórias de família são sempre o conto que diz como o gozo que o sujeito merecia, que ele tinha direito, lhe foi subtraído. É por isso que podemos dizer que alguma coisa não é sadia no gosto pela família e, como dizia André Gide: "Famílias, eu vos odeio" – mas é bem entendido o grito de um perverso e de sua rebelião contra a família enquanto ela propõe gozar da castração. Na família, o gozo é interditado e um gozo substituto é proposto: gozar da castração, quer dizer, gozar do roubo da castração. Quando o paciente fala da família, ele fala do reencontro com o gozo, da perda do gozo, daquele que o substitui; foi assim que pudemos pensar na fórmula de cada sujeito a partir de suas relações de família. Essas fórmulas traduzem, com efeito, o modo pelo qual o gozo foi perdido e como um outro veio substituí-lo.

Lacan escreveu isso como metáfora paterna: a relação do pai ladrão com o desejo da mãe. A metáfora paterna é como a encarnação da substituição da natureza pela cultura; essa metáfora é realizada pela língua, ela própria, pois pelo fato de falar, a metáfora paterna encarna a substituição da necessidade pelo significante. Assim, porque o ser humano deve fazer passar a necessidade pela palavra, isso implica que a suposta metáfora paterna cumpre-se por meio do fato de aguardar o que dirá o outro para satisfazer a necessidade; é nesse momento de substituição da necessidade pelo significante que nasce o fenômeno de desvio que se chama pulsão.

Traduzido por Tania Coelho dos Santos.


 

Notas:

1. Extraído originalmente da conferência de encerramento da I Jornada de Psicanálise, Valência, Espanha, mai/1993. A versão em português baseou-se no texto traduzido para o francês, por Anne Goalabré, publicado na Revista Lettre Mensuelle, n. 250, jul-ago/2006.

 

 

sexta-feira, agosto 05, 2022

É POSSÍVEL SAIR DA BARBÁRIE?

 


BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO


                                        Antonio Cicero

 

 

 

"O BÁRBARO é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie." Essa é uma das mais famosas proposições que se encontram na brochura "Raça e História", escrita por Lévi-Strauss na década de 1950, por encomenda da Unesco.


Dado que, no contexto em que ela foi enunciada, as palavras "bárbaro" e "barbárie" têm um sentido pejorativo, trata-se de uma proposição paradoxal, pois, evidentemente, aquele que a enuncia crê na barbárie do homem que crê na barbárie: o que significa que ele está a chamar a si próprio de "bárbaro".


É obviamente improvável que Lévi-Strauss tencionasse qualificar-se de bárbaro. Por um lado, a frase citada pode ser tida como uma mera "boutade", cujo sentido real, puramente negativo, seja justamente o de desmoralizar a própria noção excessivamente valorativa -melhor dizendo, pejorativa- de "barbárie".


Por outro lado, ela parece ter a intenção positiva de afirmar que o verdadeiro bárbaro é aquele que não considera plenamente humano o membro de uma cultura diferente da sua; aquele que pura e simplesmente repudia as formas culturais, isto é, as formas morais, religiosas, sociais, estéticas, que sejam distantes das formas com as quais se identifica; aquele, isto é, que julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura a que pertence; aquele, portanto, que a etnologia classifica de "etnocentrista".


Sendo assim, o civilizado é aquele que não julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura à qual ele pertence. Que significa isso, na prática?


Três possibilidades se apresentam. A primeira é que o civilizado seja aquele que julgue as formas das demais culturas segundo critérios de uma cultura à qual não pertença.
É evidente, porém, que tal pessoa não deixaria de ser etnocêntrica, tendo meramente posto uma cultura adotada no lugar da sua cultura nativa. Ela continuaria, portanto, a ser bárbara.
A segunda possibilidade é que o civilizado seja aquele que simplesmente não julga as formas das culturas às quais não pertença. Ao invés de ser uma solução, porém, isso seria um problema.


Digamos, por exemplo, que eu, que acredito em direitos humanos, soubesse que uma mulher vai ser lapidada por ser adúltera. Nesse caso, eu certamente me revoltaria contra tal ato, a menos que julgasse que as pessoas em questão, não pertencendo à minha cultura, não eram propriamente humanas. Esta última hipótese, porém, seria exatamente o cúmulo da barbárie.
A única possibilidade que resta é que o civilizado seja aquele que julga as formas das demais culturas segundo critérios que não pertençam a nenhuma cultura particular: nem mesmo à sua cultura de origem.


Se isso for possível, o etnocentrismo é superado, não apenas no sentido convencional do termo mas também no sentido de que, para o indivíduo, a sua própria cultura deixa de ser absolutamente central: e talvez a vitória sobre este etnocentrismo seja uma condição necessária para a vitória sobre o etnocentrismo no sentido convencional.


Ora, tal distanciamento em relação à própria cultura a que se pertence é evidentemente possível, já que se dá na realidade. 
Ele ocorre cada vez que alguém critica uma manifestação da sua própria cultura. O distanciamento crítico é produzido pela razão que, longe de pertencer a qualquer cultura particular, é universal, uma vez que é, em princípio, acessível a qualquer ser humano.


Assim, o civilizado é aquele que reconhece que as convicções mais fundamentais -filosóficas, éticas, estéticas, religiosas etc.- de qualquer cultura, inclusive da sua, são falíveis. Ele reconhece que há muitas diferentes crenças no mundo, e que elas frequentemente se contradizem: logo, que nem todas podem ser verdadeiras, e que é possível até que nenhuma delas o seja.


A razão crítica através da qual ele reconhece isso não é uma crença como as outras.
Ela é 1) a capacidade de pôr em dúvida todas as crenças; 2) a certeza lógica de que qualquer crença pode ser falsa e 3) a consequente certeza de que a afirmação de que uma crença determinada não possa ser falsa é logicamente falsa.


Essa razão crítica é infalível porque, identificando-se com a própria capacidade de duvidar, afirma-se no próprio ato de duvidar de si. É a partir desse infalível princípio falibilista - e não a partir de crença alguma - que se constitui a civilização.

In: antoniocicero.blogspot.com


 
 

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