quinta-feira, junho 18, 2020

ANGÚSTIA



Angústia e castração


Marco Antonio Coutinho Jorge

O tema da angústia é abordado por Freud, do início ao fim de sua obra, por meio de duas teorias bem delimitadas.
A primeira teoria da angústia é baseada essencialmente no ponto de vista econômico: trata-se de uma grande quantidade de energia sexual que invadiu o sujeito, de um grande acréscimo de excitação que se aliviaria por meio da descarga dessa energia sexual. Freud irá falar aí de um coito insatisfatório. A angústia é, então, considerada como um intenso afeto de desprazer vinculado estritamente à sexualidade.
A segunda teoria freudiana da angústia a considera como um verdadeiro sinal de alarme, motivado pela necessidade de o eu se defender diante da iminência de um perigo. Trata-se eminentemente de uma reação à perda, à separação de um objeto fortemente investido. Logo, esta segunda teoria da angústia representa uma releitura que Freud faz a partir do momento em que inclui os novos elementos de sua doutrina: o Édipo e a castração.
A angústia surge aqui basicamente como angústia de castração e está ligada à perda e à separação. Freud passará a considerar a angústia, enquanto angústia de castração, como sendo um dado universal. Mas não deixará de mencionar, numa de suas “Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”, três diferentes possibilidades na origem do afeto da angústia: a angústia real, ocasionada por algum evento oriundo do mundo externo; a angústia neurótica, desencadeada por elementos pulsionais provenientes do isso; a angústia de consciência, produzida pelo supereu. Mas a segunda teoria da angústia em Freud está ligada essencialmente ao eu ponto fundamental que será retomado por Lacan em sua teoria do eu como sendo da ordem do imaginário. Veremos mais à frente que, para Lacan, a angústia será considerada como um sinal do real que invade a ordem imaginária do eu.
Desde Freud e depois com Lacan, o trauma é o exemplo princeps do fator desencadeador da angústia. Trauma que pode ser considerado seja em sua vertente ligada aos eventos do mundo externo, seja em sua vertente ligada à pulsão.
O trauma é aquilo para o que o sujeito não possui uma representação simbólica para lidar com ele, algo que se revela como inassimilável pelo sujeito. Desse modo, o trauma rompe o sentido dentro do qual o sujeito encontra alguma homeostase e introduz uma falta de sentido, um não-senso. Dito de outro modo, o trauma introduz algo de real – não-senso – no imaginário do sujeito, no sentido homeostático dentro do qual todo sujeito tende a se instalar.
Por isso as teses de Otto Rank sobre o trauma do nascimento são objeto de uma resposta por parte de Freud em 1926, em "“Inibição, Sintoma e Angústia"”. Rank pretendia atribuir ao que considerava como sendo o trauma primordial, o trauma do nascimento, um valor principal. Mas Freud se insurge contra essa concepção que considera por demais simplista e indica uma ordem traumática que pode ser reativada por diferentes situações, desencadeando diversos tipos de angústia em diferentes fases da vida do sujeito.
Lacan irá dedicar todo um ano de seu seminário à angústia e é precisamente em relação à angústia que ele irá criar aquilo que considerava como sendo sua única invenção: o objeto a. Se Freud aborda a angústia pelo viés da perda do objeto, Lacan irá conceber o advento da angústia precisamente na relação com a proximidade desse objeto. Para Lacan, o que angustia o bebê não é que o objeto seio falte, mas sim que ele o invada. A angústia surge quando algo vem ocupar o lugar do objeto faltoso do desejo, o objeto a. Ela revela a proximidade do objeto a, objeto causa do desejo, cujo comparecimento significaria a morte do desejo. 
Lacan irá reler o texto de Freud sobre o Unheimlich, o estranho, mostrando que a sensação do estranho e a angústia que ele causa estão relacionadas com a proximidade do objeto, quando no familiar acha-se insinuada a presença da Coisa e do estranho, dito de outro modo, “a sen- sação do desejo do Outro”.
Lacan considera, por isso mesmo, a angústia como sendo o afeto de base, o afeto por excelência, ou, como ele mesmo diz, o afeto que não engana. Todas as outras inúmeras gamas de afetos possíveis são apenas derivados simbólicos e imaginários – amor e ódio, por exemplo – do afeto da angústia. No que ela é a insinuação da Coisa e do estranho, a angústia acarreta a falta de palavras, a falta de possibilidade de simbolização. Nisso reside a articulação que Lacan fará entre a angústia e o gozo. A entrada do sujeito no mundo simbólico se dá através da perda do gozo, que fica para sempre situado fora da estrutura psíquica. Lacan dirá que o sujeito não pode afirmar: “Eu gozo”, pois o gozo é precisamente a falta do verbo, a ausência da palavra, o mais-além do simbólico. Nesse sentido, a angústia é a insinuação, a evocação desse gozo perdido e que, como tal, se revela mortífero para o sujeito.
O conceito de gozo, introduzido por Lacan, terá inúmeras consequências na compreensão de fatos clínicos. Para Lacan, o gozo está ligado à pulsão de morte introduzida por Freud em “"Mais Além do Princípio de Prazer"”. Embora para Lacan, segundo algumas precisas indicações de Freud, “toda pulsão seja pulsão de morte”, as pulsões sexuais se caracterizam por constituir um poderoso obstáculo à pulsão de morte, no que elas investem os objetos a vestidos, revestidos com suas vestimentas imaginárias e construídas simbolicamente para cada sujeito a partir de sua história edípica e de seus avatares.
As pulsões sexuais, ruidosas por natureza, fazem anteparo, por meio da fantasia, a esse encontro com o real da Coisa. Mas a grande lição de Lacan nesse aspecto foi a de nos mostrar que, mais-além dos objetos sexuais cativantes, a pulsão, como vetor único dirigido à morte e ao gozo, se orienta na direção da Coisa em seu caráter mortífero. Exemplo disso na clínica psicanalítica são as toxicomanias graves, nas quais o sujeito abdica de todo e qualquer prazer que lhe seria proporcionado pelos objetos sexuais – i (a) – e é claro que por objetos sexuais deve-se entender todos os objetos investidos libidinalmente e não somente aqueles propriamente sexuais – em prol do (suposto) gozo que lhe é proporcionado pela droga que funciona no lugar da Coisa. Outro exemplo que apresenta um caráter universal são as diferentes formas de masoquismo nas quais a dimensão prazerosa do sexual é cooptada pela dor e pelo gozo: no masoquismo erógeno, diretamente pela dor física; no masoquismo feminino, pela fantasia (e encenação) masculina da humilhação relacionada com a passividade feminina; e no masoquismo moral, pela diversificação quase infinita das manifestações ligadas ao fracasso, ao sofrimento, à culpa.
O caráter avassalador da angústia provém de que ela presentifica, no seio mesmo da estrutura psíquica, aquilo que foi abandonado em sua própria constituição. Uma série de fenômenos corporais -– sensação de despedaçamento corporal etc –- presentes na esquizofrenia atestam aquilo que Lacan designou, na “"Apresentação das Memórias de um doente dos nervos”", como sendo o sujeito do gozo na psicose, em oposição ao sujeito do significante. Trata-se, diz Lacan, da “origem sórdida do nosso ser” que, ao entrar no mundo simbólico e abandonar o sujeito do gozo, se constitui como sujeito do significante.
A angústia deve, então, ser entendida dentro dessa dialética da entrada do sujeito na ordem simbólica, através da operação que Lacan denominou de castração simbólica. Moustapha Safouan pôde afirmar, quanto a isso, numa frase que se pode considerar como lapidar sobre o assunto, que “a única coisa que acaba com a angústia de castração é ... a castração”.
Ou seja, é somente a castração simbólica que instaura a perda da Coisa e funda o sujeito enquanto sujeito desejante, isto é, referido a uma falta. O desejo é sinônimo de falta, assim como a pulsão é sinônimo de insatisfação quanto ao gozo que ela almeja.
A tripartição estrutural introduzida por Lacan desde sua conferência pronunciada em julho de 1953 na Sociedade Francesa de Psicanálise “"O Simbólico, o Imaginário e o Real”" e, a partir daí, jamais abandonada, é aquela que irá permitir uma compreensão da angústia dentro do quadro clínico destacado por Freud em “"Inibição, Sintoma e Angústia"”. Lacan abordará o assunto no seminário de 1974-75, R.S.I., no qual pretende rever uma série de questões sob a ótica, recentemente introduzida por ele, do nó borromeano.
De S.I.R. a R.S.I., a ordem das letras se alterou, o que revela por si só a primazia dada por Lacan ao real no último segmento de seu ensino. Lacan falará aqui da propriedade borromeana da estrutura como sendo a radical indissociabilidade dos três registros psíquicos: real, simbólico e imaginário. No centro extimo do nó borromeano, Lacan irá inscrever o objeto a, furo em torno do qual a estrutura psíquica borromeana se constrói. Ele irá introduzir aqui a noção de trou-matisme – palavra-valise que, ao associar o furo – trou – ao trauma – traumatisme –, revela que o trauma é o furo e, logo, ele é contingencial: não há como não haver trauma. A noção de trauma como contingência já havia sido referida por Lacan no escrito sobre a “Subversão do sujeito”.
Nesse seminário, Lacan irá fazer os registros R.S.I. trabalharem em sua propriedade borromeana para destacar três regiões de interseção correspondentes a três formas de gozo em sua relação com o objeto a: entre o real e o simbólico, Lacan nomeia o gozo fálico; entre o imaginário e o real, o gozo do Outro; e entre o simbólico e o imaginário, situa o sentido a jouisens. Além disso, concebe três diferentes invasões de um registro sobre outro para indicar nelas a trilogia clínica freudiana: a invasão do simbólico no real corresponde ao sintoma; a invasão do imaginário no simbólico corresponde à inibição; e a invasão do real no imaginário corresponde à angústia.
Tais invasões de um registro sobre outro partem de definições depuradas que Lacan fornecerá de cada um desses registros. Trata-se de definições precisas, podemos dizer até minimalistas, que enxugam todos os desenvolvimentos lacanianos anteriores em torno da questão do sentido: o imaginário é definido como da ordem do sentido; o real, Lacan o considera como o avesso do imaginário, o não- sentido ou não-senso; quanto ao simbólico, podemos resumir toda a concepção lacaniana do significante enquanto eminentemente binário (baseada na lógica exposta por Freud em alguns trabalhos e, em especial, em “"A Significação Antitética das Palavras Primitivas”", e defini-lo como sendo da ordem do duplo sentido.
Se o simbólico representa a ambiguidade, a anfibologia, o equívoco, o duplo sentido, o imaginário é precisamente a amputação do simbólico de sua característica primordial, é a redução desse duplo sentido ao sentido unívoco. Quanto ao real, Lacan dirá que ele é o ab-sens, o sentido enquanto ausente, o sem-sentido.
Assim, a inibição é o efeito da invasão do simbólico pelo imaginário, isto é, ela representa a redução do sentido; o sintoma, sendo a invasão do real pelo simbólico, tem como paradigma excelente o sintoma histérico, cujo corpo expressa simbolicamente a verdade de seu desejo; a angústia representa a invasão do sentido pelo não-sentido, por isso seu paradigma mais excelente prossegue sendo o trauma, isto é, a irrupção do não-senso radical do real no seio da homeostase imaginária.
Na neurose obsessiva, segundo Freud, o eu foi formado muito precocemente, o que, aliás, permite a ele situar esta constituição precoce do eu como o único elemento que poderia responder pela escolha dessa neurose. Levando-se em conta a observação freudiana sobre a maior incidência da neurose obsessiva nos sujeitos masculinos e da histeria nos sujeitos femininos – e mesmo que se considere com Lacan não mais a diferença anatômica apenas, mas também as posições subjetivas masculinas e femininas –, podemos observar que o obsessivo (o qual afirma, ele próprio, ter sido muito amado pelo Outro), tendo se identificado com o falo imaginário e constituído seu eu com uma consistência extremamente forte, apresentará mecanismos de defesa muito estruturados, em especial aqueles destacados por Freud: o isolamento, a supressão do afeto e a anulação retroativa.
Os rituais obsessivos, os atos obsessivos funcionam como verdadeiros impedimentos para o surgimento da angústia, posto que ligam toda a energia libidinal para sua consecução. O obsessivo não consegue evitar o ritual justo porque sua função é a de impedir a emergência da angústia e a supercomplexificação dos rituais se acentua sempre nessa direção e com esse objetivo. Por isso, Freud irá dizer que a angústia precedeu os sintomas obsessi- vos, que foram criados precisamente para evitar seu surgimento.
No caso da histeria, os sintomas histéricos convertem toda a energia em sintomas corporais e, por isso, eles impedem igualmente o aparecimento da angústia. Na histeria, o mecanismo do recalque sendo prevalente, a representação recalcada retorna através da conversão, produzindo o sintoma que, ao expressar o desejo, terá revelada na análise a fantasia a ele subjacente. Toda análise de um sintoma (S - R) consistirá, por isso mesmo, no destacamento de uma fantasia inconsciente que suporta o desejo. Freud escreveu dois artigos em 1908, “"Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade"” e "“Algumas Observações Gerais sobre os Ataques Histéricos"”, especialmente para dar relevo a essa relação íntima entre sintoma e fantasia.
Tal fantasia ocupa, na neurose, um lugar estrutural e é efeito do recalcamento originário, a partir do qual ela constitui uma tela protetora em relação ao real e constitui a realidade psíquica. Daí Lacan situar o fim da análise como sendo a travessia da fantasia, ou seja, o acesso do sujeito aos elementos significantes que lhe permitiram fazer face ao real.
Na fobia do pequeno Hans, Freud irá observar que o surgimento da angústia é exatamente aquilo que, por um lado, sucede o surgimento da diferença instaurada entre Hans e a imagem fálica após dois eventos sumamente importantes: primeiro, o nascimento de sua irmã Hanna, e, segundo, o advento da excitação sexual, que Lacan menciona como sendo o despertar de seu pênis enquanto real. O surgimento da pulsão produz o descolamento de Hans de sua imagem fálica, já que ele ocupou o lugar, segundo Lacan, da metonímia do falo imaginário.
Por outro lado, a angústia de Hans é sucedida pela constituição do objeto fóbico - o cavalo, no qual Lacan irá isolar um resíduo dessa mesma angústia. Freud tenta interpretar sem êxito o sentido daquela “mancha negra” no focinho do cavalo, à qual Hans se referia insistentemente junto a seu pai. Lacan dirá que o sentido da “mancha negra” a que se refere Hans é o de que ela remete à angústia que o objeto fóbico, o cavalo, veio precisamente obliterar. Lacan irá recomendar ainda: procurem em todo objeto fóbico esse elemento de imprecisão porque ele está sempre presente. Ele remete precisamente à angústia que o objeto fóbico veio tamponar e que insiste, ainda assim, em se insinuar para o sujeito. φ

Bibliografia
FREUD, S. "“Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade"” (1908), in Obras completas, v.IX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. "“Algumas observações gerais sobre ataques histéricos"” (1908), in Obras completas, v.IX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
REUD, S. "“A significação antitética das palavras primitivas"” (1910), in Obras completas, v.XI. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “"O estranho"” (1919), in Obras completas, v.XVII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “"Mais-além do princípio de prazer”" (1920), in Obras completas, v.XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “"Inibições, sintomas e angústia"” (1926), in Obras completas, v.XX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
JORGE, Marco Antonio Coutinho, “"A pulsão de morte"”, in Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n.26, p.23-39, out.2003. Publ.Círculo Brasileiro de Psicanálise.
LACAN, J. “"Apresentação das Memórias de um doente dos nervos"”, in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. “"O simbólico, o imaginário e o real”", in Nomes do pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, J. O seminário, livro 22: R.S.I., inédito.

quinta-feira, junho 11, 2020

HISTÓRIA DA ARTE



Natureza-morta ou Still Life.


Van Gogh – NATUREZA MORTA COM FLORES - VÍRUS DA ARTE & CIA.



A divisão da pintura em gêneros que tradicionalmente vigorava na antiguidade deixou de existir como tal na era cristã. No decorrer do século XIV, a pintura passou a representar a história profana ou religiosa e /ou uma imagem alegórica, cuja a flexibilidade serviu e serve aos mais variados interesses na história da pintura.
O esforço para compreensão das permanentes revisitações e referências ao gênero em questão, remontam à Grécia Antiga, sendo mencionadas por Vitrúvio quando se refere as Xenias, ou seja, representações de alimentos e por Plínio, o Velho em História Natural, onde menciona várias vezes o notório Piraikos, que igualmente também tratou em suas pinturas de alimentos e sendo comparado ao pintor grego Zeuxis, louvado por pintar uvas tão perfeitas que os pássaros vinham bicá-las. O próprio Zeuxus se deixou enganar ao tentar abrir a cortina pintada por seu rival Parrhasius.
  Na Antiguidade, Vitrúvio alude a Calímaco poeta, bibliotecário, gramático grego que cita a presença de um cesto cercado de folhas de acanto no capitel dos coríntios, lembrando que já na Grécia Antiga esperava-se que os executores tratassem do estudo da vida vegetal. No mundo antigo, os exemplos pertencem ao mundo da decoração, chamados ornatos. Essas plantas representam adornos de flores e folhas às quais o executor conferia permanência e precisão. Assim, o surgimento da tradição temática que podemos denominar gênero, são inspirados no mundo inanimado.
A partir do século XIV-XV, progresso dos processos representacionais, levam ao ressurgimento de temas mais específicos ou gêneros, tais como o retrato, com as imagens dos doadores, a natureza morta com evocações do caráter efêmero dos prazeres e a paisagem, no início do século XVI, parece culminar como tendência realista, com descrições da vida cotidiana, evocando ou não uma dimensão moral.
 No Quattrocento do norte europeu o estilo já havia sido consagrado com Van Eyck. A ideia era consagrar a natureza como obras de exibição independente e de maestria artística. Os gêneros seculares foram fortemente favorecidos pela nova atitude artística, associada a Renascença Italiana.

A atitude humanista sobre a tradição do naturalismo do final do medievo, está presente no auto-retrato de Pintoricchio em 1501, em sua coleção na Capela Baglioni em Spello, junto com o afresco da Anunciação, tema que oferece oportunidade de representar o interior doméstico com todos acessórios típicos de natureza-morta. Pintoricchio segue a tradição, pintando uma prateleira com um Livro de Oração e uma vela. Vemos o painel fictício com seu auto-retrato, acompanhado de inscrições humanistas e cercado de um rosário e pelos instrumentos de pintor, tudo pintado a partir das preocupações religiosas e dedicado à Virgem, pode-se considerar mais um passo na direção e emancipação da natureza morta.
 Na Itália foi dado o passo seguinte em 1506, por Girolamo Casio que, escreve de Bolonha à Isabella d’Este, contando que lhe enviara algumas azeitonas, um quadro de Madalena pintada por Lorenzo di Credi e uma pintura cesta de frutas, feita por Antonio de Crevalicore, e comenta: - entre nós absolutamente singular. Lorenzo di Crevalicore também chamado Leonello, do qual se reconhece dois ou três quadros, foi celebrado por sua pintura de objetos naturais – rivalizando com Zêuxis, cujas frutas enganavam os pássaros.

 A natureza morta foi criada pelo humanismo italiano e pelo realismo gótico. Se a natureza morta é renascentista, ela seria uma reconstrução deliberada das categorias mencionadas nas passagens de textos antigos e dos autores clássicos. Porém, o termo natureza-morta, só apareceu no final do século XVII, quando o gênero estava estabelecido.
No Trecentto italiano, existiam literariamente certa continuidade dos motivos típicos da natureza-morta que, sobreviveram nos mosaicos clássicos e na arte decorativa. Estas decorações tinham a função de substituir objetos ou aspectos que poderiam estar ali. Detalhes de parede fictícias com frases e galheta fazem parte da decoração de Taddeo Gaddi na Igreja Santa Croce, a semelhança desse detalhe e um oriundo de Pompéia.
 A transição da cornija natural para a cornija pintada, estão simuladas na capela Capela de Arena de Giotto são precursoras do Nicho de Gaddi. As perdizes de Jacopo de’Barbari, faziam parte de um conjunto das decorações das capelas, tratadas com tal preciosismo, colocando o espectador diante de ilusões ópticas ou trompe l”oel, muito populares no início do século XIV.
O ilusionismo apareceu em finais da Idade Média e tornou-se um princípio criativo importante para a história da natureza-morta como gênero. Essa variante do novo empirismo na arte, no século XV já não se baseava em manuais de modelos, mas baseavam-se cada vez mais na experiência e na observação.
Leon Battista Alberti no livro segundo do seu tratado Da pintura de 1437, postulava que “se a pintura tem por objetivo representar as coisas visíveis, temos que perceber como vemos as coisas”. E Leonardo da Vinci afirma no seu Livro Sobre a Pintura: “O espírito do pintor deve ser como um espelho que toma sempre a cor do objeto que está em frente”. Noutro momento, acrescenta “recomendo a um pintor que nunca imitar o estilo de outro, porque no que respeita a arte, será chamado de não de filho, mas sim de neto da natureza”. A reprodução minuciosa dos objetos, tendo em conta como se realiza o ato de olhar, é uma das principais características da pintura holandesa e francesa do século XV, onde encontramos os primeiros elementos.

Já na Europa latina e católica ou nas regiões ocupadas pela Contra-Reforma predominam a pintura histórica e religiosa, mas nas regiões atingidas pela Reforma, os temas religiosos eram proibidos, e assim os pintores voltaram-se para o retrato, cenas de gênero e as naturezas-mortas.
 O sucesso da natureza-morta de cavalete se deve ao atrativo religioso da vanitas, pois além de permitir exibir virtuosismo, manifestam através deslocamentos e novas composições, ativam novas narrativas enlaçadas pelo artifício das contiguidades. A aparência aleatória de montagens heterogêneas em seu conjunto, revelam fluxos relações subjacentes de significados e questionamentos profundos, simbólicos e alegóricos.
Dado o poder que a arte tem de despertar a fruição sensorial, suscita nas mentes religiosas, a necessidade de se opor a essa inclinação pecaminosa. O espírito puritano exige sobriedade: daí o relógio na parede ou na mesa, simbolizando a temperança, parece fora de lugar entre alimentos e objetos preciosos amontoados no estilo natureza-morta holandesa.  
Toda pintura de natureza-morta, simboliza uma vanitas ou uma advertência, guardam as passagens do tempo e da presença do divino. As temáticas variam em torno da ambição e finitude ou desejos e sonhos simbolizados pelas atividades fúteis como jogos de cartas e correspondências amorosas, moedas, joias, mascaras e espelhos, etc. Quanto mais enganosa é a ilusão, mais convincente é o sermão sobre a aparência e a realidade. Toda natureza-morta é ipsofacto, uma vanitas.
Por volta de 1090, São Bernardo definiu os seres humanos a partir da oposição de duas categorias os vani ou os avari, aos símplices ou devoti. Os vani eram opostos aos humildes e buscavam a gloria de si mesmo; ao contrário os avari, que se consagravam a Deus, gostavam da vida e do mundo. Era necessário não cair às tentações de deixar casas, pomares, jardins e objetos de adoração, no momento da morte e essa é a tentação da avaritia ou amor pela vida manifestada no apego pelas coisas, que resistiam à morte.
A natureza-morta comparece também como memento-mori, constatando a finitude da vida e que tudo é perene. A compreensão da decadência da vida, aparece na arte pela via de símbolos mórbidos desde sempre, sob a forma de caveiras, esqueletos, insetos, moscas e ratos como símbolos do tempo devorador, demônio nos tímpanos das igrejas medievais, nas Bíblias exuberantemente decoradas, nas miniaturas das iluminuras, nos saltérios, nos livros de horas, nos bestiários, nos hagiológicos, Livros da Revelação, extraídos do Novo Testamento, todos ricamente decorados.
 Mas o significado dos símbolos mórbidos, presentes nas taças e decorações das mesas, antes de aparecerem como arte apenas sepulcral ou fúnebre, eram um convite para se gozar os prazeres da vida enquanto durassem. A ideia de Vita brevis eram puro hedonismo, e só mais tarde passou a ter significação moralista, de resignação e penitência. Essa evolução se deu no Egito Antigo, assim como nas civilizações que resultam da Antiguidade Clássica, tanto ocidentais como orientais. A partir da última fase da Idade Média, os esqueletos e caveiras falantes tornaram-se um símbolo da ideia de memento mori, e recobriu todas esferas da vida cotidiana.
A adoção da divisa de Lucrecio representa uma radicalização extrema das ideias cristã de ars moriend, tal como foi divulgado no final da Idade Média com a história moralizadora Os Três Vivos e Os Três Mortos, e nos rituais da dança macabra, foram gravadas sobre madeira, tratados de literatura edificante e em obras religiosas como A Imitação de Cristo de Thomas Kempis. Durante a Idade Média, a morte ainda não representava horror nem medo graças, o apoio coletivo das comunidades. Além disso a teologia medieval prometia ao crente o conforto de uma vida melhor, a que teria acesso logo após seu termino.  Mas, a partir do século XIV, a morte ganhou novas tintas com tons cada vez mais macabro descrita pelo clero, tirando inclusive partido do horror da peste. Talvez a justificativa de tudo tenha sido, a profunda crise que a Igreja passava com o Grande Cisma do Ocidente, resultando a ruptura da Igreja em duas igrejas papais. Foi então, introduzido na teologia o drama da agonia, quando o crente era denunciado na sua qualidade de pecador, só alcançaria a salvação se passasse os últimos anos de sua vida em penitência contínua. Neste contexto que a confissão de boca ou auricular (confessio oris) diante de um confessor foi instituído como único instrumento de absolvição (Ego te absolvo) introduzida nos séculos XIV e XV como método de controle da vida dos leigos.
O memento mori, foi muito popular no Barroco europeu, em tempos  de pandemias, de guerras e de forças que o ser humano não  domina. Estas representações evocam a reflexão sobre a vida terrena, sua transitoriedade e transcendência, servia de advertência cristã de que vaidades das vaidades, tudo é vaidade. Os elementos que se referem   apresentam como mera ilusão e servem como sermão sobre a aparência e a realidade do mundo e da vida.
O fato das províncias do Sul dos Países Baixos permanecerem sob o domínio espanhol dos Habsburgos tornou inevitável que a arte flamenga e holandesa continuasse a influenciar os artistas espanhóis. Por exemplo, as cenas de cozinha que haviam sido introduzidas como gênero por Aerten e Beuckelaer, foram retomadas por pintores como Diego Velazques. Antonio Palomino e Francisco Pacheco chamaram bodegones aos quadros da primeira fase de Velazques em Sevilha (1617-23), ambos historiadores da arte sublinham o caráter inovador dessas telas. Palomino estabeleceu uma relação entre Velazques e o pintor da Antiguidade Piraikos a que Plínio tinha apelidado de rhyparographos, que significa pintor de temas vulgares ou comuns.
Nas telas de juventude de Velazques é perceptível a influência do caravaggismo. Também Caravaggio apreciava o fundo espacial sombrio no qual a luz incidisse lateralmente, iluminando pessoas ou objetos e projetando fortes sombras tenebrista à fatura.
As naturezas-mortas, na pintura barroca espanhola convertem-se em vanitas. Na tela de Juan van der Harmen, intitulada Natureza-Morta, de fundo escuro, tinha o efeito tenebrista, composto com cesta de pães, figos, linguiças, potes de mel, etc, traz do lado esquerdo duas caixas superpostas, apoiadas sobre a mesa, permitem perceber uma certa instabilidade. As caixas de madeira, traduzem um simbolismo disfarçado, de uma estrutura religiosa profunda. As caixas de madeira nas naturezas-mortas simbolizavam o cofre onde se ocultava a Divindade, muitas vezes próximas às representações da Virgem Maria, nos séculos XV e XVI.
As naturezas-mortas com frutos, uvas, peras e maçãs, eram frequentemente alusões ao sangue de Cristo. À doçura da Sua encarnação e ao amor de Cristo pela Sua Igreja. Numa noz aberta, roída por um rato, símbolo do mal, a casca significaria a madeira da cruz e o doce miolo da noz, a vivificante natureza de Cristo.
A palavra holandesa Stilleven, vai dar origem a denominação inglesa Still Life, aparecendo no século XVI. Das línguas de origem latina veio a expressão francesa nature morte, para definir a categoria de objetos sobre temas prosaicos, ao invés de elementos incidentais.
Na época áurea da pintura flamenga e espanhola do século XVII, os temas incluíam flores, frutas, e outros alimentos, animais vivos ou mortos, vasos recipientes, tecidos drapeados, instrumentos musicais, livros, armas, coleções de história naturais e gabinetes de curiosidades. Obras alegóricas incluíam objetos representativos dos cinco sentidos humanos e outros elementos, associados com temas do gênero pictórico vanitas, tais como caveiras e ampulhetas, símbolos da transitoriedade da vida e da irrelevância dos bens materiais.
Um fato histórico fundamental que, acompanha o interesse dos artistas pela natureza-morta é a melhora das condições agrícolas na Europa. Nos séculos XVI e XVII, o mundo europeu substitui o sistema precário de plantio e cultivo da terra, por um modelo mais moderno e diversificado, o que possibilitou o crescimento de novas espécies de frutas, legumes, flores e plantas ornamentais. A natureza-morta desabrochou como objeto encenado, composto numa moldura de tela para se tornar um potente exercício de cor, forma, luz e sombra, perspectiva e textura.
Nas artes plásticas a nova prosperidade resultante da modernização nos métodos de produção agrícola refletia-se esteticamente na exaltação da produtividade da terra. Antecipando as teorias dos Fisiocratas, a pintura flamenga já espelha a ideia que a terra podia produzir riqueza e felicidade, e que o trabalho humano era necessário para atingir esse objetivo.
Jacob Jordaens (1622), na sua Alegoria da Fertilidade, presta homenagem à ninfa Pomona, rodeada por um grupo de sátiros e divindades báquicas dos bosques e campos que carregam produtos agrícolas, oferecendo uvas. Havia uma dama, provavelmente a comanditária da obra que queria ver o aumento da produção de sua propriedade homenageando os modelos da mitologia antiga.
Apesar natureza-morta ser vista como gênero pictórico menor e menos sério ao ser definido por ocasião da fundação da Academia Francesa no século XVII, criada por Charles Lebrun, quando seus estatutos estabeleciam uma escala hierárquica entre os gêneros de pintura a serem ensinados. Às naturezas-mortas foi atribuída como categoria artística mais baixa, independente do debate artístico e estético, por tratar apenas das coisas inanimadas, ocupando o lugar apenas no âmbito do ensino. Esta hierarquia foi estabelecida a partir de normas estéticas alheias à arte, segundo o qual a realidade se organiza partindo do inanimado, provido ou não de corpo, passando pelo animado até chegar ao homem, possuidor de uma alma imortal e é a obra prima da criação. Afinal a grande arte ocupava-se de temas grandiosos como bíblicos, mitológicos, nacionais, etc.
       Os objetos do cotidiano e cenas domésticas não eram considerados temas adequados para um projeto artístico sério. Mais com o decorrer do tempo ressurge a discussão sobre os limites formais e a autonomia da arte.  E com desenvolvimento do modernismo no final do século XIX e século XX os cânones da academia são implodidos e com eles o simbolismo deu lugar ao empirismo, noções de sublime foram alteradas para incorporar um grande respeito pela natureza-morta.
Especialmente com as vanguardas artísticas surgidas com cubismo analítico e sintético, a arte alça voo através de novas experimentações, compondo a obra por fragmentos e utilizando-se da Colagem, libera o artista do julgo da superfície e dos cânones da Academia. Assim, utilizando na tela elementos retirados da realidade, colam pedaços de papéis, tecidos, madeiras, concebendo a pintura como construção sobre um suporte, embaralham as fronteiras entre a pintura e escultura e desta feita, a natureza-morta, reaparece perfeita para esse momento, possibilitando novas ficções.
 Cézanne desconsiderou as convenções formais básicas e apontou novas possibilidades para o gênero. Picasso, Gris e Braque, valeram-se de novas faturas e dispositivos ilusionistas para questionar e romper com o espaço perspectivo. Por meio de colagens e assemblage, o gênero ganhou tridimensionalidade pela primeira vez. Em 1912 Braque realiza Fruteira e Copo, e neste mesmo ano Pablo Picasso realiza Copo e Garrafa, parte em papel e desenho em carvão. Esse gênero foi usado pelos movimentos surrealistas e dadaístas e em especial por Duchamp e representação do cotidiano ganhou destaque no século XX.
Nas pinturas de Giorgio Morandi, a natureza-morta constitui o corpo de sua obra, cujo repertório é composto de garrafas sobre a mesa em estudos metafísicos de composição, silêncio, meditação.
No Movimento Pop, especialmente o norte-americano, encabeçado por Andy Wahol, as naturezas-mortas aparecem em seriações de produtos, materializando uma potência ideológica nas imagens de natureza crítica à industria de consumo, como também à invenção desenfreada de novos produtos de consumo. A natureza-morta dialoga com a história do ocidente e seus sistemas estéticos abrangentes.
Na arte contemporânea, o conceito expande-se, numa proliferação de suportes e, maneiras de lidar com a forma, sentido e atitude. A aparente banalidade dos objetos ao alcance da mão incita a discussão da vida, da morte, e das possibilidades de combinações latentes a serem manipulados, silenciados e imobilizados. A natureza-morta é um coringa para mesclar-se às densas questões que tangenciam a existência humana. A natureza-morta, estabeleceu-se em uma sociedade rica burguesa, cujos valores refletiu; mas a partir da segunda metade do século XX, os artistas passaram a criticar os valores contemporâneos, buscando subvertê-los, olhando os próprios objetos, buscando uma reflexão sobre a condição da sociedade de consumo.
A pergunta pertinente referente ao gênero, em questão é que ideias e aspirações artísticas eram e são expressas através dos variados objetos do cotidiano dignos de serem pintados? Mesmo porque, os objetos pintados numa natureza-morta não são de meros documentos da história da cultura, mas, deve ser tratado como evidências de mudanças de consciência e de mentalidade. Infirmam-nos, muitas vezes direta ou indiretamente sobre mudanças históricos de comportamentos, às capacidades de percepção humana, e sobre as transformações de consciência do homem no que tange à morte, ou sobre a gradativa penetração de novas perspectivas científicas no modelo tradicional de ver o mundo. Para encerar, em grande parte, o esforço da cultura vai em direção da compreensão das fontes e das permanentes “revisitações” narrativas que as obras de arte permitem.
           
 Bibliografia:
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FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa: elementos essenciais de sociologia da arte. Trad. Mary Amazonas Leite Barros.-S.P., Perspectiva, 1970.

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Lígia Czesnat
Professora Mestre em História aposentada da UFSC

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