sexta-feira, maio 23, 2014

Limites



Escolha inconsciente

Obrigado pelo convite, que me rendeu o prazer de estar com vocês nessa mesa, por poder ver se algo do trabalho que desenvolvemos pode entrar em diálogo com o que acabamos de ouvir e também com o que tem sido discutido, especialmente no plano da politica, nesse encontro.

O título original “sempre é possível inventar-se um rumo novo, mesmo quando o pior parece ser a única escolha” foi pinçado por Maria Luiza de um texto meu, mas essa frase dá a impressão que é uma escolha consciente. Talvez fosse melhor mantê-la, corrigindo-a, porém, afirmando que “algo em nós” sempre pode escolher outra coisa. Assim trazemos um pouco do “não somos apenas aquilo que somos oficialmente ou conscientemente”, que é a hipótese do inconsciente.

Quanto ao trabalho que realizamos na favela remeto vocês ao livro que se chama “Psicanálise na favela” de nosso projeto chamado Digaí Maré e que já dura cinco anos. Minha participação aqui supõe que esse trabalho teria uma experiência própria com usuários de drogas que pudesse contribuir com a discussão deste evento.

Nossa experiência foi a de abrir uma porta dentro da favela. Não fora, mas bem lá dentro, da maior favela do Rio, a Maré, e de uma de suas comunidades, Nova Holanda. Atendíamos crianças de um programa de educação da Redes-Maré, nossa instituição parceira, mas além disso, a porta ficava aberta ao que viesse. Os que vieram sempre foram predominantemente as criança, as mãe e as avós que são os que estão lá. Os adolescentes, os infratores e os que estão em outros lugares não vêm.

Por isso, o que vou apresentar toca apenas muito tangencialmente o tema deste encontro. É o resultado da elaboração coletiva do Digaí e me aproprio dela um pouco ilegitimamente, porque não estou mais na linha de frente do trabalho há um bom tempo, como reflexões em aberto e não exatamente como propostas concretas que deem subsídios àqueles que se esforçam para melhorar a nossa vida em outro plano mais político do que, no meu caso, mais clínico.

Então, “algo escolheu em mim” o tema dos limites. Todos dizem hoje que é preciso dar limites. Todos gostariam de possuir a chave para isso. Até sabemos porque é tão difícil: declínio dos ideias etc. O difícil é saber estabelecer um ponto de parada na escalada desmedida do consumo, da adição às drogas, ou simplesmente da falta de educação à mesa. Algumas vezes, em nossa clínica, acompanhamos a transformação de um movimento subjetivo desmedido em situação limitada. É uma obrigação ética nos nossos tempos, tentar entender o que aconteceu. Trago uma situação em que algo assim ocorreu. 

Externo e interno
Antes, porém, algumas considerações. Se algum limite nos interessa, deve ser um limite interno. Limites externos funcionam, mas têm sua limitação própria. Se resumem em contrapor “de fora” ao movimento que se quer coibir ou desviar um obstáculo. Dependendo de algumas situações é preciso, porém, aumentar muito o volume desta contra-força limitadora e em muitas situações, das mais comuns quando o assunto é droga, ela torna-se claramente de cunho policial e pode ter de ser aumentada até que haja risco de vida. O limite externo é nossa noção de limite básica. Tendemos a assumir que dar limite é isso: aumentar o volume, trancar bem a porta, bater mais forte e assim por diante.
O que seria um limite interno. “Interno”, aqui, não diz necessariamente respeito a algo do interior do corpo, porque se essa coisa for vivida como exterior a mim, continua sendo externa. A diferença do externo e do interno não se superpõe àquela entre dentro e fora do corpo ou da cabeça. Imaginem uma mãe que tenha dito toda uma vida o que fazer ou não fazer à sua filha a tal ponto que hoje, mesmo ela já estando morta, a filha quase lhe ouça falar dando conselhos etc. Algo muito próximo ao que costumamos chamar de consciência moral. Se ela for assim, do tipo “grilo falante”, mesmo bem no interior da alma, ainda a tomaremos como um limite externo. Creio que é possível ser mais exigente com relação ao que vamos chamar de “Limite interno”.

Como primeira ideia, proponho que levemos esta exigência ao seguinte nível: terá que ser algo que surja no próprio movimento em direção ao objeto almejado. Algo que se insere de tal maneira nesse movimento que ele sossega. Se conseguirmos circunscrever isso um pouco, vemos o quanto pode ser útil para o trabalho com a drogadição, mas não apenas. Já tentei, por exemplo, pensar o limite interno da alegria de uma festa. Como sair da festa? Como parar o movimento baladeiro, se é sempre possível, mesmo com a festa encerrada, sair de uma para entrar em outra, e outra, e outra e só parar por pura exaustão. Seria possível que algo, no próprio prazer da festa pudesse interromper esse movimento tão violento e incoercível, que não sossega e que não cede a não ser diante da falência corporal, a única coerção externa que resta?

Gozo e prazer
É preciso, então, delinear um pouco melhor o que estou chamando de “movimento”. Vou propor outra oposição, que vocês já devem conhecer, pois ela é muito presente em se tratando de drogadição: entre prazer e gozo.
Prazer e gozo fazem parte de nossas vidas. A experiência do prazer é clara, conhecida, a de gozo é menos evidente, especialmente porque vem junto com o prazer. Digamos que temos um tanto de energia, um tanto de vida que pulsa em nós. Ela pode se orientar com relação a alguma coisa que permita que essa vida nos percorra, atravesse e nos deixe. O prazer envolve se alienar a um objeto que nos faça descarregar esse tanto que nos habita, dando lugar a uma redução da tensão. Isso é o prazer.

Como se vê ele envolve todo um sistema, toda uma montagem que Freud postulou como princípio do prazer. É importante, pois o prazer, deste ponto de vista não é exatamente uma coisa, um dado biológico, por exemplo, mas um funcionamento, um modo de estar no mundo. J. A. Miller designava-o como um programa, no sentido de programa de computador.

Porém, este programa guarda um bug. Seu funcionamento é acompanhado por outra maneira da vida habitar o corpo. Há um tanto de vida que não se descarrega, que se retém e que mantém máxima tensão.

Não são duas coisas completamente diferentes, são duas maneiras de a vida nos habitar. Uma, intermitente, mais ou menos limitada, e gostosa – o prazer. Lembrando que o principio do prazer em si não precisa ser gostoso, é só o fato de que ia indo e... foi! [risos]. E outra, que tem como nome lacaniano “gozo”, nome lacaniano para o que Freud chama de além do princípio do prazer que é: nem sempre vou em direção à redução da tensão, algo fica e insiste, e isso é grande. Também precisamos disso. Esse excesso faz igualmente parte da vida.

Podemos agora retomar o título que nos reúne: “por que parar se é tão bom? Este “bom” deve ser lido com essas duas inflexões: o bom do prazer e o bom do gozo. O prazer é a ênfase nos primeiros tempos de uso de uma droga e o gozo é o que predomina com o tempo. O prazer é quase sempre reconhecido como agradável, e o gozo como uma urgência nem sempre prazerosa. Melhor dizer como a Lígia: é uma vivencia acéfala, uma experiência sem subjetivação.
Nossa aposta, do limite interno, seria a de imaginar a possibilidade de uma alteração no desejo que nos fizesse passar do gozo para o prazer, ou no mínimo, que se inserisse no movimento do gozo levando à sua reorientação. Será possível?

A maneira mais direta de fazê-lo parece ser agir sobre o objeto. É um pouco o que se faz, creio, quando se oferece para a juventude maneiras de escoar a tensão em projetos de capacitação, por exemplo. No entanto, as mais bem sucedidas são as que oferecem não apenas uma mudança de objeto, mas também a do contexto. Passar da droga e de seu contexto policial à dança, por exemplo e seu contexto artístico - em vez técnico em farmácia ou eletrônica, a música, o teatro, ou mesmo cursos de culinária. A delimitação é difícil, mas há alguma coisa nesses objetos de prazer coletivizado, que funciona como alternativa por tocar o gozo mais que o prazer.

É um excelente caminho, mas nós vamos ficar na exigência de procurar o que poderia alterar o gozo a partir dos elementos próprios de seu movimento. Suporemos que nenhum gozo é puro, mas sempre organizado por objetos do mundo ou, indo um pouco mais além, por uma rede constituída pelo que Lacan chamou de significantes. Os significantes do gozo de um sujeito comandam sua escolha de objeto, incluindo aquela que lhe faz optar por objetos mais aceitáveis, fundamento da estratégia da redução de danos.

Então, vamos à situação clínica. Quis uma situação que já tivesse sido publicada. É uma situação simples. Não especialmente dramática apesar de violenta. O essencial é que ela nos dá a certeza de que naquele grupo – são atendimentos em grupo – houve interrupção de um gozo. Um modo de estar no gozo virou ao princípio do prazer.

Antonia e a cicatriz
Insisto: tanto a situação quanto a elaboração que vou lhes propor é fruto do trabalho coletivo do Digaí. O tema inicial do grupo era violência, contava histórias e mais histórias de uma violência infinita na favela para horror da jovem, psicanalista em formação, que coordenava o grupo. Isso só tem a ver com o assunto lateralmente, mas é bom assinalar que no momento em que essa pessoa, se habituando um mínimo com o quotidiano da favela, pôde não acreditar em tudo, tudo; quando ela pôde supor que havia algum exagero, pôde assim não mais se deixar fascinar com aquele horror, o grupo mudou de tema.

Em vez da violência generalizada começaram a aparecer violências particulares, especialmente a de uma das integrantes do grupo – era um grupo de mulheres – sobre seu filho, o quanto ela batia e o quanto aquele filho para ela era o sinal daquilo a ser rejeitado: “ele é impossível”, “insuportável”, a ponto de chocar as outras. Situação complicada de uma violência que não parece se limitar nem pelo fato de os outros do grupo e dos amigos lhe dizerem “que absurdo!”, e nem mesmo o Outro social. Sim, porque pelo fato da violência nesse primeiro filho, o outro que ela dizia amar muito, filho de outro homem, com quem vive, corria o risco de lhe ser tirado pelo Conselho Tutelar. Nessa situação houve a certeza de que alguma coisa mudou na relação dela com seu filho e que a violência mudou claramente de perfil e tornou-se aceitável. O gozo da violência sobre o filho mudou.

Um pouco de história: ela tinha sido abandonada com a avó pela mãe. Não é nada raro em seu meio, mas eram seis filhos e ela fora a única a ser deixada com a avó. A vivência desse abandono foi sempre muito forte, muito violenta, para ela. Esta violência era registrada em uma cicatriz que ela tinha na perna originada de um defeito de nascença, que a mãe também tinha. Uma tia caridosa, que gostava e cuidava dela, a fez operar, assim como a mãe tinha sido operada. Ela tinha, portanto, uma cicatriz análoga. Só que para ela, em vez de aproximá-la da mãe, assinalava seu abandono, já que a elucubração nada racional, mas que a criança havia fabricado para si, era a de que exatamente por ser ela e única que tinha esse defeito é que ela tinha sido abandonada.

Essa cicatriz soletrava parra ela a profunda injustiça e descaso do modo como o Outro tinha sido seu parceiro na vida. É como se fizesse o link entre sua mãe e Laa. Seu filho, esse sim identificado como sendo “impossível” assim como a mãe, lhe permite que o Outro, em vez de grande e absoluto, dono de uma violência desmesurada de abandono, se torne agora um objeto, resto o a ser descartado, filho a ser “corrigido”. Esse menino precisa apanhar, porque tinha tudo de ruim da família da avó. Cada passagem ao ato violento é quase como um jogo terrível de fort-da. Do mesmo modo que o neto de Freud atira e traz para si um carretel, ela ao agredir seu filho passa de objeto do Outro a Outro de seu objeto.

Esses são os dados de início. O que vemos no final é totalmente diferente. Essa cicatriz passa a desempenhar outro papel, o de marca de identificação entre ela, a mãe e o menino, estabelecendo uma linhagem que retém o gozo que o gesto violento encerrava. Estou economizando todo um mundo de detalhes do processo, mas vamos assumir que é o que aconteceu nesse caso. A cicatriz, ao invés de ser o sinal do abandono, passa a ser o sinal de que eles têm algo em comum, o que faz com que o menino não tenha mais necessariamente que apanhar. O abandono e a rejeição que a ligava à mãe passam a ser nomeados de outra maneira e ela para realmente de bater. O menino começa a fazer parte de uma nova família em que há ela, os dois filhos e um novo homem.

Como isso se fez? Como uma mulher a que nenhuma pressão, nenhum limite externo fazia medo, a ponto de estar à beira de perder a guarda dos filhos, passou e se conter? Em que o atendimento no grupo levou a essa mudança? Quanto a isso, vou deixá-los no vazio. Muitas hipóteses causais podem ser feitas: ter deixado o marido, o papel do namorado (que apareceu depois que ela deixou o marido), as interpretações no grupo etc. Remeto vocês ao livro. Gostaríamos de saber como foi porque teríamos a impressão de possuir uma chave, que poderia ser aplicada a outros casos de violência. Engano. Se estamos no plano da singularidade, não é nada garantido que possamos replicar o que aprendemos com Antonia. Então o “como” foi a passagem a um novo funcionamento me parece tão ou mais importante do que o “porque” funcionou. Nem tanto o que deu limite e sim o que passou a ser limite.
Importa tentar entender como a cicatriz, em novo papel, funciona como limite. Nossa hipótese: é a de que é um limite interno, um ponto de virada em que o gozo torna-se prazer.

Limites
Esse limite interno associa-se com o fato de que Esse limite interno associa-se com o fato de que ela passa a se identificar com a mãe. A cicatriz era a marca de uma separação entre as duas, com a significação de abandono e rejeição. A seguir ela passa a valer como traço identificatório, assinalando uma correlação entre os integrantes da família. Não tenhamos a ingenuidade de supor que era só apontar essa possibilidade para ela. Essa interpretação da cicatriz não lhe era possível até então. A mãe era uma figura de absoluto horror, da violência real, ou, nos termos de Lígia, de uma violência absoluta de exclusão. Não havia identificação possível. Seria como abordar alguém tomado por uma experiência de gozo, por exemplo, com a droga, e dizer: “Larga isso, pois não te faz bem”.

Não tenho a resposta, apenas uma elaboração do que poderia ser a função da cicatriz neste processo, deixando claro que a cicatriz é apenas um dentre os inúmeros elementos do discurso dela, que destacamos para sintetizar uma série de coisas. Dadas essas ressalvas, tomar a cicatriz como limite interno da série histórica de violências da existência dessa moça não é compreensível se não utilizarmos outra concepção de limite que não a de todo dia.
Participam dessa esquematização da relação entre a cicatriz e o limite interno ao gozo algumas noções fora do senso comum. De fato, Lacan parte do princípio de que a psicanálise lida com coisas que não são normais. Não são coisas do dia-a-dia, aquelas sobre as quais a gente se entende, são aquelas sobre as quais a gente não consegue falar. Então, quando dela se vai falar, é sempre complicado. Pois bem, para falar desse limite interno, ou da experiência do que seria uma limitação interna do gozo, que não exatamente a da exterioridade, Lacan se apoia na matemática, pois ela também delimita coisas fora do compreensível, do senso comum, o que fazia com que Russel já a definisse como uma “ciência sem consciência”.

Não é nenhuma matemática supercomplexa, nem serão precisos fórmulas ou números. Basta-nos a definição de limite de um livro de introdução, como esse, justamente de Bertrand Russell, “Introdução à filosofia matemática”.
Nossa definição habitual de limite não inclui o limite. Quando dizemos, como defini acima, que o limite é um obstáculo, ele se torna o ponto de conclusão da série, mas externo a ela. Caminho até atingir o limite, e esse “atingir” não inclui o obstáculo como ponto de limitação. Ele é externo, como disse no início dessa fala, é um externo “tampão”, um externo que se adiciona como uma rolha à garrafa. Isso pode se representar assim:
[n, n’, n’’] L
Os colchetes marcam que os dois extremos da série, tanto o do início quanto o do final, são limitados por obstáculos externos, não incluídos. Isso compõe o que a matemática chama de uma série fechada. Esse limite ausente, “L”, compõe uma série fechada, a partir da qual ele só pode ser suposto, mas não contabilizado. Esse limite, suposto, mas que sustenta uma série fixa, rígida, é o limite de todo dia. O limite, na matemática, é definido de outra maneira.
Na noção de todo dia, o único jeito de “dar limite” à violência seria com um elemento que se contrapõe à série – o Conselho Tutelar, no caso de Antonia. Desse ponto de vista, é impossível imaginar que uma cicatriz faça esse papel, seja o limite. No entanto, isso é possível para nós porque, na matemática, o limite é definido de saída. Ele é definido explicitamente como aquele elemento que a série, por definição, não poderá incluir. Cada elemento da série se define por poder ser tudo, menos igual ao limite.

Parece a mesma coisa, mas tudo muda. Agora o limite não é suposto e ausente, mas presente a cada ocorrência de um novo elemento, jamais incluído em si, mas coordenando todas as inclusões possíveis. Como diz Badiou, ele é o “Outro da série”.

Abertura e desperdício
Essa definição de limite sustenta outro tipo de série, não mais fechada, e sim aberta, pois qualquer ocorrência é possível, desde que não seja a do limite. Ela pode ser representada do seguinte modo:
] n, n’, n’’...n’’’ (se n ≠ L) [
Os colchetes invertidos marcam a abertura da série. Antes, todos os elementos se davam as mãos, unidos pela mesma regra, a de que o elemento posterior está sempre um passo mais próximo do encontro com o limite que o anterior. A passagem de uma série à outra, o “passo” de que acabo de falar, é o que diferencia os elementos, mas, ao mesmo tempo, os une e fixa. Agora, eles não precisam mais de uma relação fixa, pois cada um se define com relação ao limite.

Boa parte de uma análise é isso. Partimos de um “se eu pudesse retirar de meu caminho esse obstáculo, teria um infinito de coisas a fazer”, ou: “se eu não fosse limitado, se o limite não me impedisse...”. No caso de Antonia: “se a minha mãe não tivesse me abandonado, minha vida seria outra”. Todas as minhas infinitas possibilidades de existência estão impedidas por esse limite. Só posso me chocar impotentemente contra ele, caminho de uma deprimida ou suicida violência contra mim mesmo, ou então reproduzir incessantemente essa violência, caminho evidentemente trilhado por Antonia.

Quando tomamos o limite de outra maneira, ele não é mais um impedimento a um lugar fora de alcance, mas a definição de um impossível da série, que não é nem dentro, nem fora de alcance, mas norte invisível, grandeza negativa. Ele é o marco de uma exceção reguladora do meu sistema. É o que a significação “somos assim”, assinala. Ela subentende um “não há como ser de outro jeito” que permitiu até que os vários componentes da família pudessem ser marcados da mesma forma, sustentando a possibilidade de um pertencimento pacificador.

Em vez de infinito ficar bloqueado pelo limite, em vez de estarmos separados do infinito pelo limite, em vez de “não posso ser mulher, não posso ser mãe, não posso ser nada porque minha mãe me abandonou”, passamos a “nunca poderei ser de outro jeito, isso posto, tudo posso fazer”. É o que essa cicatriz pode vir a simbolizar ou sintetizar.

Dada uma situação de impotência, em que um infinito de coisas está impedido, um objeto complementar, um filho, neste caso, uma substância em outro, pode encarnar o obstáculo maior: o veneno e o bálsamo que me enlouquece e me tira de mim. “Se eu conseguir emendar, esse menino tudo será corrigido”. Ultrapassar o obstáculo, às vezes pela sua destruição, é o único modo de alcançar o infinito quando vivemos como se ele estivesse fora de alcance.

Quando o limite passa a figurar como ponto de partida, contudo, sei que não tenho como ser outra coisa: sou aquela que não teve mãe. No entanto, isso posto, há muito a fazer. A psicanálise produz esse tipo de efeito. Avanço e descubro coisas que se inseriam no modo: “não tive isso, então só posso sofrer esta falta”, e que às vezes passam, em análise, a um “posso tudo o que não seja sofrer a falta do que não tive”.

Descubro, aliás, que sofrer a falta do que não se teve é uma nostalgia não constituinte, mas constituída. É como se um parceiro-objeto que está lá no infinito viesse para cá, nos acompanhar a cada passo, como presença Outra, mas companheira. A cicatriz de Antonia talvez tenha sido tomada neste modo, sustentando para ela o pressentimento de que ela, mesmo não tendo mãe, e até por isso mesmo, tem infinitas coisas a fazer, sobretudo mais do que ficar estupidamente desperdiçando sua vida enquanto destrói a de seu filho.

Referências bibliográficas
1.Holck, A. L. & Vieira, M. A. (editores); Machado, O. & Grova, T. (orgs.). Psicanálise na favela – Projeto Digaí Maré: a clínica dos grupos. Rio de Janeiro: Associação Digaí Maré, 2008.  
2.Russell, B. Introdução à filosofia matemática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
3.Vieira, M. A. Restos: uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.

 Texto de: Marcus André Vieira
Fonte: Revista Latusa, n.47/ano 8, Dezembro de 2011


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