segunda-feira, janeiro 29, 2024

A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS


 

(O) Curso Livre (da) Formação chega ao 23º Módulo abordando o tema

 “A clínica hoje: Os novos sintomas” e acontece nos dias 01 e 02 de março

com bibliografia de Jacques Lacan, Marc Darmon, Dany-Robert Dufour, 

Charles Melmann e Gustavo Capobianco. 

 

O encontro oferece desconto de R$ 100,00 aos estudantes. 

Para receber o benefício, basta apresentar documento que comprove 

vínculo com instituição de ensino.

 

Caso tenha dúvida, entre em contato com a Usina Dizer 

pelo telefone (48) 3030-7474.

sexta-feira, janeiro 26, 2024

POR UM UNIVERSALISMO DIVERSO


 


Sim ao universalismo, não à uniformidade

Elisabeth Roudinesco

 

Passadas duas décadas, a emancipação mudou de figura. Não sonhamos mais mudar o mundo; exibimos nossos signos distintivos, nosso sofrimento, nosso ressentimento. Luta-se para defender identidades; pensa-se por categorias, ao passo que o ser humano é sempre plural. Essa abordagem dá lugar a múltiplos trabalhos no campo universitário, conduzidos por professores em sua maioria brilhantes e diplomados à perfeição. No entanto, cada vez mais frequentemente, seus estudos servem também como apoio para um militantismo identitário que suplantou as outras abordagens (sociais, psíquicas, marxistas etc.) e que maneja alegremente a designação - o "Negro", o "Branco", o "cisgênero" etc. - e os "dizeres obscuros", a ponto de sucumbir por vezes a uma espécie de delírio.


E é assim que o debate se vê engajado sob o modo de uma dicotomia simplista: haveria, de um lado, os "universalistas" (os bons), que fetichizam o universal para dele fazer uma espécie de filosofia geral, a única suscetível de encarnar, em todos os seus traços, nossa boa e velha República Francesa; do outro, em oposição, estariam os "multiculturalistas" (os maus), influenciados pelo mundo anglófono, fetichizando, por sua vez, a diferença. Ora, essa maneira de raciocinar é contrária a toda abordagem minimamente objetiva das sociedades humanas. Em cada coletividade, existem universais antropológicos: a estrutura familiar, a interdição do incesto, a existência da homossexualidade, a religião, a loucura... E existem diferenças, que se distribuem segundo as sociedades e as épocas, e cujas particularidades são indispensáveis à vida em comum.


Sob o efeito da queda do comunismo e do triunfo da economia liberal (a partir de 1989), nosso mundo moderno se uniformizou. É, portanto, no interior desse vasto conjunto planetário que as diferenças das sociedades vêm agora se exprimir. Ora, é sabido que a uniformização do mundo leva ao desastre. Lévi-Strauss sempre afirmou que o que faltava aos povos primitivos não era nem a cultura, nem o pensamento, mas o acesso à ciência, à medicina e à técnica, e que eles estavam ameaçados de extinção por essa razão, e não devido a qualquer "inferioridade".


"De perto e de longe": eis qual era, para ele, a boa distância. Se todo mundo se parece, a humanidade se dissolve no nada; se cada um deixa de respeitar a alteridade do outro ao afirmar sua própria identidade, a humanidade se afunda no ódio perpétuo. Do mesmo modo, o escritor Léopold Sédar Senghor definia a "negritude" como um conjunto de valores culturais, econômicos, políticos, artísticos dos povos da África, das minorias negras da América, da Ásia, da Europa ou da Oceania, ocultados pelo colonialismo. Para ele, não era questão de "raça". Mas, assim como Aimé Césaire, admirável poeta com quem fundou a editora Présence Africaine nos anos 1950, Senghor defendia também que esses valores deveriam se integrar em uma civilização universal, precisamente para evitar que os Negros sejam assimilados à força a uma cultura dominante.

 

Forjar uma cultura comum

Cada um - o homem negro, assim como o homem ocidental - levava seu pensamento a ser partilhado, para forjar uma cultura comum. Para Césaire, a negritude era um grito de dor - a rejeição da imagem abjeta do Negro fabricada pela colonização -, mas ela não deveria, em nenhum caso, colocar-se à parte da cultura universal. O emprego da palavra "Nègre" em lugar de "Noir" era uma maneira de inverter o estigma ao enobrecer, e mesmo sublimar, esse termo advindo do léxico racista. Senghor e Césaire forjaram um grande movimento, apoiado por André Breton e depois por Jean-Paul Sartre e Claude Lévi-Strauss, que procurava fazer emergir a cultura negra nesse conjunto universal. Também Frantz Fanon, o autor de Pele negra, máscaras brancas, convocava à emancipação dos povos em linha direta com a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, ou seja, com aquilo que a França elaborou de mais universalizável.


Mas "universal" não quer dizer que seja preciso querer aplicar por toda parte nosso modelo republicano jacobino. Todos os países democráticos forjaram uma laicidade, um Estado de direito, respeitando ao mesmo tempo as crenças e as liberdades. Somente sua concepção de laicidade - notadamente no mundo anglófono - não é a mesma que a nossa: historicamente, os Estados Unidos (grande democracia em que o presidente jura sobre a Bíblia), assim como o Reino Unido (monarquia constitucional) são nações fundadas sobre justaposições de comunidades: é, pois, absurdo acusá-los de não serem o que somos e denunciar o seu "comunitarismo".


in: Reverso vol.43 no.81 Belo Horizonte jan./jun. 2021


 

 

 

quinta-feira, dezembro 28, 2023

PSICANÁLISE: O TEMPO DA SESSÃO







Perante o sintoma todo relógio é mole 

Antonio Quinet 

 

Todas as tentativas de Freud de fixar o tempo de uma análise fracassaram quando não causaram dano maior ao paciente, como no caso, segundo Lacan, do Homem dos Lobos. Tampouco há como prever o tempo de duração de entrevista prévia e necessária a essa entrada. E, uma vez estabelecida a transferência analítica duas vertentes temporais estarão em jogo: a vertente sem fim, própria à cadeia significante do sujeito e a vertente disruptiva e atemporal do ser em sua modalidade de gozo. A primeira é a vertente interminável que inclui a temporalidade da sucessão própria à associação livre com o passado; presente; futuro, a retroação característica da experiência de significação na rememoração e a prospecção que o futuro infinito do desejo imprime no Inconsciente. A segunda é a vertente terminável conceitualizada como o encontro com o rochedo da castração e por Lacan como "a solução do enigma do desejo do analista que lhe entrega seu ser cujo valor se escreve () ou (a)". (Cf. Proposição). 

A teoria dos nós e do sinthoma na última parte do ensino de Lacan não modificam essas duas vertentes nem eliminam as dimensões do simbólico do inconsciente e do real do gozo. À pergunta sobre qual será a duração do tratamento analítico a única resposta verdadeira continua sendo a pronunciada por Freud: “Ande!”. 

O tema do nosso Encontro reafirma a posição do analista quanto ao tempo, quando escolas de psicanálise que se reivindicam do ensino de Lacan propõem uma "psicanálise aplicada" aos pobres por quatro meses (podendo ser prorrogado para até oito meses) diferenciando; a da "psicanálise pura" para os ricos e os psicanalistas. Um tal desvio da psicanálise é incompatível com seus princípios. Chamar essa terapia de psicanálise é desconsiderar que o sujeito do Inconsciente está também presente com seus desejos e sintomas nas classes mais desfavorecidas, oferecendo para eles esse tipo de tratamento que é um engodo. O preconceito é classificar os inconscientes segundo a classe social em nome de uma caridade. O psicanalista pode e deve atuar na urgência e propor o tratamento psicanalítico para todos que o quiserem sem precisar contrabandear seus fundamentos. É o que diversas Sociedades e Escolas de Psicanálise inclusive a EPFCL e as FCCL, e até mesmo ambulatórios em Universidades, já fazem há muito tempo no Brasil. O analista a partir de seu ato com a oferta cria a demanda de uma análise independente do bolso do sujeito. Padronizar uma psicanálise a curto prazo é ir contra toda a luta de Lacan contra os padrões estabelecidos e burocratizados que impedem a psicanálise de se exercer na sua criatividade e singularidade de cada ato analítico. Estipular um prazo para o tratamento é um empuxo ao furor curandi para fazer desaparecer o sintoma. Essa prática leva ao pior, na medida em que o sintoma é uma manifestação do sujeito que o analista deve antes de tudo acolhê-lo e fazê-lo falar ao invés de tentar liquidá-lo para engrossar as estatísticas dos êxitos da pesquisa científica. Diante do sintoma todo relógio é mole, como o do quadro de Dali. Impor um tempo ao sintoma é uma ingenuidade se não for uma impostura. E além do mais, prometer a reabilitação rápida do doente para que ele volte logo ao mercado de trabalho e ao consumo não seria estar ao serviço do discurso capitalista? Não se pode pagar o alto preço do assassinato do sujeito com vistas a não se perder o trem-bala da contemporaneidade. Isto não é estar à altura da subjetividade de sua época e sim submeter a psicanálise aos discursos dos mestres. 

O capitalismo e a tecnociência são as torres gêmeas que sustentam o mal-estar na civilização contemporânea levando-a ao desastre e ao terror. A psicanálise não deve se adaptar ao discurso capitalista com o empuxo-à-fama de seu marketing nem se curvar ao discurso da ciência que rejeita a verdade do sujeito. Ao ceder a elas não há mais lugar para o Inconsciente nem o real do sinthoma. A Escola de Lacan é o lugar do refúgio e crítica ao mal-estar na civilização. 

In: Anais do Campo Lacaniano, 

Junho, 2008

sexta-feira, novembro 24, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE


 

(O) Curso Livre (da) Formação

Módulo XXII

a elaboração de casos clínicos


Dia: 08 e 09 de dezembro

Ministrante: Maria Holthausen

Online: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC 


No campo da prática psicanalítica, a relato de casos clínicos é abalizado como uma ferramenta para a elaboração teórica da experiência de escuta. Além de se oferecer como um trabalho voltado para a transmissão da psicanálise, antes de tudo, consiste num trabalho fundamental no dia a dia da prática clínica, para orientar o analista na direção da cura, através de uma constante formalização do material bruto dos pacientes em casos clínicos.


Bibliografia:

LACAN, Jacques, “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”, Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.

MAZAN, Renato, Escrever a Clínica, São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

DUNKER, Christian, RAMIREZ, Heloísa, ASSADI, Tatiana de Carvalho, Orgs.,  A construção de casos clínicos em psicanálise – método clínico e formalização discursiva, São Paulo: Annablume, 2017


As vagas para este módulo foram esgotadas. Acompanhe-nos nas redes sociais da Usina Dizer, para saber quando abriremos inscrições para os próximos.

Caso tenha dúvida, entre em contato conosco pelo telefone

(48) 3030-7474

terça-feira, outubro 31, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE




(o) Curso Livre (da) Formação

Módulo XXI

Análise de uma fobia: Pequeno Hans


Dia: 10 e 11 de Novembro de 2023

Online: Plataforma Zoom
Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC

O Curso de Formação da Usina Dizer chega ao 21º módulo abordando o tema da fobia a partir do texto de Freud, “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”. 

Na época da publicação desse caso, a história do garotinho analisado através de uma dubla escuta - o pai e o psicanalista - provoca grande burburinho e levanta muitas questões. Pouco tempo depois, o caso Hans torna-se um precursor da psicanálise infantil, tornando-se a pedra fundamental dos trabalhos de Melanie Klein e Ana Freud, entre outros. Debruçados sobre esse material, ao mesmo tempo clínico e histórico, nosso objetivo é sublinhar os diversos movimentos conceitos que o referido caso proporcionou a Freud: histeria de angústia, complexo de Édipo, identificação, recalque, transferência e sublimação.


Bibliografia:

FREUD, Sigmund, Análise de uma fobia em um menino de cinco anos - 1909, Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. X, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

_______________, A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade - 1923,  Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

LACAN, Jacques, “A Estrutura dos Mitos na Observação da Fobia do Pequeno Hans”, in: Seminário livro 4, a relação de objeto, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

segunda-feira, setembro 25, 2023

GIDE, GENET, MISHIMA: INTELIGÊNCIA DA PERVERSÃO


 

Catherine Millot: O sexo

 

Transcrição da entrevista feita por Betty Milan

 com a psicanalista francesa Catherine Millot. 

 

Psicanalista – membro da Escola Freudiana de Paris, fundada e dissolvida por Jacques Lacan –, filósofa e ensaísta, Catherine Millot publicou vários livros, entre eles La vocation de l’écrivain (“A vocação do escritor”)de 1991, pelo qual é conhecida. Nasceu na França e vive em Paris, onde clinica e ensina na Universidade de Paris VIII. Gide, Genet, Mishima – A inteligência da perversão, Freud antipedagogo e Extrasexo – Ensaio sobre o transexualismo são algumas de suas obras em circulação no Brasil.

Betty Milan: Você escreveu um livro de grande sucesso, Gide Genet Mishima, cujo subtítulo é “A inteligência da perversão”. Gostaria que você dissesse qual é o sentido da palavra perversão hoje e comentasse o subtítulo do seu livro.
Catherine Millot: Prefiro comentar o subtítulo primeiro. Foi escolhido pelo meu editor, Philippe Sollers, porque, desde o início do trabalho, eu queria fazer um elogio à perversão, mas não ousava sustentá-lo publicamente. Temia que as pessoas logo se opusessem ao elogio, invocando o serial killer, que é um perverso. Ninguém pensaria na inteligência de Gide, que tornou pública a sua homossexualidade para defender o direito dos homossexuais de serem como são. O procedimento dele teve uma grande repercussão social e foi por causa disso que ele recebeu o Prêmio Nobel. Gide foi explicitamente nobelizado por ser um liberador dos costumes e do espírito.

FREUD: A UNIVERSALIDADE DA PERVERSÃO

BM: Seria possível retomar a questão e analisar o sentido da palavra perversão hoje?
MILLOT: A palavra perversão é usada na França para designar a manipulação de uns pelos outros. Por isso, o termo aparece muito na política. Quanto a mim, uso-o no sentido dos sexólogos, de Krafft-Ebing. No século XIX, o termo designava todas as formas de desvio sexual, ou seja, toda prática sexual que não estivesse ligada ao primado da reprodução. Em 1895, nos Três ensaios sobre a sexualidade, Freud mostrou que tal desvio era universal, ou seja, que as práticas perversas servem de preliminares para os heterossexuais. Noutros termos, que a sexualidade humana não é determinada pela procriação. Foi uma ideia subversiva, inteiramente nova.

BM: Que relação existe entre esta ideia de Freud e a liberação que ocorreu no século XX?
MILLOT: Por ter mostrado que a sexualidade humana não é redutível à reprodução, Freud induziu a uma tolerância social maior e favoreceu a aceitação dos homossexuais. Mas esta só ocorreu realmente depois de maio de 1968 e, na França, só quando a esquerda tomou o poder em 1981, porque ela modificou as leis. Quanto à liberação das mulheres, também está ligada à separação entre a sexualidade e a reprodução, mas só se tornou possível graças à pílula, que é na verdade uma arma de dois gumes.

BM: Por quê?
MILLOT: Porque a procriação, agora, é mais complicada, na medida em que depende de uma decisão. A mulher precisa pedir e o homem, aceitar. Ora, a paternidade é angustiante e não é fácil o homem assumir. Num certo sentido, a pílula dificultou a vida das mulheres. Ganharam por um lado e, por outro, perderam. Ademais, as pessoas agora resolvem ter filhos quando já é muito tarde, e as mulheres precisam de assistência médica para procriar. A procriação in vitro é a expressão mais clara da disjunção entre a sexualidade e a procriação.

BM: Voltando à perversão sexual, eu gostaria de saber desde quando ela deixou de ser considerada um delito.
MILLOT: Se considerarmos as diferentes perversões, existe apenas uma que deixou de ser delito: a homossexualidade. Na França, ela foi crime até a Revolução Francesa. Ainda no século XVIII, há gente queimada em praça pública por causa de sodomia. No Código Penal de 1810, a homossexualidade com menores de 15 anos leva à cadeia e é punida com trabalhos forçados, caso tenha havido violência. No século XIX, a idade passa de 15 para 13 anos. Com o governo de Vichy (1940-1944) há um endurecimento. Qualquer um que satisfaça suas paixões homossexuais com menores de 21 anos é preso. Durante o governo de Charles de Gaulle, as mulheres passam a ser consideradas maiores aos 15 anos. Mas a grande mudança ocorre em 1981, porque, a partir de então, a homossexualidade só é considerada criminosa com menores de 15 anos, homem ou mulher. Por um lado, se estabelece a igualdade entre os sexos e, por outro, se considera que o delito não é a homossexualidade, mas a pedofilia.

BM: Quais foram, no século XX, as principais vítimas da repressão sexual?
MILLOT: Oscar Wilde é uma delas. Todo mundo conhecia sua homossexualidade, mas ninguém havia se oposto a ele legalmente. Foi porque Wilde processou o pai do seu amante, um homem que o injuriava, tratando-o de homossexual, que a prova disso foi constituída. Nessa época, na França, era possível ter relações sexuais com menores, desde que tivessem mais de 13 anos. O fato é que Wilde saiu da prisão em 1897 arruinado e nunca mais se recuperou. Isso marcou André Gide, que conheceu Oscar Wilde na França em 1891 e depois o reencontrou na Argélia em 1895, onde Wilde ofereceu a ele um jovem músico. Pouco depois, Wilde foi preso, e Gide, que estava se iniciando, ficou muito impressionado. Tornou pública a sua homossexualidade para que a repressão não fosse mais possível.

BM: A situação de Gide foi diferente da situação de Wilde por um ser francês e o outro, inglês…
MILLOT: Verdade que sempre houve maior tolerância na França do que no mundo anglo-saxão. A gente se dá conta disso considerando o que acontece nos Estados Unidos com o caso de Clinton, por exemplo. Na França, há uma tradição de não-interferência na vida privada das pessoas.

BM: Quando Gide tornou pública a sua condição, a homossexualidade já não era mais considerada um crime na França. O que ele visava exatamente?
MILLOT: Quis se opor à condenação moral…

BM: E por que não foi reprimido?
MILLOT: Por causa da Primeira Guerra Mundial, que pôs frente a frente povos civilizados, povos que eram vizinhos e poderiam ser amigos – uma guerra que foi extremamente traumática em razão da destrutividade das armas modernas e do número enorme de mortos. O trauma foi tal que acabou com os valores tradicionais. Pode-se dizer que houve uma revolução de costumes depois da guerra de 1914. Foram os chamados Anos Loucos. Gide se beneficiou da liberdade que vigorava então.

BM: Nos anos 70, o homossexualismo foi assumido publicamente por muitos. O que levou a isso?
MILLOT: O militantismo apareceu em 1971. Foucault apoiou a luta pela igualdade entre os homossexuais e os heterossexuais, pela igualdade diante da lei.

BM: E o que você acha do fato de assumir publicamente a opção sexual?
MILLOT: Há grupos que até fazem propaganda da homossexualidade e outros que são mais reservados. Foucault, por exemplo, nunca declarou que era homossexual – até porque ele considerava que se trataria de uma confissão forçada. A tendência que obriga os homossexuais a tornar pública a sua homossexualidade é uma tendência tirânica. Muitas pessoas precisam viver a própria sexualidade de forma secreta. A dissimulação pode fazer parte do gozo.

BM: A liberdade, portanto, consiste em ter o direito de mostrar ou de esconder, e nós estamos bem longe disso…
MILLOT: Exatamente.

A REVOLUÇÃO SEXUAL DOS ANOS 60

BM: Nós falamos que a liberação dos homossexuais precedeu a das mulheres. Gostaria que você falasse da revolução sexual dos anos 60, que diz respeito sobretudo a elas.
MILLOT: Passamos da ideia de que as mulheres não tinham vocação para o gozo para a de que têm o direito e o dever do gozo. A revolução sexual dos anos 60 foi condicionada por duas descobertas médicas: a penicilina, que nos liberou do medo da sífilis, e a pílula, que nos liberou do medo da gravidez. Antes da pílula, as mulheres não tinham sossego. A gente corria o risco de ficar grávida e precisava estar atenta o tempo todo. A pílula apareceu na França em 1965, mas só foi legalizada em 1967. O grande boom foi mesmo em 1968.

BM: A homossexualidade deixou de ser incriminada e as mulheres foram liberadas para o gozo, mas passamos a estar sujeitos a dois imperativos: ter de falar de sexo e ter de transar, o que não deixa de ser opressivo. Você diria que nós passamos da repressão para a obrigação?
MILLOT: Quem focalizou mais claramente essa questão foi Michel Foucault. Na História da sexualidade, ele se opôs à ideia que vigorava nos anos 70 de que a sexualidade sempre foi reprimida e de que graças à psicanálise a repressão deixou de existir. Mostrou que a psicanálise nos incitou a falar de sexo continuamente e isso só favoreceu o controle da sexualidade pela Igreja. Para Foucault, a cura analítica não passa de um prolongamento da religião… A sexualidade de certo modo evoca os partidos totalitários, porque passamos sempre do que é proibido para o que é obrigatório. Nos anos 60, escapamos da repressão imposta às gerações anteriores, mas, para ser liberada, era preciso dizer sim a todas as propostas masculinas. Do contrário, éramos consideradas retrógradas. As mulheres tinham de dizer sim, e os homens, de responder ao imperativo de ter uma atividade sexual intensa, ao imperativo do gozo. A liberdade sexual não existe. Ou bem estamos sujeitos à interdição ou ao imperativo de transar.

O TURISMO SEXUAL

BM: O turismo sexual data dos anos 70 e é decorrente da democratização da viagem. Gostaria de saber se ele tem antecedentes.
MILLOT: O turismo de massa começou nos anos 70, mas o turismo sexual já existia antes. Sempre houve gente indo aos países do Sul nas férias para ter relações sexuais facilmente. A tradição do turismo sexual existe desde o século XIX. Os jovens da burguesia de então costumavam dar uma volta pela Europa. As viagens para a Itália fazem parte dessa tradição. Freud fez até um trocadilho porque, em alemão, ir para a Itália é gehen Italien, que lembra genitalien, ou seja, genitália. Gide, por exemplo, partiu com um amigo para a África a fim de perder a virgindade.

O PIONEIRISMO DOS ESCRITORES NA LIBERAÇÃO SEXUAL

BM: Gide foi um pioneiro da liberação dos homossexuais. E entre as mulheres, quem foi?
MILLOT: Colette. Uma de suas personagens, Claudine, tinha relações sexuais com a professora e com uma colega. A obra de Colette é atravessada por histórias de homossexualidade feminina. Ela nunca declarou que era homossexual, mas isso não a impediu de viver a sua homossexualidade e de fazer alusão a isso sob o modo da ficção. Num dos seus livros, O puro e o impuro, ela fala de um movimento homossexual que existiu no início do século em Paris. As mulheres iam aos restaurantes e às boates vestidas de homem, apesar de um decreto que proibia isso.

A TOLERÂNCIA DOS MEIOS INTELECTUAIS

BM: Quais foram os meios em que a sexualidade pôde ser vivida abertamente no século XX?
MILLOT: Os meios intelectuais e artísticos. Isso se torna evidente quando a gente lê Cahiers de la Petite Dame, por exemplo. a Petite Dame era uma amiga de Gide, uma amiga mais velha com a qual ele coabitou durante muito tempo e que todo dia tomava nota do que ele dizia. Foi testemunha das atividades de sedução de Gide, sobretudo de jovens adolescentes. Ela era de uma tolerância absoluta. Gide seduzia meninos de 13, 14 anos, e ela se divertia com isso. Havia uma cumplicidade muito grande entre eles. Trata-se mesmo de um exemplo de tolerância. Outro exemplo é o de Jean Genet. Logo depois da guerra, esteve ameaçado de prisão perpétua, porque era ladrão e reincidente… Pequenos roubos que hoje seriam considerados insignificantes, como roubo de um livro, de um lenço… Mas, como ele fazia isso o tempo todo, foi parar na cadeia – e a pena para os reincidentes era a prisão perpétua. Genet foi salvo por Cocteau, que conseguiu um juiz tolerante para ele. Depois, Genet foi agraciado pelo presidente da República. Ora, ele era autor de obras pornográficas, como Nossa Senhora das Flores ou O milagre da rosa,que narram explicitamente relações homossexuais. O fato de ter sido agraciado é uma prova da tolerância no meio em que ele vivia.

A ADOÇÃO DE CRIANÇAS

BM: Neste fim de século, se fala em legalizar a adoção de crianças por homossexuais. O que você pensa da adoção de crianças por um casal homossexual?
MILLOT: Eu poderia dizer que é melhor ter como pais um casal tradicional. Isso permite que a criança se estruture mais facilmente do ponto de vista das identificações sexuais, porque há um homem e uma mulher. Mas, considerando o que acontece com os filhos de casais tradicionais, talvez não seja pior ser criado por dois homens ou duas mulheres. Em suma, tudo depende da personalidade da criança e do casal. Há crianças que ficam traumatizadas por um quase nada e outras que se adaptam facilmente a qualquer situação.

A AIDS E A RETRAÇÃO DO ANOS 80

BM: A liberação sexual foi interrompida pela Aids nos anos 80…
MILLOT: Sim, e é preciso considerar que o medo da Aids talvez não seja proporcional ao perigo. Houve um movimento moralista que surgiu em função da sexualidade desenfreada nos meios gays, nos anos 70, nos Estados Unidos, terreno no qual a Aids, que já existia de forma incipiente, se desenvolveu. A retração de hoje também é devida ao fato de que o preservativo implica um pequeno risco. Podemos falar de sexo seguro, mas não de sexo absolutamenteseguro. A Aids reintroduziu o risco e reavivou o discurso moralista sobre a sexualidade.

BM: O século XVIII conheceu a liberdade sexual dos libertinos e o XX, a da revolução sexual. Gostaria que você comparasse essas liberdades.
MILLOT: Os libertinos eram minoritários – burgueses, aristocratas ou intelectuais. Já o que caracterizou a liberdade sexual dos anos 60 foi sua amplitude. Por outro lado, os libertinos tinham um discurso pedagógico e havia também, na libertinagem, uma dimensão de segredo. Nos anos 60, além de uma reivindicação aberta, houve a divulgação através da mídia, cujo desempenho foi muito importante.

BM: O sexo está hoje associado à felicidade. Quando foi que essa associação surgiu e como ela se explica?
MILLOT: Surgiu no século XIX. Freud diz que a satisfação sexual é a mais forte que o ser humano pode ter e, portanto, a mais importante para a felicidade, pois esta depende da satisfação.

In: https://www.bettymilan.com.br/catherine-millot-o-sexo/

sexta-feira, setembro 15, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE


 

(O) Curso Livre (da) Formação 

Módulo XX

"A Perversão no divã"


Dia: 20 e 21 de Outubro de 2023

Ministrante: Maria Holthausen

Online: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC


De Freud a Lacan o tema da perversão pode ser abordado sobre três perspectiva: Estrutura Perversa, Perversão Sexual e Perversão Moral. Três abordagens epistêmicas sobre a perversão. A primeira nos ensina o manejo clínico da estrutura perversa. A segunda, dentro do amplo campo da sexualidade, baliza o pensamento psicanalítico sobre as diferentes formas de sexualidade. E a terceira, oferece elementos que nos permite interrogar a violência e a destrutividade nos diversos campos sociais. 


Referência Bibliográfica:

FREUD, Sigmund, “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VII, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

_______________, “Fetichismo”, Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VII, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

DOR, Joël, Estrutura e perversões, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991


quarta-feira, agosto 30, 2023

É BOBAGEM?

 



Construindo polêmicas em 

direção a lugar algum


Vladimir Safatle


A vantagem de entrar em uma polêmica quando ela parece estar acabando é poder avaliar seu saldo. E no mais das vezes, quando ela é uma polêmica intelectual feita a partir do ritmo, das frases de impacto e das imagens próprias à mídia, seu saldo é muito próximo do zero. Talvez seja esse o caso da última versão nacional do já centenário debate sobre a cientificidade da psicanálise, impulsionada por uma pesquisadora da área de biológicas, a sra. Natalia Pasternak, e seu marido jornalista, o sr. Carlos Orsi.

E é bom lembrar do caráter centenário desse debate, porque teríamos o direito de esperar que sua versão nacional pudesse trazer alguma novidade, algum argumento astuto, alguma pesquisa nova a uma discussão sobre o destino de uma prática clínica que, para o bem ou para o mal, moldou a sensibilidade ocidental a respeito de questões tão centrais como: família, sexualidade, corporeidade, memória, desejos e seus conflitos. Pois é materialmente impossível descrever o século 20, suas aspirações, tensões e transformações, sem entendermos como nossa cultura é, em larga medida, uma “cultura psicanalítica”. Isso significa: uma cultura forjada pela circulação da psicanálise em consultórios, hospitais, escolas, filmes, literatura, mas também em periferias, lutas sociais, entre outros.

Entender tal força de influência de uma prática clínica exige um trabalho de sociologia das ideias que muito poderia acrescentar ao debate. Trabalho que poderia trazer elementos para responder, de forma mais objetiva, a questões como: por que a psicanálise se inseriu de forma tão orgânica na história das sociedades ocidentais? Foi porque Freud era um “ótimo publicitário”, um “astuto prestidigitador”? Ou foi porque a psicanálise efetivamente diz algo de relevante a respeito da estrutura de nossa subjetividade e cultura?

 

Olavo tinha razão

Antes de abordar esse ponto, seria o caso de fazer uma contextualização histórica. Livros contra a psicanálise contam-se aos montes há décadas. Em 2011, por exemplo, o Brasil recebeu a tradução de um deles, o então famoso Livro negro da psicanálise. Quem o reler encontrará praticamente todos os argumentos e críticas que animam o Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. O primeiro deve, inclusive, ser mais barato, pois o seu destino foram principalmente os sebos de ocasião. Pois quando o Livro negro foi traduzido, sua recepção foi morna, como quem ouve a mesma piada contada várias vezes.

O que aconteceu então com o Brasil para que a mesma discussão aparecesse agora de forma mais explosiva, sem que nenhum elemento novo ou dado relevante fosse acrescentado ao debate? É possível creditar parte do fenômeno à desorientação produzida pela pandemia. Diante de um governo que praticou uma sequência sistemática de crimes contra a saúde pública, não faltaram aqueles que se viram no meio de uma verdadeira reedição da guerra das luzes contra a superstição, da ciência contra o obscurantismo, da civilização contra a barbárie. Pesquisadores em ciências biológicas e exatas foram elevados à condição de guardiães da razão aos quais a política deveria se submeter, se não quisesse abraçar as vias do populismo ou de algum “irracionalismo” em política.

Só que agora talvez seja o momento de dizer que, nesse caso, o medo fez o pensamento crítico regredir duas casas. Primeiro, porque nunca estivemos em um combate da ciência, das luzes, da civilização, da razão, da bondade etc. contra as forças da regressão e do atraso. Seria bom começar por lembrar o quanto há de sombra nas luzes, o quanto há de barbárie na civilização, o quanto há de obscurantismo no positivismo científico. Um pouco de dialética do esclarecimento faz bem nesses momentos.

A luta contra o fascismo nacional não foi nem é uma luta contra forças obscurantistas, um termo mais apropriado aos debates teológicos do que às análises políticas. Analiticamente “obscurantismo” não diz nada, até porque, se me permitem, sempre se é o “obscurantista” de alguém. O que não poderia ser diferente, já que o conceito de racionalidade é um conceito histórico e em disputa, a ciência não é um espelho da natureza, e não há nada de “relativista” nessa posição. Não sendo uma luta contra o “obscurantismo”, nossa guerra contra o fascismo é uma luta política (sublinho, uma luta política) contra uma junção devastadora de ultraliberalismo econômico, indiferença social, violência estatal e organização da sociedade a partir da generalização da lógica de milícias.

Dito isto, sugiro que aqueles que gostariam de fazer debates de divulgação científica para o grande público não esquecessem de outro biólogo, o sr. George-Louis Leclerc, mais conhecido como conde de Buffon, quem nos lembrava que “o estilo é o próprio homem”. Maneira de dizer que a rudeza do estilo é expressão da simplicidade do conteúdo do pensamento. Ninguém faz discussão séria sobre nada com o tom bonachão do monopolista do bom senso que olha para as ditas “verborragia pseudocientíficas” e exclama, com se estivesse fazendo uma repreensão às impertinências de um adolescente: “Que bobagem!”. Isso deveria ser deixado com o finado Olavo de Carvalho e seus seguidores.

Tanto é assim que falta simplesmente tudo, do ponto de vista de uma reflexão epistemológica séria, nessa versão mais recente do debate nacional sobre a cientificidade da psicanálise. Há uma longa bibliografia recente, tanto nacional quanto internacional, de reflexões epistemológicas sobre a psicanálise e seus regimes de objetividade. Seria necessário levá-la em conta e se posicionar a respeito. Há uma história de respostas aos argumentos clássicos contra a psicanálise. Seria necessário levá-la em conta e se posicionar a respeito. Não vou fazer aqui o papel do professor de teoria das ciências humanas e passar a lista exaustiva e ausente, mas o mínimo que se pode dizer é que um debate sério sobre a objetividade da psicanálise levaria em conta, por exemplo, as discussões daqueles que pensaram nos últimos anos psicanálise e neurociências (como Mark Solms e as reflexões do Nobel de medicina Erick Kandel).

Ele poderia, ainda, fazer pesquisas com pacientes que passaram pela psicanálise e sentiram mudanças importantes em suas vidas, fazer a mesma pesquisa com pacientes que não perceberam tais mudanças e avaliar os resultados. Seria interessante fazer tais pesquisas no Brasil dos últimos anos. Tudo isso seriam contribuições significativas para o debate, mas nada foi feito, o que nos leva àquela sensação tão bem descrita por Shakespeare: Muito barulho por nada… mais uma vez.

 

Sofrimento e autorreflexão

Digo “mais uma vez” porque o debate sobre a psicanálise como pseudociência sempre foi muito pobre intelectualmente, já que foi feito em larga medida por quem se via mais na posição de esconjurar um embuste primário do que de efetivamente analisar uma prática clínica e uma crítica da cultura complexa que merece, ao menos, paciência nas análises. Por exemplo, uma dessas figuras, cuja crítica retorna pela enésima vez nas páginas do livro que analisamos, é, não poderia deixar de ser, Karl Popper.

Afinal, Popper foi responsável pela ideia de que a psicanálise não poderia ser ciência, já que as interpretações de um analista não são enunciados que podem ser verificados. Se o paciente aceita tais interpretações, o psicanalista se sente confirmado; se ele recusa, o analista pode sempre alegar resistência do analisando e continuar sentindo-se confirmado.

No entanto, não é difícil imaginar que a crítica é pedestre. Interpretações psicanalíticas podem, sim, ser incorretas. O critério de correção em uma análise está ligado à produção de novas associações. Se o analisando ou analisanda simplesmente nada faz com a interpretação, ela é incorreta; se ele ou ela se abre a novas associações, ela é correta. Claro que o critério não está em uma versão correspondencialista de verdade, ou seja, na ideia de que um enunciado verdadeiro corresponderia a algo em um estado de coisas dotado de acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica. O critério de verdade é pragmático e consequencialista.

Isto não é estranho para uma prática clínica desmedicalizada, ou seja, que não compreende o sofrimento psíquico como expressão causal de marcadores biológicos, como se fôssemos obrigados a assumir uma relação estritamente biunívoca entre estado cerebral e estado mental, ou como se estados mentais fossem apenas maneiras “metafóricas” de falarmos sobre estados cerebrais. Por ser desmedicalizada, a psicanálise opera por uma forma muito específica e singular de reconhecimento. Isso não poderia ser diferente porque, quando estamos a falar em sofrimento psíquico, a maneira com que um paciente se autocompreende interfere em seu quadro clínico.

Levar um depressivo a compreender-se de outra forma tem, sim, efeitos em seu quadro clínico. Mas, é claro que isso não se dá por simples “redescrição simbólica”. Nossas formas de autocompreensão estão enraizadas em experiências sociais e históricas, em violências reiteradas, na forma de circulação de discursos e práticas, em nomeações que têm o peso do aparentemente intransponível. Tais autocompreensões se organizam através de nossos usos de linguagem, de nossas disposições de ação, da história de nosso desejo, que é sempre uma história social composta de mortos e vivos, de disposições conscientes e inconsciente.

A modificação desse quadro não se dá com incitações empresariais à “vontade de mudar”. Ela se dá através do aprofundamento dos conflitos e da crítica, ela se depara com várias formas de angústias e de suas defesas, ela faz queimar narrativas que tínhamos de nós mesmos, não teme a desorientação que tal combustão produz, ela deve lidar com repetições que irão modificar-se a despeito de nossa vontade. É disso que uma análise é composta.

 

O lugar das ciências humanas

Aqui vale uma consideração de ordem geral a respeito do que chamamos de “ciências humanas”. Podemos dizer que a diferença ontológica fundamental entre as ciências humanas e as ditas ciências exatas é a autorreflexividade de seus objetos. Você pode pegar uma pedra e explicar a ela, em várias línguas, a lei da gravidade. Ela vai se comportar da mesma forma. O mesmo não acontece com seres humanas e suas produções sociais. Eles integram as explicações que fazemos sobre seus comportamentos, seus sofrimentos, seus afetos. Tais explicações produzem novos efeitos. Ou seja, a explicação não é apenas uma descrição. Ela tem força performativa.

Isso explica por que toda e qualquer ciência humana é indissociável de modalidades de intervenção. Um sociólogo que descreve a sociedade como uma totalidade antagônica marcada por lutas de classe necessariamente intervém no seu objeto, porque se a sociedade se autocompreender dessa maneira, ela produzirá efeitos que não produzia anteriormente. Ter essa consciência é algo muito mais honesto do que se esconder sob o manto de qualquer neutralidade axiológica que seja.

As ciências humanas não são neutras em relação a valores, pois suas explicações e descrições serão reflexivamente integradas pelos próprios objetos, redimensionando seus horizontes de ação no presente, no passado e no futuro. Mais honesto é, então, entender o vínculo indissolúvel entre descrição e valor no campo das ciências humanas, perguntando-se continuamente sobre a partir de que valores pesquisadoras e pesquisadores das ciências humanas intervêm no corpo social e em seus sujeitos.

Nesse sentido, a psicanálise é efetivamente uma ciência humana modelo, e por isso ela é tão atacada. Pois ela tem consciência plena do caráter performativo de suas explicações e intervenções. Isso explica por que o eixo de sua racionalidade clínica encontra-se no que chamamos de “manejo da transferência”. Uma maneira de explicá-lo consiste em lembrar que as relações de autoridade nos fazem sofrer. Elas determinam obrigações, normas, leis, modos de ser, disposições de conduta, valores e sentimentos morais. Eu me constituo socialmente internalizando princípios e figuras de autoridade. O médico, o discurso médico, o psiquiatra são também autoridades que têm força constituinte de sujeitos e subjetividades. Nossa vida psíquica é uma relação intersubjetiva constante com as marcas dessas figuras, com suas internalizações, suas idealizações. Por isso, há sempre muitos outros em um Eu.

Um psicanalista é alguém que entende que modificações na autocompreensão de uma paciente ou um paciente são indissociáveis da capacidade de modificar tais relações de autoridade constituintes e sempre reiteradas. E a principal delas acaba se tornando a relação com o próprio analista, ou seja, com alguém que procurei por supor um saber sobre meu desejo, alguém que por uma série de razões entrou em uma cadeia de figuras e representações constituintes de saber.

Por isso, a experiência que a psicanálise procura pôr em prática é uma experiência sobre o caráter constituinte de relações de saber e poder que estão presentes em várias estruturas sociais, até porque a transferência não é um fenômeno exclusivamente clínico. Ela está presente em todo lugar no qual há relação constituinte de autoridade. O psicanalista age sobre essas relações, procura dar corpo a elas em situação clínica a fim de permitir que elas caiam e desamparem. Ele irá então lidar com tal desamparo, na crença de que ele será um caminho capaz de produzir emancipação e fazer dos sintomas um campo de produção de singularidades.

 

O que não se diz em uma polêmica

Por fim, seria o caso de lembrar que uma polêmica é sempre composta daquilo que ela diz e daquilo que ela não diz. Nesse sentido, é sintomático que em um debate sobre práticas clínicas de sofrimento psíquico nada seja dito sobre as verdadeiras aberrações epistêmicas que encontramos no quadro psiquiátrico atual. Digo “aberrações” porque vemos uma ciência que demonstrou um desenvolvimento absolutamente anômalo nos últimos 60 anos. Por exemplo, quando foi publicado em sua primeira versão, em 1952, o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) continha 128 categorias para a descrição de modalidades de sofrimento psíquico. Em 2013, em sua última versão, ele apresentava 541 categorias. Ou seja, em cerca de 60 anos, 413 novas categorias foram “descobertas”. Não há nenhum setor das ciências que tenha conhecido um desenvolvimento tão anômalo e impressionante desde o fim do degelo glacial.

Bem, seria interessante se perguntar por que isso está a ocorrer agora. Estaríamos a passar, neste exato momento, por uma verdadeira revolução científica que teria nos permitido enxergar aquilo que não conseguíamos enxergar antes? Como se, durante décadas, não tivéssemos percebido que havia entre nós pessoas sofrendo de “transtorno de acumulação” (comportamento caracterizado por excesso de aquisição de itens e incapacidade de descartá-los) e “transtorno desafiador opositivo” (comportamento excessivo de quem está geralmente raivoso, irritado ou questionando figuras de autoridade)? Ou há algum outro a ocorrer e que diz respeito à extensão das tecnologias de intervenção nos corpos e desejos através da extensão dos procedimentos de patologização?

Alguns querem nos fazer acreditar que estamos em direção à clarificação inconteste de marcadores biológicos para as estruturas do sofrimento psíquico. Mas poderíamos nos perguntar, apenas para ficar em um exemplo pedagógico, quais são então os marcadores biológicos para o transtorno de personalidade histriônica? Seus critérios diagnósticos são, entre outros, “desconforto em situações em que ele ou ela não é o centro das atenções”, “uso constante da aparência física para chamar a atenção para si”, “demonstração de autodramatização, teatralidade e expressão exagerada de emoções”.

Tais critérios devem ser avaliados como expressão de marcadores biológicos específicos ou como comportamentos de recusa, inconsciente ou não, a padrões de socialização que, por sinal, são bastante imprecisos? Pois se estamos a falar em “expressão exagerada de emoções”, havemos de perguntar onde estaria a definição de um “padrão adequado” de emoções, a não ser na subjetividade do médico ou no manual de boas maneiras de nossa avó.

Na verdade, isso demonstra a profunda insegurança epistêmica que atravessa aquilo que a gritaria sobre “pseudociências” faz questão de esquecer de discutir. Seria o caso de refletir com vagar sobre as razões que levaram nossas sociedades a modificar de forma tão dramática sua maneira de intervir através da distinção entre saúde e doença, porque ela estendeu tanto suas patologias e quais consequências podemos esperar disto.

Seria o caso, ainda, de lembrar dos problemas profundos que a guinada farmacológica da psiquiatria contemporânea produziu. Por exemplo, estudos desenvolvidos por Michael Hengartner e Martin Plöderl publicados na revista Psychotherapy and Psychosomatics defendem que adultos começando tratamento com antidepressivos para tratar a depressão têm 2,5 chances a mais de cometer suicídio do que aqueles que se servem de placebos. Sim, você leu corretamente, é isso mesmo. Se os resultados de estudos dessa natureza forem reiterados, bem, temos um problema sério a resolver. Uma boa discussão epistemológica não seria indiferente a tais questões e dinâmicas. Mas, mais uma vez, ela nos falta.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.

in: https://revistacult.uol.com.br/home/polemicas-lugar-algum/

 

segunda-feira, agosto 21, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE



O 19º Módulo d'(o) Curso (da) Formação abordará o tema, 
"A escuta na Psicose".


Data: 01 e 02 de Setembro de 2023

Online: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis, SC


Ementa: Conforme Calligaris (1989, p. 9), a clínica psicanalítica difere da psiquiátrica por não ser pautar, como esta última, na constatação da presença ou ausência dos fenômenos elementares da crise psicótica: alucinações, delírios dissociativos, persecutórios … A clínica psicanalítica é uma clínica estrutural, o que significa dizer: ela se orienta pelas estruturas que se deixam reconhecer a partir do lugar que o discurso do paciente reserva ao analista. De toda sorte, é em função dessa forma de compreender a clínica - como uma estrutura discursiva em que o analista é convidado a assumir um lugar - que a psicanálise pode falar, por exemplo, de psicoses mesmo na ausência dos fenômenos catalogados como manifestações psicóticas. Isso porque, conforme Calligaris, a psicanálise reconhece haver uma estrutura psicótica, uma forma de ligação entre o analista e o analisando, a qual não necessariamente desemboca numa crise psicótica e, por conseguinte, nas manifestações comportamentais exaustivamente descritas pela psiquiatria. Há, para a psicanálise, uma psicose fora da crise. Há uma estrutura psicótica. Mas o que devemos entender por “estrutura psicótica”?


Bibliografia:

LACAN, Jacques. 1932. Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade. Trad. A. Menezes, M. A. C. Jorge & P. M. Da Silveira, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

_______________, 1955-6 O Seminário. Livro 3: As Psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, Trad. M. D. Magno. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

QUINET, Antonio, Psicose e Laço Social, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006

terça-feira, julho 25, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE


 

O 18º Módulo d'(o) Curso (da) Formação abordará o tema,

"Singularidades da Escuta do Adolescente".


Data: 11 e 12 de agosto de 2023

Profa. Ms. Adriana Cândido da Silva

On-line: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC


Ementa: Frequentemente, o adolescente chega ao consultório a partir da demanda de um adulto: os pais, os avós, ou os professores. São estes que trazem uma queixa, uma configuração sintomática que os angústia. Para que possa ocorrer uma análise é preciso que o adolescente consiga formular uma questão própria que pode ou não coincidir com a queixa dos pais. Por conseguinte, o analista escuta o adolescente, pois é ele o sujeito em análise, mas nem por isso deixa de estar atento à fala dos pais. Escutá-los faz parte do manejo da transferência, na sustentação do trabalho analítico. A partir disso, este módulo iniciará com uma compreensão acerca da adolescência na visão freudiana para, então, adentrar em uma discussão sobre o contexto de oferta generalizada de gozo em que o jovem está inserido atualmente e como isto afeta o manejo na clínica psicanalítica com adolescentes.


Bibliografia:

BAUMAN, Z., Modernidade Líquida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001

BRIMAN, J., Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

CALLIGARES, C. A Adolescência, São Paulo: Publifolha, 2000.

FREUD, S., Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. In: ____. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, v. VII, 1905 [1996], p. 117-297

_________, Algumas Reflexões Sobre a Psicologia Escolar. In: ____. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, v. XIII, 1914 [1996], p. 281-288

_________, A Vida Sexual dos Seres Humanos. . In: ____. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, v. XVI, 1916 [1996], p. 309-321

NASIO,J.D.  Como agir com um adolescente difícil? Um para pais e profissionais, Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2005.

quarta-feira, julho 12, 2023

MILAN KUNDERA - 1929-2023




O escritor tcheco Milan Kundera, uma das grandes vozes da literatura mundial, morreu aos 94 anos em Paris, anunciou sua editora Gallimard em Paris e a porta-voz da biblioteca que leva seu nome em sua cidade natal, Brno.

Deixa como herança um valioso tesouro literário. Seus textos teóricos e narrativas ficcionais fazem parte do patrimônio simbólico do Ocidente.  

Para todos que amam seus textos, é um dia de luto. 

 

terça-feira, julho 11, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE


 


O 17º Módulo d'(o) Curso (da) Formação abordará o tema "Os quatro discursos"

 

Data: 14 E 15 DE JULHO 2023

On-line: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC


Ementa: 

No Seminário XVII - O avesso da psicanálise, ministrado entre em 1969/ 1970, Lacan propõe uma formalização do que passou a chamar de “campo do gozo”, entendendo-se por tal uma pragmática social organizada na forma de “discursos”. Enquanto modo de gozo, cada discurso é um laço social em que podemos verificar uma forma de dominação, a dominação que um agente tenta impor a outro. Razão pela qual, em cada discurso deveríamos poder reconhecer dois polos distintos: o polo dominante (que é aquele em que, a partir da impossibilidade de se nivelar à verdade sobre si, o  agente ordena ao outro uma produção) e o dominado (em que o outro opera a produção ordenada pelo agente). 

Lacan distingue entre quatro tipos fundamentais de discurso: 

a) o discurso do mestre, em que o agente tenta governar o outro, fazendo deste um escravo; 

b) o discurso histérico, em que o agente faz desejar o outro, fazendo deste um mestre; 

c) o discurso universitário, em que o agente tenta educar o outro, fazendo dele um objeto; 

d) e o discurso do analista, que é o único em que o agente toma o outro como sujeito, ordenando a este que possa significar para si mesmo o gozo que, enquanto sujeito, possa produzir.

Bibliografia:

LACAN, Jacques, 1966. Éscrits. Paris: Seuil. Trad. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966.

_______________, 1969/70. O Seminário. Livro 17, O avesso da psicanálise. Texto estabelecido por Ari Roitman. Rio de Janeiro, Zahar, 1992.

A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS

  (O) Curso Livre (da) Formação chega ao 23º Módulo abordando o tema   “A clínica hoje: Os novos sintomas” e acontece nos dias 01 e 02 de m...