Oswaldo Goeldi, Chuva
Ronaldo Brito
O homem do guarda-chuva
vermelho é o exemplar típico do sujeito anônimo universal. Todos nós, cada um
de nós, resumido à sua condição básica – o homem sozinho dentro do mundo,
diante da vida, a enfrentar como pode os elementos. À sua maneira concisa, nada
grandiloquente, a pequena gravura nos reensina a ver o mundo, a senti-lo como
uma cena móvel e traiçoeira, cercada de intenções e presságios inquietantes. O
homem do guarda-chuva vermelho experimenta, nesse instante, a crise de
consciência sobre essa verdade inelutável. Daí talvez sua imobilidade perplexa,
um tanto indecisa, a posição de través face ao real – se alguma coisa, ele fita
o muro à direita, e não o horizonte à frente. Horizonte que se contrai, prestes
a se transformar num impasse. O plano de projeção é amplo (Goeldi interrompe o
muro, nesse intuito, antes que alcance a borda da gravura), mas converge de
modo drástico: ali, onde deveríamos encontrar o ponto de fuga, a abertura ao
infinito, deparamos com uma passagem estreita e indefinida. Uma nesga de céu,
massa recortada de nuvens cinza-esverdeadas, desce até a rua e tranca a figura
dentro da cena. Essa mancha de cor meio inverossímil prossegue ao longo do muro
e junta o plano vertical ao plano horizontal. Provoca ainda o contraste com a
enorme mancha vermelha desse guarda-chuva que, muito mais que protegê-lo,
encerra o homem em seu dilema existencial. O que dizer dessa extraordinária
nota de cor? Sem dúvida, ela ilumina, dramatiza, acrescenta certa conotação
simbólica à obra. Só não sabemos bem qual. De todo jeito, concentra o núcleo
plástico da gravura: observamos o conjunto a partir de seu brilho. Também sua
forma circular contraria o sentido linear da cena e seus elementos marcadamente
horizontais e verticais. Sábia manobra arbitrária, certeira, que intriga nosso
olho e o leva a buscar harmonizá-la com o entorno. Em vão, é claro, passaremos
a vida a tentá-lo. O guarda-chuva é uma cúpula solta no espaço.
Instintivamente, ansiamos por conhecer o rosto coberto do homem, examinar sua
fisionomia. Tal qual um balão, o guarda-chuva flutua e atrai o olhar para o
alto, e ao mesmo tempo radica ainda mais o homem na terra. De costume, esses
objetos emblemáticos da poética de Goeldi oscilam, balançam junto a seus
desgarrados usuários fustigados pela onipresente tempestade tropical. Aqui,
não. Extático, soberano, ele prevalece sobre o resto e afirma sua
individualidade enigmática.
A
essa altura – a obra-prima é de 1957 – o expressionismo congênito de Oswaldo
Goeldi (1895-1961) dominava à perfeição a economia estética do suspense. Por
mais agitados que fossem seus desenhos e gravuras, apinhados de diletos
escombros e detritos, passavam sobretudo a sensação de vazio. Vazio opressivo,
porém, outra forma de claustro, a céu aberto. Reina aí, absoluta, a solidão
incomunicável. Eis exatamente o que se comunica com fervor, o que se transmite
com pungente intensidade. Presa de demorada urgência, a narrativa para no
momento propício e deixa em suspenso o desfecho. Olhamos, persistimos a olhar
para todo o sempre o homem do guarda-chuva vermelho, despojada gravura que
ganhou o lacônico título Chuva, na expectativa de que algo afinal aconteça,
quando sabemos muito bem que tal expectativa é o seu perpétuo acontecimento. A
ela irresistivelmente voltamos graças à sua infalível inteligência expressiva.
Em princípio, a estratégia é simples e manifesta: inverter, torcer,
problematizar ao máximo, com recursos mínimos, nossos arraigados hábitos
perceptivos. A começar pelo vermelho luminoso desse instrumento, à época, preto
por decreto – o proverbialmente antipático guarda-chuva, ao qual Goeldi dedica
ao longo de sua extensa obra um amor incondicional. No caso, é óbvio, ele não
representa o frívolo acessório do gentleman: é o fardo indispensável ao homem
comum em sua faina cotidiana. E reitera a vocação do artista inadaptado, na
contracorrente do mundo burguês. Ele e só ele conseguiria discernir o lugar
onde menos se espera, e portanto se destaca, um decidido vermelho de cádmio.
Goeldi o aplica a contrapelo – de fora para dentro, quase chapado, seguindo o
caminho inverso ao dos sulcos tumultuados produzidos por sua goiva, a extrair
efeitos expressivos das potencialidades intrínsecas à madeira eleita. Teríamos
aqui o segundo e, a meu ver, de longe o melhor partido da cor na obra de
Goeldi. Em vez de mimetizar os lances sinuosos da trama em preto e branco,
procurando seu equivalente cromático em tons discordantes, ele a estampa como
sinal de impacto imediato, como faziam os cartazes expressionistas.
Notem
a extrema sobriedade com que Goeldi controla a dinâmica conturbada da cena.
Enquanto, à esquerda, o casarão de ares assombrados parece afastar-se, o muro à
direita avança em nossa direção: o homem do guarda-chuva vermelho se descobre
assim entre forças antagônicas. Quem sabe, por essa razão, hesite, cativo desse
limiar: seguirá ou não os eventuais trilhos do bonde e a fileira incerta de
árvores à frente, isto é, o curso temerário de seu destino? Sairá alguém,
furtivo, de trás do muro? A julgar pelo clima grave, o homem do guarda-chuva
vermelho vive a chamada hora da verdade; há que tomar enfim uma decisão. Uma
série de indícios particulares atestaria, por outro lado, o caráter pedestre da
situação, aludiria às incontáveis miúdas indecisões que infernizam o dia a dia
do ser humano. A escolha entre as alternativas é que é falsa, ilusória –
segundo essa ética exigente, mas infinitamente solidária ao sofrimento do
próximo, toda hora é a hora da verdade.
Fonte: Blog
do IMS
Ronaldo
Brito (1949) é crítico de arte e poeta.
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