quarta-feira, junho 28, 2023

ANGÚSTIA

 

ANGÚSTIA E A ORIENTAÇÃO DO SUJEITO

Isidoro Veg


Refletir sobre a angústia é retomar uma inquietude que podemos situar no pensamento que nos antecede, em reflexões importantes como a de Kierkegaard (1972), em O conceito da angústia, que propõe a angústia como um efeito no ser da distância inexorável entre o divino, infinito, e nossa finitude. Gosto de recordar especialmente uma frase: “A angústia surge quando a liberdade se apresenta como possível, mas nada a assegura” (Kierkegaard, 1972, p. 43). Ela vai servir para o que vamos desenvolver seguindo outro pensamento, o de Lacan. Essa definição, que vem de outro campo, a filosofia, está muito próxima daquela que em algum momento nós diremos desde a psicanálise. 

Uma jornalista perguntava-me qual seria a relação entre o tema da angústia com o mundo em que vivemos, a sociedade atual. Recordando Heidegger (2007), nessa oposição que faz entre o ôntico e o ontológico, entre o mundo dos entes e o encontro com o ser como acontecer – por isso é O ser e o tempo –, a angústia emerge quando lhe damos lugar, ou seja, quando conseguimos desprender-nos, mesmo que por um tempo, de nossa captura no mundo dos objetos. 

Respondi-lhe que bastava olhar ao redor na rua e constatarmos a quantidade de pessoas que caminhavam com o celular ligado. Não faz muito, vinte anos atrás, quando alguém caminhava, pelo menos durante esse ínterim, poderia ter a oportunidade de encontrar-se com suas próprias perguntas. Agora, até esse intervalo está obturado com a voz do Outro, que essa invenção moderna, o celular, representa. É difícil chegar à nossa casa, aguardam-nos as chamadas que recebemos no telefone, os e-mails do celular e da internet, o aparelho de som, o DVD, a tela da televisão. É difícil escutar essa voz que chega desde nosso ser, desde nosso corpo, que se chama angústia. Freud trabalhou durante toda sua vida em relação a esse afeto. Conhecemos a grande divisão em sua elaboração da angústia: na primeira teoria, a angústia surge frente ao acúmulo da energia sexual, a libido, e provoca a repressão (Freud, [1895] 1980); na segunda, diz exatamente o oposto: é a repressão que provoca, como efeito, a angústia (Freud, [1926] 1980). 

Não me estenderei nisso porque pretendo começar minha exposição com um enigma. O enigma é uma frase de Lacan, dos últimos anos de seu ensino, do Seminário R.S.I. (Lacan, [1974-75]). É exatamente a frase com a qual termina esse Seminário, na lição de 13 de maio de 1975: 

É entre estes três termos, nomeação do Imaginário como inibição, nomeação do Real como o que se encontra que acontece em realidade, ou seja, angústia, ou nomeação do Simbólico, quero dizer, implicada flor do próprio Simbólico, a saber, como acontece em realidade sob a forma do sintoma, é entre estes três termos que intentarei no próximo ano, que me interrogarei no próximo ano sobre o que convém dar, como substância, ao Nome do Pai (Lacan, [1974-75], inédito)

De início, proponho esta frase como enigma, e vou centrá-la especificamente no que concerne a esta ocasião. Que sentido teria para Lacan “a angústia como nomeação do Real” (Ibid.)? E por que essas reflexões vão levá-lo à substância do Nome do Pai? No Seminário seguinte, Lacan ([1975-76]) retoma questões que já́ havia trabalhado quando o expulsaram da Internacional Psicanalítica. Nessa oportunidade, deu apenas uma aula, que intitulou Os nomes do pai (Lacan, [1963] 2005). 


Lacan trabalhou três vezes seriamente a questão das psicoses. Primeiro com o caso Aimée (Lacan, [1932] 1980); depois, quando refletiu sobre Schreber (Lacan, [1955-56] 1981), o caso freudiano; por último, quando trabalhou no Seminário Le sinthome (Lacan, [1975-76])a vida e a obra de Joyce. Em cada uma dessas três oportunidades, Lacan reformulou a estrutura; não apenas pensou a psicose, mas também a neurose. Quando trabalhou o caso Schreber, introduziu a metáfora paterna. Sabemos que, em nossa perspectiva como psicanalistas, para que uma criança nasça, no início, está o desejo do Outro, desejo da mãe, necessário, instituinte. Seguindo Freud ([1909] 1980) na sua perspectiva mais clássica, esse filho constitui para a mãe o substituto de algo do qual ela carece, e aquilo de que ela carece é o falo, e ainda mais, o falo que seu pai não lhe deu. Na terminologia psicanalítica isso é conhecido como narcisismo-mãe fálica, tempo primeiro. A metáfora paterna, como foi proposta por Lacan ([1957-58] 1998), vem formalizar o que Freud ([1913-14] 1980) já havia exposto como proibição do incesto, em que o Nome do Pai permite então que seja introduzida a dupla proibição, para a mãe e para a criança, com o benefício de que esse vivente humano, a criança, obtenha a possibilidade de constituir-se como sujeito. Isso é o que sabíamos da metáfora paterna. 

Mas agora no Seminário R.S.I., Lacan ([1974-75]) promete desenvolver algo distinto em relação à substância do Nome do Pai. E acrescenta que já́ não se trata apenas do Nome do Pai, mas do Pai do nome; e, então, fala da função de nomeação. Lembremo-nos, temos um enigma: a angústia é a nomeação do Real. De que se trata? Que é, pois, nomeação? 

Nomeação, segundo Lacan ([1974-75]), é o que permite, ao introduzir um nome, fazer furo no Real. Pode haver nomeação do Imaginário, nomeação do Simbólico, nomeação do Real. A nomeação permite fazer furo no Real, em qualquer dos três casos. Que quer dizer fazer furo no Real? 

Avancemos. Digamos que fazer furo no Real é fazer furo no gozo. Se eu digo “tu és meu filho”, prescrevo e restrinjo gozo. Prescrevo, se eu digo “tu és meu filho, tu me herdarás”. Mas “se tu és meu filho, te é proibido deitar com minha mulher”. Nomeação faz furo no gozo, furo no Real do gozo. No Imaginário, faz furo, por exemplo, no gozo do sentido. No Simbólico pode fazer furo, por exemplo, no gozo da lei. Freud ([1923-25] 1980) já dizia que quando a lei não tem matizes é a crueldade da lei, é a lei arbitrária do supereu, é o supereu sádico e cruel. O furo no gozo é o que nós encontramos em nossa clínica, nesse gozo que parasita o sintoma. 

Encontramo-nos, então, com outra surpreendente frase de Lacan. Estamos acostumados – pelo menos para os que conhecem os últimos Seminários de Lacan – a pensar que o analista deve suspender o sentido. Na conferência A terceira, Lacan ([1974]1980) foi claro: o sentido é próprio das religiões, dar sentido a um sintoma é fazer com que persista, com que dure. 

Entretanto, curiosamente, vejamos no Seminário Le sinthome, na lição de 13 de janeiro de 1976: 

“É necessário que nós façamos em alguma parte o nó, o nó do imaginário e do saber inconsciente. Que nós façamos em alguma parte uma emenda . Tudo isso para obter um sentido. Isso que é o objeto da resposta do analista ao que é exposto pelo analisante ao longo de seu sintoma” (Lacan, [1975-76], inédito). 

Surpresa! Lacan, que questionava o sentido, agora diz que nossa tarefa é devolver o sentido ao que é exposto pelo analisante. 

Quando nós fazemos esta emenda, nós fazemos ao mesmo tempo outra, precisamente entre o sintoma e o Real. Ou seja, que por algum lado lhe ensinamos a emendar, a fazer emenda, épissure, entre seu sintoma e o Real parasita do gozo, o que é característico de nossa operação (Ibid., inédito). 

Trago estes dois nós:


O que são esses dois nós? O primeiro é como Lacan ([1974-75]) afirma ser nossa estrutura: estamos compostos por três registros, que são representa- dos com anéis postos de tal modo que nenhum penetra o outro. Há o Real, cobrindo parcialmente o imaginário, e o terceiro, o do Simbólico, com uma fórmula: por cima do de cima, por baixo do de baixo. Cumpre com duas cláusulas, uma prescritiva e uma restritiva. A restritiva diz: nenhum anel penetra o outro; no entanto, estão amarrados. São três anéis que fazem uma só́ cadeia. Para res- saltar que fazem uma só́ cadeia, Lacan nem sequer os chama de cadeia, chama-os de nós. A cláusula prescritiva é que, se corto qualquer um dos três, se desfaz o nó. É uma maneira de dizer que os trêsregistros são imprescindíveis para que nossa estrutura não se desfaça.

As três ocasiões em que Lacan diagnosticou psicose – em Aimée (Lacan, [1932] 1980), em Schreber (Lacan, [1955-56] 1981) e em Joyce (Lacan, [1975- 76]) –, não disse psicose, mas Verwerfung de fato do Nome do Pai; ele o fez porque havia um erro no nó que fazia com que o imaginário se perdesse. Não vou me deter nisso. A perda do imaginário foi muito bem descrita pelos psiquiatras, são os fenômenos de despersonalização, desrealização. 

O segundo nó foi proposto por Lacan ([1974-75]) para quando se produz o sintoma, a inibição ou a angústia. Com essa escritura, explica o sintoma quando o Simbólico faz imisção no Real. Algo do Simbólico se mete no Real e faz com que algo não ande bem no Real. Um exemplo: a terra brasileira permite produzir cana-de-açúcar em quantidade duas ou três vezes maior que a produzida. Mas se chegasse a produzir além de certa quantidade, pela ordem simbólica, que é a formação econômico-social capitalista em que vivemos, poderia ocorrer a necessidade de queimar parte da colheita, mesmo que no mundo haja fome. Marx dizia sintoma, e Lacan diz que Freud tomou esse mesmo conceito de sintoma. É a imisção do Simbólico no Real que faz com que algo não ande bem no Real. E isso que não anda bem tem a ver com um gozo que está representado por esta letra a. Uma letra a, que, para Lacan ([1962-63] 2004), tem dois valores: objeto de gozo pulsional, plus-de-jouir, ou, quando falta, objeto causa de desejo.

A frase anteriormente citada do Seminário Le sinthome (Lacan, [1975-76) refere que, se fazemos emenda nesse lugar, podemos também fazer emenda nesse outro, e isso permite que o sujeito perceba o gozo parasitário que o retém. O que isso quer dizer? Que não se trata apenas do Nome do Pai, mas dos nomes do pai. E quais são os nomes do pai que Lacan nos propõe? Os nomes do pai são o Real, o imaginário e o Simbólico. Como pode ser que esses sejam os nomes do pai? Eles o são pelo que Lacan ([1974-75]) chama de effet d’arrêt, efeito de detenção. Exemplo: o que pode deter a crueldade de um supereu sádico? A ternura, o amor. O que pode deter o sentido imaginário, esse que convida à homeostase, a que nada mude? Uma irrupção do Real, a angústia. Cada registro pode, se está bem orientado – e isso já́ tem a ver com o título de meu trabalho, A angústia e a orientação do sujeito –, fazer-se limite e, portanto, nome do pai aos outros registros. 

Proporei agora um efeito de retroação, um convite. No ano de 1955, Lacan falou em Viena, em uma homenagem a Freud ocasião em que propôs um retorno a Freud: o sentido do retorno a Freud que propunha é o retorno ao sentido da obra de Freud. Já́ se passou mais de um quarto de século desde a morte de Lacan, e parece-me que nos encontramos, em certa medida, com um fenômeno similar aos tempos do pós-freudismo. Há psicanalistas que se dizem devedores do ensino de Lacan e só́ reconhecem sua primeira etapa; outros, por sua vez, tomam algum Seminário dentre os últimos e só́ reconhecem essa última etapa; outros tomam uma frase isolada; outros dizem diretamente “Lacan já́ acabou, chega de nós, de metáfora paterna”. Proponho, como um convite, um retorno a Lacan, do mesmo modo que Lacan o propôs com a obra de Freud. Não para escolher entre o primeiro Lacan ou o último Lacan, mas para fazer o que, como método, podemos chamar de “as dobras do texto”. E quero mostrá-lo em ato. 

O recém exposto desdobra elaborações pertinentes aos últimos Seminários. Retomemos o Seminário A angústia, proferido num tempo muito anterior e do qual só́ vou sublinhar algumas partes: “Dizem que eu nunca falei dos afetos. Senhores, dediquei um ano a um afeto. A angústia é um afeto” (Lacan, [1962- 63]) 2005, p. 23). Duas importantes sentenças lacanianas nos guiam: “A angústia surge ante o desejo do Outro” (Ibid., p.14) e “A angústia não é sem objeto” (Ibid., p. 101). Como juntar essas duas sentenças? O que significam? Que dobra de texto se pode fazer entre elas e o que recém dissemos sobre os nomes do pai? Lembremo-nos, com Freud ([1926] 1980) e com Lacan ([1962- 63] 2005), de que estamos falando da angústia como sinal. Sinal de quê? De algo que aparece no Eu, mas se dirige ao sujeito. E se dirige ao sujeito para dizer-lhe: “Estás enredado como objeto para o desejo do Outro”. É um bom sinal, se é escutado. O pior que podemos fazer é suprimir a angústia. Perdemos o semáforo. Que diz a angústia? Quando a angústia emerge quer dizer que, pela primeira vez – como já dizia a seu modo Heidegger, ou Kierkegaard, acerca da liberdade –, o sujeito vislumbra o umbral por onde poderia passar. Lacan ([1973] 1975) costumava dizer que passava o tempo passando o passe. Passar de onde? Desse lugar de objeto para o desejo do Outro – às vezes para o gozo do Outro – a outro lugar, no qual o sujeito pode avançar em seu desejo. Implica, então, uma dimensão de tempo. 

Trata-se, então, da orientação do sujeito. Dizemos que o nó é R.S.I.; em francês, é homófono de hérésie, que quer dizer heresia. Se o sintoma é a imisção do Simbólico no Real, a inibição surge quando o imaginário faz imisção no Simbólico, e a angústia quando faz cair o véu imaginário e apresenta ao sujeito o objeto em que está retido, podemos entender que a angústia é uma nomeação, no sentido de que anuncia a necessidade de um gozo a ser perdido. E perder esse gozo é orientar o nó, dar a ele sentido vetorial. É assim que leio a frase do Seminário Le sinthome (Lacan, [1975-76]), já citada: nossa tarefa é dar- lhe sentido. Um sentido que implica que o Real faca limite ao Simbólico; que o Simbólico, o inconsciente, faça limite ao Imaginário; que o Imaginário volte logo a cobrir esse Real que irrompe. 

Orientação vetorial implica consequências na orientação da cura. Não poderíamos concluir que o analista tem direito a intervir no imaginário, com intervenções sugestivas, no Simbólico, com a clássica interpretação, e no Real, com intervenções no Real, na medida em que cada intervenção responda à lógica adequada? E qual é a lógica adequada? É a lógica do ato. A tarefa, para Lacan ([1967-68]), é do analisante; o ato, do analista. 

O tempo da angústia é o tempo prévio ao corte. O corte se anuncia, mas nada assegura que ele se produza – estou parafraseando a frase de Kierkegaard (1972): a liberdade se anuncia como possível, mas nada assegura que seja lograda. Anuncia-se o corte com o gozo parasitário, mas nada assegura que ele seja logrado. E encontramos que efetivamente há uma diferença entre o modo de pensar a castração em Lacan e a maneira de pensá-la em Freud. Em certos lugares, a castração em Freud ([1909] 1980) é uma ameaça da qual é possível salvar-se, renunciando ao gozo incestuoso. Com Lacan ([1962-63] 2004), o pior que poderia acontecer é que a castração não se produza, porque não é a castração imaginária do órgão, mas a castração do Outro: quando posso me subtrair, como objeto, do lugar em que completava o Outro, deixar o Outro com seu buraco. 

Trata-se, então, para concluir, de uma heresia que a psicanálise nos propõe, que não consiste no corte do nó. O nó neurótico, diz Lacan, é irrompível. É o corte com o gozo parasitário que faz com que seja tão difícil que um sintoma se apague. O corte produz, (vejam que paradoxo!), o bom enlace dos registros, não o corte dos registros, mas, sim, o bom enlace do Real, do Simbólico e do Imaginário. Poderíamos então dizer que se o ato se produz, o analisante passa da culpa com o Outro – culpa inexorável quando persiste em querer satisfazer o que o Outro lhe demanda, porque nunca o logrará – à culpa do Real, do Real do gozo. Eu diria que passa a ser responsável pelo Real do gozo, pelo destino da pulsão que o habita, que não é igual quando parasita o sintoma e quando se enlaça ao desejo do sujeito. 

Para dizê-lo de forma resumida, como o diz habitualmente muito melhor o poeta argentino, falecido há poucos anos, chamado Roberto Juarroz. Escreveu uma só́ obra ao longo de sua vida, que se chama Poesia vertical (1978). 

Um de seus poemas diz assim: 

Sobre que lado se apoia mais a ternura do homem? 

Sobre seu peito, sempre relativamente aberto?
Sobre suas costas, sempre relativamente abandonadas? 

Sobre seu perfil, sempre relativamente alheio? 

Sobre que lado se abre o voo que levamos,
O fruto que levamos,
O zero que levamos?
Sobre que lado é o homem possível para o homem?

(Juarroz, 1978, p. 109). 

Se encontramos alguma resposta, podemos então ajudar nossos analisantes a fazer de um destino, um estilo.

Apêndice:

Pergunta: Que é o bom enlace entre Real, Simbólico e Imaginário? 

Jaime Betts: Se pensarmos naquilo que o cotidiano promove, a dissolução do enlace entre o Real e o Simbólico, como pensas os efeitos subjetivos disso? 

Isidoro Vegh: São duas perguntas que podemos enlaçar: o bom enlace entre Real, Simbólico e Imaginário e o efeito da dissolução desse bom enlace. Lacan precisou algo que para os matemáticos não tem relevância: estender um dos três anéis de um nó borromeano, aumentá-lo, para que cubra mais superfície de outro dos anéis, não é relevante para a topologia. Mas Lacan não era topólogo, era psicanalista; necessitava pensar aquilo que sua clínica lhe apresentava: sintomas, inibições, angústias, psicoses, neuroses, perversões. Distintas manifestações, dentre as quais algumas conseguiu-se escrever com o nó. Outras podem ser melhor lidas com o grafo que Lacan trabalhou nos primeiros Seminários, As formações do inconsciente ([1957-58]1998), O desejo e sua interpretaçã([1958-59]). Lembro-o para os que conhecem os grafos: se olhar- mos os circuitos do grafo, podemos ver que há um circuito no qual, saindo do lugar da pulsão, passa-se pelo fantasma e vai-se direto ao sintoma. Mas pode haver outro circuito, que passa pelo lugar da castração, e será́ diferente. Não se trata do mesmo quando a pulsão se enlaça ao desejo e quando a pulsão está desenlaçada do desejo. Por exemplo: chego à minha casa cansado, depois de trabalhar, e vou à cozinha. Como sou neurótico e tenho ainda a barreira do pudor, averiguo se não tem ninguém por perto, e então me lanço sobre a geladeira e pego com a mão um pedaço de queijo, que sei que não devo fazer, gosto e pego outro. É um pequeno exemplo do que chamamos de premência pulsional. É diferente, por exemplo, se me convidam a um jantar de amigos. Tenho muita fome, quero comer já. Mas se enlaço isso ao desejo, que é estar com meus amigos no laço social, compartilhando esse momento, não posso me atirar sobre a mesa, tenho de esperar. É o enlace da pulsão com o desejo. 

Quanto aos efeitos contrários, por exemplo, um efeito extremo. Lacan ([1975-76]), quando trabalha a estrutura de Joyce e propõe um nó que a representa, aponta um erro aqui: nesse lugar onde tem que passar por baixo, passa por cima.


Se aqui passa por cima, o Imaginário pode ser tirado, perde-se. Como lemos isso na clínica? Há um parágrafo no Retrato do artista quando jovem (Joyce, 1986), que relata quando seus companheiros o castigam, batem nele porque ele se nega a corrigir sua afirmação de que o melhor poeta inglês é Lord Byron. Era um colégio católico, com muitos preconceitos. Dão-lhe uma surra terrível e Stephen Dédalus, o protagonista, próximo ao autor, Joyce, diz, que o que mais o surpreende é que não consegue sentir ódio, que o ódio se vai como se a pele se desprendesse. É uma magnífica descrição literária dessa perda do imaginário. Aí teríamos um exemplo desse efeito. 

Outro exemplo contrário, que eu me animo a propor como boa intervenção analítica: uma paciente depressiva, tomada pela angústia – essa irrupção do Real que quebra o imaginário –, vem à sessão dizendo que tudo está mal, que não sabe como vai poder superar a morte de um familiar querido que se soma à morte de outro. Quando termina a sessão, a única coisa que encontrei para dizer-lhe foi: “Que blusa bonita que está vestindo hoje”. Alguns poderiam perguntar: “Mas o que é isso, cognitivismo, psicoterapia?”. Não, é fazer funcionar o Imaginário como nome do pai, que limita a irrupção do Real do gozo, em que ela se identificava ao nada. Trata-se de situar adequadamente a lógica. Por isso, digo a meus alunos em Buenos Aires, quanto mais se avança na teoria, na lógica, mais livre se é na pratica. Por isso, Freud ([1893-95] 1980) podia atender Katharina nas escadarias da montanha sem ter medo de que o enquadre se perdesse. A história da psicanálise mostra que, quando a lógica foi esquecida, o enquadre tornou-se rígido, porque não se sabia muito bem o que definia a especificidade da prática da psicanálise. 

Gérard Pommier: A partir do que disseste sobre a nomeação, que faz furo, me parece interessante, na tua maneira de propô-lo, acrescentar a distinção entre o ato de nomear – a nomeação é mais precisamente o próprio ato – e o nome dado pelo ato. Ao se fazer essa distinção, nota-se que o que faz furo é o próprio ato, ou seja, fazendo uma nomeação, o ato se subtrai ao Real, é ele próprio que está no exílio do Real. A segunda observação que fizeste a propósito foi tomar um exemplo do Nome do Pai, que proíbe o gozo da mãe. É importante notar que, no momento em que o sujeito é nada, no exílio do Real, o nome lhe dá um lugar, o Nome do Pai. No mesmo momento, há uma subtração de gozo e nomeação dele, mesmo como sujeito. É uma implicação muito difícil de entender, com teus desenhos, entre o Real e o Simbólico. Mas o Simbólico não são as palavras, as palavras em si mesmas podem matar; não é especialmente a lei. É respeito unicamente à questão da nomeação do sujeito em seu ato de nomear que faz Simbólico.

A segunda pergunta é a propósito dos nós borromeanos em si mesmos, ou R.S.I., da maneira de utilizar esses instrumentos. Não se trata de conceitos; são coisas qualitativas, permitem dar certa qualidade a conceitos, e a melhor prova é que escreveste conceitos: angústia, inibição, gozo, sentido. Não te parece que estamos na mesma posição de Lacan de fazer um retorno a Freud com outros instrumentos? Somos fundamentalmente freudianos, apesar do fato de que podemos utilizar instrumentos dados por Lacan. Minha questão é: que quer dizer ser lacaniano? 

Isidoro Vegh: No nó que Lacan ([1974] 1980) apresentou em A Terceira, ele pós “sentido”, “vida”, “morte” e “corpo”.


Não figura o matema “sujeito” neste nó. Não é chamativo? Pois Lacan ([1965] 1966) muitas vezes disse que o objeto da psicanálise é o sujeito. Do que expõe Gerard, entendo que, efetivamente, para que a nomeação seja propiciatória para o analisante, ela tem de ser formulada de tal modo que lhe permita ex-sistir, no duplo sentido da existência. Lacan propõe ex-sistir desse modo: ex (fora), sistere (do lugar). 

A palavra sujeito é proposta por Lacan em vários tempos de modo diferente. O primeiro tempo é o do sujeito do significante (Lacan, [1964] 1979). Depois falará do sujeito do fantasma (Lacan, [1966-67] inédito); depois, do sujeito acéfalo da pulsão (Lacan, [1964] 1979). Também falará no fim de análise de um sujeito advertido (Lacan, [1967-68] inédito). Eu proponho – é minha maneira de responder a Gérard – que há um sujeito que ex-siste ao nó. Este nó não tem escrito o matema “sujeito”, porque este nó escreve o sujeito, quando está bem amarrado. 

Assim também seria em nossa clínica. Quando a nomeação está mal enlaçada, nossos analisantes vivem a iminência do corte como uma queda no abismo. Ajudá-los a fazer o bom enlace é ajudá-los a observar que passar por esse corte é encontrar-se com um vazio, pois vazio não é igual a nada. Um vazio é algo que me incita, que me estimula a criar, a inventar. 

Quanto à segunda pergunta de Gérard – a respeito de que os nós borromeanos não são conceitos –, realmente é o que eu proponho com as dobras do texto. Lacan disse: “eu sou freudiano; vocês, se quiserem, sejam lacanianos” (Lacan, [1980] 1982, p. 5). Que é ser lacaniano? A meu ver, ser lacaniano é fazer com a obra de Lacan o que ele nos mostrou que fez com a obra de Freud: conversou com Freud durante toda sua vida. Algumas vezes propôs coisas distintas; em outras, deu-se conta de que havia se equivocado e voltou a Freud – como aconteceu com as três identificações que desenvolveu no Seminário L’insu (Lacan, [1976-77]). É muito variada a relação. Na epígrafe do texto Televisão, há uma frase atribuída a Lacan: “Aquele que me interroga também sabe me ler” (Lacan, [1973] 2003, p. 508). É preciso interrogá-lo. Qual é, então, a vantagem do nó? É minha leitura, algo a ser discutido: com o nó, Lacan consegue introduzir na estrutura algo que é do Real, a vida. Ele diz que é o Real do Real. Creio que aí Lacan já não está discutindo com psicanalistas, mas com neonietzschianos, com Foucault, com Deleuze, enfim, é outra história. E faz o que se chama uma mostração. Mas mostração não significa ficar definitivamente posta de lado à demonstração. Apelar à topologia, que em algum lugar Lacan ([1974-75]) diz que é do Real, em outro, que é imaginária (Lacan, [1975-76]), dá distintas variantes; para mim, não quer dizer renunciar ao conceito. Creio que é impossível ler Lacan sem transitar pela obra de Freud, nisso coincido totalmente com o que diz Gérard.

Edson de Sousa: Queria retomar o tema das três nomeações, em relação ao Simbólico, Imaginário e Real. Minha pergunta é uma reverberação do que Gérard Pommier acaba de colocar, mas vou tentar fazê-lo por outra via. Todo conceito busca uma forma; qual seria a forma do Real? Gosto muito da proposição de George Bataille (1969), o “conceito” de informe. Seria um “conceito” – ele mesmo o diz com todas as letras – que serviria para desclassificar. À semelhança de Freud, quando no final dos Três Ensaios de teoria sexual (Freud, [1905]1980), confessa não ter conseguido capturar em teoria a dimensão sexual. O último parágrafo é uma confissão de fracasso, como se nesse âmbito só́ se pudesse falar na dimensão ensaística – daí o título Três ensaios de teoria. Partindo dessa proposição de Bataille, esse objeto injeta um “fora”, e Lacan ([1975-76]), em vários momentos, insiste no Real como um “fora da linguagem”. Qual seria a particularidade da nomeação do Real? Pensando, por exemplo, em algumas alusões feitas não apenas por Lacan ([1975-76]), mas também por outros autores, em relação ao que não se pode nomear – o nome de Deus, por exemplo, esse inominável – mas se pode escrever. E essa mesma escritura falha. Eu queria discutir um pouco sobre essa problemática que me parece crucial, pela inovação que a teoria e o discurso lacanianos trazem com a categoria do Real e o objeto a, que Lacan ([1962-63] 2004) diz ser sua única invenção.

Isidoro Vegh: Muito obrigado pela pergunta, poderia incitar-nos a fazer um Congresso. Para responder algo: não surpreende que Lacan nunca tenha dito “jovem analista, escute o significante”? Lacan dizia: “Leiam a letra”. Temos uma pergunta. Se a primeira definição lacaniana de sujeito é “o que um significante representa para outro significante” (Lacan, [1964] 1979, p. 135), poderia dizer-se “vou estar atento ao significante”. No entanto, ele disse “leiam a letra”. Isso quer dizer que deve haver alguma diferença entre letra e significante. Agora direi por que mencionei isso. Sabemos que a definição lacaniana mais forte do Real é que o Real é o impossível. Às vezes, isso pode levar-nos à confusão, a crer que o impossível é o inexistente. Não, a inexistência é uma das formas do Real. Mas o Real que mais nos interessa como analistas, Lacan ([1975-76) o diz textualmente, é o Real do gozo. Efetivamente, o Real é o impossível, o impossível de ser coberto totalmente pelo Simbólico ou de ser coberto totalmente pelo Imaginário. É o que ex-siste, está fora do Simbólico e fora do Imaginário. É informe, como diz Bataille (1969), porque não tem a forma, a gestalt do Imaginário, e está fora de toda lei, porque não responde à lei simbólica. Mas, para não fazer uma mística da psicanálise – e a psicanálise não é uma mística – Lacan nos lembra: “o Real que eu menciono é sempre um Real amarrado” (Lacan, [1974-75]). É o que permite que a letra o bordeje, letra como litoral entre o saber significante e o gozo do objeto. 

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. Dicionário critico. In: Documentos. Caracas: Monte Ávila, 1969. FREUD, Sigmund. Estudios sobre la histeria (Breuer y Freud) [1893-95]. In: FREUD. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1980. v. 2.
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_____ . Tres ensayos de teoría sexual [1905]. In: Ibid. v. 7.
_____ . Sobre las teorías sexuales infantiles [1908]. In: Ibid. v. 9.
_____ . Análisis de la fobia de un niño de cinco años (el pequeño Hans) [1909]. 
In: Ibid. v. 10.
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_____ . El Yo y el Ello [1923-1925]. In: Ibid. v. 19.
_____ . Inhibición, síntoma y angustia [1926]. In: Ibid. v. 20.
HEIDEGGER, Martin. El ser y el tiempo. Buenos Aires: Fundo de Cultura, 2007. JUARROZ, Roberto. Poesia vertical. Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1978. KIERKEGAARD, Sören. El concepto de la angustia. Madrid: Espasa-Calpe, 1972. JOYCE, James. Retrato del artista adolescente. Madri: Lumen, 1986.
LACAN, Jacques. De la psychose paranoiaque dans ses rapports avec la personalité [1932]. Paris: Seuil, 1980.
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̂ncia e a verdade [1965]. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.]
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_____ . Le séminaire, libre V, Les formations de l’ inconsciente [1957-58]. Paris: Éditions du Seuil, 1998. [Ed. bras.: O seminário, livro 5: as formac
̧ões do inconscien- te [1957-58]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.]
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_____ . Séminaire, Logique du fantasme [1966-1967]. ( versión inédita)
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_____ . Seminario R.S.I. [1974-75]. (versión inédita)
_____ . Seminario Le sinthome [1975-76]. (versión inédita) [Ed. bras.: O seminário, livro 23: o sintoma [1975-76]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.]
LACAN, Jacques. Séminaire, L’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre [1976- 77]. 
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Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.]
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_____ . Seminario de Caracas [1980]. In: Actas de la reunión sobre la enseñanza de Lacan y El psicoanalisis em America Latina. Caracas: Ateneo de Caracas, 1982. 

quarta-feira, junho 21, 2023

VERDADES INVENTADAS: GRUPO DE LEITURA


 

No próximo encontro do grupo de leitura, Verdades Inventadas, leremos o texto de Freud, O Moisés de Michelangelo. Freud publicou esse estudo na Revista Imago em 1914, sem a menção de seu nome, ou seja, como um texto anônimo. Em seu texto, ele examina detalhadamente o "Moisés" de Michelangelo, a magnífica estátua que representa o grande líder hebreu com sua expressão poderosa e imponente. Por meio de uma extensa pesquisa dos estudos publicados sobre essa obra de Michelangelo e com base na teoria psicanalítica, Freud constrói sua análise sobre as possíveis interpretações dessa poderosa obra do artista renascentista. Na confluência entre arte e psicanálise, a análise freudiana suscita questões fundamentais sobre uma possível teoria estética psicanalítica.


O encontro do grupo de leitura acontece pela plataforma Zoom, sempre na últimas terça feira do mês. Em junho, será no dia 27, das 19H às 21H. 


Maiores informações: www.usinadizer.com.br

A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS

  (O) Curso Livre (da) Formação chega ao 23º Módulo abordando o tema   “A clínica hoje: Os novos sintomas” e acontece nos dias 01 e 02 de m...