terça-feira, maio 22, 2012

Luto e perplexidade


Aprendemos que tudo tem razão de ser - e aí vem a tragédia do menino de 10 anos que se matou

Luto e perplexidade

Artigo publicado no Estadão – Caderno Aliás - 25 de setembro de 2011
JORGE FORBES




Escrevo o que ninguém quer ler nem ouvir falar: não existe nenhuma fórmula, nenhum procedimento ou protocolo que tenha capacidade de prever uma atrocidade como a de um menino de 10 anos roubar o revólver do pai; esconder a arma, quando perguntado pelo próprio pai; atirar na sua professora; e em seguida se matar.

É esperado que sejamos nestes próximos dias bombardeados com detalhes da vida desse menino: suas leituras, amizades, humores, ascendência familiar, credos, hábitos, notas escolares, desenhos, bilhetes eletrônicos, tiques, sexualidade, estranhezas. Tudo é bom, tudo serve, para a tentativa desesperada de estabelecer um nexo causal. Somos filhos do Iluminismo. Aprendemos desde pequenos que tudo tem uma razão de ser e, se não compreendemos, a falha não está no saber - pois o saber é sem falha -, mas no raciocínio imperfeito.

A sociedade ainda não suporta constatar que a pós-modernidade nos fez órfãos do Iluminismo porque isso é desesperador. E agora que a festa do "tudo é explicável" acabou? Como suportar não saber se aquele garoto um pouco arredio não é o próximo assassino de si mesmo ou de alguém? Se insistirmos em causalidades forçadas, vamos criar uma sociedade irrespirável. Afinal, qual de nós não tem a sua esquisitice? Já se fala que a professora teria notado um comportamento diferente no menino e não lhe teriam dado atenção. Já se fala que o pai deveria ter prevenido a direção da escola sobre o desaparecimento da arma. Como é fácil ser profeta do passado! Duro é constatar que estamos em uma época na qual esses crimes inusitados são um dos tipos de manifestação.

Há poucos dias, a presidente, em nosso nome, disse na abertura da Assembleia-Geral da ONU: "O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo". Está correto e é válido para além da crise econômica: vivemos nos amparando nas teorias defasadas de um mundo velho, sim. Quem duvida que uma das interpretações que mais vai se fazer é a de que o menino se identificou com o pai policial? Ou que, ao contrário, para provocar o pai, teve um comportamento de bandido? Ou, pior, que por ódio ao pai se matou com seu instrumento?

Estamos desbussolados. Os sintomas de nossa inaptidão para viver neste novo mundo estão sendo tragicamente anunciados. Ontem, foi o moço da Noruega; hoje, o garoto brasileiro. Tão distantes e tão perto. Quando tudo parecia tão bem, tão perfeito: bom filho, boas notas, ia à igreja e até tocava bateria... ocorre o acidente, o fato inusitado, que nos deixa pasmados, ignorantes de nossa condição humana.

Urge, assembleia-geral de uma nova época, urge que abandonemos nosso conforto iluminista do tudo tem sua razão: essa luz ficou fraca, está nos deixando na sombra e liberando monstruosidades. A psicanálise tem novas contribuições para o momento atual. Não se trata mais do Freud explica, mas do Freud implica. O Freud explica é do tempo da revelação do saber escondido, fora da consciência, no inconsciente. O Freud implica é de agora, da constatação de que, de uma sociedade da razão, fomos a um novo tipo de laço social: o ressoar, "tá ligado?". Essa é a pergunta dessa geração que está aí, a geração mutante. Seus membros não perguntam se o que ele disse você entendeu, mas se lhe tocou, se você pode fazer alguma coisa com o que ele falou, não a mesma coisa feita por ele, mas algo marcado, atravessado por sua singularidade, necessariamente diferente da dele, daí o "tá ligado?".

O que se teme é que então estaríamos caminhando para uma esbórnia geral de comportamentos individualistas. Falsa conclusão de nossas mentes viciadas na segurança da razão padronizada. A sociedade do ressoar exige um duplo movimento de cada um: invenção e responsabilidade. Invenção, pois quando falta o caminho pré-estabelecido há que se inventar um. E responsabilidade, pois se deve inscrever no mundo a sua invenção, motivo pelo qual o medo do individualismo não se sustenta.

Para isso, uma guinada de 180 graus nos é exigida. A educação, sem dúvida, é um dos principais setores dessa mudança que já tarda. Em vez de medicalizar o aluno supostamente inadequado à escola, como tem sido feito nos últimos anos, amparados abusivamente no diagnóstico de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), melhor questionar a escola; não essa ou aquela, mas a instituição escolar, se ela está preparada para uma sociedade viral, das redes horizontais, da criatividade responsável. Na medida em que pudermos habitar esse novo mundo com uma nova bússola, na medida em que ampliarmos a legitimação das singularidades, seremos menos surpreendidos. Estamos atrasados.

segunda-feira, maio 21, 2012

Finnegans Wake de James Joyce


Dirce Waltrick do Amarante lança guia de leitura sobre James Joyce
Esse trabalho não é novo, mas vale a pena conhecer.



Ieda Magri, Jornal do Brasil

Para ler Finnegans Wake de James Joyce, de Dirce Waltrick do Amarante, é uma entrada nos bastidores da elaboração do último livro do escritor irlandês, uma espécie de guia de leitura bastante sofisticado, já que não se furta de comentar os muitos estudos feitos por pesquisadores do mundo inteiro sobre este romance considerado de difícil leitura, e ainda uma ousada investida na tradução de um de seus capítulos, o oitavo, intitulado Anna Livia Plurabelle .
Desse modo, pode-se pensar nele como uma enorme ficha de leitura que acompanha esta obra de James Joyce, já traduzida no Brasil, primeiro por Augusto e Haroldo de Campos, e depois por Donald Schüller, esta em versão integral.
As duas traduções brasileiras são amplamente citadas e recomendadas pela autora, cujo esforço mais visível e digno de nota é oferecer tanto ao leitor interessado apenas em conhecer a obra de Joyce, como a estudiosos do livro, a mais ampla gama de informações pertinentes à leitura. Numa época em que o Finnegans Wake é preterido mesmo nos cursos de letras pela sua dificuldade de leitura, o esforço é louvável e certamente contribui com os estudos de literatura dentro e fora das universidades. Dirce Waltrick do Amarante é professora e certamente conhece a contribuição que pode dar um roteiro de abordagem de uma obra desse porte.
Mantendo as citações do Finnegans Wake na língua original e fazendo a tradução para o português, o livro permite a tradução também do leitor que quiser se aventurar nos jogos de linguagem propostos por Joyce. É interessante perceber as opções da tradutora para as palavras-valises, os trocadilhos, as paródias e, principalmente, para as combinações de palavras de línguas diferentes. Uma leitura da mesma passagem do Finnegans Wake, traduzida por Dirce Waltrick do Amarante, por Augusto e Haroldo de Campos e por Donaldo Schüller, dá uma ideia das opções de cada um no que diz respeito à participação do tradutor na versão do texto original. Certamente o conceito usado por Augusto e Haroldo de Campos é mais pertinente para o caso: a tradução do Finnegans Wake é, na verdade, sempre uma transcriação.
Vejamos o original de James Joyce: Who? Anna Livia? Ay, Anna Livia. Do you know she was calling bakvandets sals from all around, nyumba noo, chamba choo, to go in till him, her herring cheef, and tickle the pontiff aisy-oisy? She was? Gota pot! Yssel that the limmat? As El Negro winced when He wonced in La Plate .
Agora vejamos a versão de Augusto e Haroldo de Campos: Quem? Anna Livia? Sim, Anna Livia. Sabe que ela transandou com tudo quanto é salso, nyumba nu, chamba chu, pra ir atrás dele, seu patrão patrusco, e tiltirar o sumo patífice no betsiboca? Ela foi? Yssel é o finn! Você limmata! Como El Negro piscou quando pescou em La Plata .
A versão de Donaldo Schüller para o mesmo trecho: Anna Livia? Ai, Anna Livia. Sabes que ela chamava garotas dos arredores à casa úmida, ao esconderijo, para visitá-lo, Salso para seu Arenque-chefe, excitar o pontífice, Toc-an-tins, Toc-em-mins. Foi ela? Deus do léu! N Yssel a não chegou ao limite? Como quando El Negro dormiu com La Plata .
E, por fim, a de Dirce Waltrick do Amarante: Quem? Anna Livia? Ah, Anna Livia. Sabias que ela estava chamando backseatantes gilrotas de toda parte, nyumba noo, chamba choo, para ir até ele, seu comandante transgressor, e excitar o pontífice daqui-dali? Estava? Deudossel é o cúmulo! Assim como El Negro recuou quando ele triunfou em La Plata.
O fragmento escolhido como exemplo é justamente o que cita os rios brasileiro e argentino e serve como amostra do que pretendeu Joyce: Centenas de rios percorrem o texto. Creio que se move.
Dirce Waltrick do Amarante nos dá informações interessantes sobre as primeiras traduções do livro, das quais Joyce participa e orienta. O capítulo 8, por exemplo, foi traduzido pela primeira vez em 1931, para o francês, por uma equipe constituída por Samuel Beckett, Eugene Jolas, Paul Léon, Alfred Perron, Ivan Goll, Adrienne Mounier e Phillipe Soupault.
O método utilizado é interessante. Depois de feita uma primeira tradução por Samuel Beckett, mais dois professores fizeram a revisão e só então ela foi submetida a Joyce que, todas as quintas-feiras, se reunia com a equipe para ler em voz alta as duas versões: Às duas horas e meia da tarde, o senhor Joyce chegava e começávamos imediatamente a trabalhar. Instalávamo-nos em torno de uma grande mesa redonda. O senhor Joyce numa poltrona fumava Maryland. O senhor Léon lia o texto em inglês e eu [Phillipe Soupault] seguia com a versão francesa revista. Paul Léon destacava uma frase do texto em inglês, eu lia a tradução da frase e nós discutíamos. Repelíamos, de acordo com o senhor Joyce, aquilo que nos parecia contrário ao ritmo, ao sentido, à metamorfose das palavras e tentávamos de nossa parte propor uma tradução. Essas sessões duravam três horas.
Sendo um texto plurilíngue foi escrito numa mescla de palavras em 65 idiomas diferentes é comum a afirmação, segundo Dirce Waltrick do Amarante, de que o tema do Finnegans Wake era pretexto, e que o verdadeiro leitmotiv da obra de Joyce era a linguagem.
A autora dedica uma parte de seu livro para comentar as implicações políticas da experimentação linguística de Joyce, afirmando, de acordo com outros pesquisadores, como Phillipe Sollers, a dimensão política do Finnegans Wake, que em sua criatividade e crítica inclui a questão da identidade irlandesa, dentro de uma concepção universal da história . Para Dirce, parece que Joyce quis despertar do pesadelo da história irlandesa (para usar a expressão de Stephen Dedalus no livro Ulisses) através da destruição/reinvenção da linguagem do vencedor.
Assim, também a proposição de traduzir Anna Livia Plurabelle contém em si mesma um ato político, qual seja o de trazer a público a primeira versão feminina do texto de Joyce, já que todas as versões citadas em Para ler Finnegans Wake de James Joyce são assinadas por homens. Creio, porém, que a apresentação assinada por Aurora Fornoni Bernardini, na orelha, força a mão na recomendação do livro por esse viés, afirmando ter este trabalho contribuído para uma visão de Joyce como um aliado do feminismo. À exceção do posfácio, da própria autora, o livro não busca no Finnegans Wake, nem em James Joyce, um aliado do feminismo, senão dar ao leitor algumas chaves de leitura para que conheça as técnicas usadas por Joyce na composição da obra.
A tradução de Anna Livia Plurabelle é, portanto, iluminada pelo conhecimento do contexto de produção e publicação da obra, das traduções já feitas e das técnicas de criação do texto, o que faz com que o leitor procure abordá-lo de diversas maneiras: pelo som do rio Liffey, pelo jogo de encontrar os inúmeros nomes de rios que Joyce cifrou no texto, pela montagem de palavras com radicais de diversos idiomas, pelo modo de falar das duas lavadeiras que estão em cena, pelo tema, ou seja, pelo que falam a respeito de Anna Livia Plurabelle. A possibilidade de confrontar a tradução de Dirce com o original de Joyce garante uma riqueza a mais que, por sua vez, permite conferir as técnicas antes descritas.
Assim como a equipe que primeiro traduziu Anna Livia Plurabelle , Dirce Waltrick do Amarante também realizou leituras com falantes nativos do inglês e do português antes de firmar a versão final do texto. Uma em Cambridge, com a professora de literatura e língua inglesa Joanna Parker, e outra no Brasil, com o auxílio do poeta e professor de literatura da UFSC, Sérgio Medeiros.
Fonte: Jornal do Brasil, 02/11/2011.

quinta-feira, maio 17, 2012

"Só um novo humanismo pode frear o niilismo", afirma Julia Kristeva



"A necessidade de acreditar é uma necessidade pré-política e pré-religiosa, sobre a qual se apoia o desejo de saber. Reconhecendo a importância dessa necessidade, nós, ateus, podemos favorecer o diálogo entre crentes e não crentes, para combater, de um lado, o niilismo e de outro, o integralismo".

Linguista e psicanalista, ensaísta e romancista, Julia Kristeva, depois de "Il genio femminile" [O gênio feminino], a trilogia dedicada a Hannah Arendt, Melanie Klein e Colette, publicou "Bisogno di credere" [Necessidade de crer] (Ed. Donzelli), um texto em que, mesmo sem renunciar às suas convicções filhas do Iluminismo, confronta-se com o universo da fé. Um diálogo que atravessa também "Teresa mon amour. Santa Teresa d`Avila: l`estasi come un romanzo" (Ed. Donzelli), um livro entre romance e ensaio, que analisa a personalidade e os escritos da santa espanhola do século XVI. Justamente sobre Teresa D`Ávila, a estudiosa francesa falou nesta segunda-feira na Basílica de Massenzio no encerramento do Festival das Literaturas.



“Comecei a me ocupar de Teresa quase por acaso, descobrindo um personagem extremamente complexo, rico e atual", explica Kristeva, que está envolvida agora com a produção de um novo romance. "Hoje, o choque de religiões é uma realidade que não podemos ignorar. O diálogo, portanto, é necessário. A Europa – talvez por ter conhecido a violência e o horror ligados às religiões, das Cruzadas ao Holocausto – empreendeu, antes com o Iluminismo e depois com as ciências humanas, um percurso de atravessamento da religião. Não para guilhotiná-la, como fez a Revolução Francesa, ou para encerrá-la dos gulags, como ocorreu na União Soviética, mas sim para tentar `transavaliá-la`, como diria Nietzsche. Por meio do caso concreto de Teresa, procurei dar a minha contribuição a esse percurso de atravessamento".

A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 21-06-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.


F.G. Por isso, Dom Gianfranco Ravasi convidou-a para participar do diálogo entre crentes e não crentes. Parece-lhe uma oportunidade?

J.C. Hoje, ainda mais do que o diálogo inter-religioso, é preciso promover o diálogo entre quem crê e quem não crê, principalmente na Europa. Pertenço àqueles que, nas palavras de Tocqueville e Hannah Arendt, cortaram o fio da tradição. Considero-me uma descendente do Iluminismo e da secularização que nos colocaram em guarda contra os riscos da religião: a neurose, as ilusões, os abusos, as guerras. O fio cortado da tradição nos permitiu movermo-nos rumo à liberdade, sem a qual não haveria o mundo da ciência nem o da arte, a aventura do empreendimento nem a dos novos amores. O fio cortado da tradição é uma conquista importante, mas é preciso evitar o desvio rumo a um niilismo sem valores e sem autoridade. Eis porque temos a necessidade de "transavaliar" a tradição. Isto é, repensá-la e atravessá-la, procurando tirar dela tudo o que pode ser positivo para nós, contemporâneos. Isso vale para toda a tradição, as três religiões monoteístas, mas também para a cultura clássica, o taoísmo ou o confucionismo.
 

F.G. A quem cabe essa tarefa?
J.C. Aos intelectuais, mas também aos artistas, visto que eu considero a literatura e as artes verdadeiras formas de pensamento. Sem o confronto com a tradição, corremos o risco de nos perder em um niilismo depressivo. No plano da religião, esse confronto nos permite entender que a fé não é apenas um beco sem saída, como dizia Diderot. Condenando a fé, a filosofia do Iluminismo privou a necessidade de conhecimento de um fundamento importante. Para mim, a necessidade de crer é o fundamento do saber. É uma necessidade antropológica que a história das religiões capitalizou por meio das variantes cristã, islâmica, judaica, taoísta. Nós, ateus, devemos redescobrir as raízes dessa necessidade, favorecendo desse modo o diálogo entre crentes e não crentes, um diálogo entre iguais, em que ninguém pode explicar e defender suas próprias posições. 

F.G. Como se manifesta a necessidade de crer em Teresa D`Ávila?
J.C. Teresa vive uma fé sobrenatural, que exalta o laço amoroso escondido na fé. Ela o exalta de maneira ideal, mas também concretamente com todas as fibras do seu corpo de mulher, como testemunha a estátua de Bernini na igreja romana de Santa Maria della Vittoria. Teresa se exila na alteridade divina, revelando uma profundidade extrema da vida psíquica, que Lacan foi o primeiro a colocar em evidência, falando do prazer feminino. Nas suas êxtases, não há só a felicidade do encontro com Deus, mas toda a violência do prazer, a anulação de si mesmo e do próprio corpo. Colocando por escrito os seus estados de êxtase, Teresa consegue, porém, afastar a sua dimensão mortuária. Quanto mais os descreve, mais se torna lúcida, agindo no mundo de maneira concreta.

F.G. No abandono do êxtase, Deus – para Teresa – cessa de ser uma entidade externa, tornando-se uma realidade interior e imanente. É isso?
J.C. Na sua viagem rumo ao outro, Teresa indica um dado importante para cultura europeia. Para que o eu exista, o cógito de Descartes não é suficiente. O eu tem necessidade do outro, com o qual instaura uma ligação indispensável. O eu e o outro se identificam e se confundem um com o outro. Teresa cria essa ligação com a divindade. Para ela, a transcendência torna-se imanência. Desse modo, coloca-se no caminho do humanismo cristão que dará lugar ao humanismo moderno. Justamente porque Deus e o infinito estão nela, Teresa torna-se uma pessoa e uma linguagem infinita. Também por isso ela tanto fascinou Leibniz.

F.G. É por isso que a senhora a considera como uma nossa contemporânea?
J.C. Certamente. Teresa é uma mulher excepcional, um gênio feminino que inovou a fé católica, antecipando a revolução barroca. A sua experiência fala às mulheres modernas e, em particular, àquelas que se consagram à criação artística, trabalhando com as imagens e a linguagem.
F.G. A senhora foi uma das vozes do feminismo francês. Teresa D`Ávila pode interessar às feministas?
J.C. Hoje, o retorno da tradição e a centralidade da maternidade colocam novamente em discussão as conquistas do feminismo. Isso é verdade principalmente quando a maternidade é prisioneira das preocupações materiais e sanitárias. Teresa nos ensina que é preciso conseguir pensar do ponto de vista do outro. Não devemos projetar sobre os filhos os nossos desejos, as nossas angústias, as nossas necessidades, mas considerá-los como um outro, procurando desenvolver a sua alteridade. Nessa perspectiva, as mulheres estarão na vanguarda da civilização. Como fez Teresa, toda mulher deve procurar ser singular. É preciso refundar o humanismo em uma direção que estimule as singularidades. É esse o ensinamento de Teresa.



Fonte: Instituto Humanitas UNISINOS.

quarta-feira, maio 16, 2012

Os Programas de Pós-Graduação em Literatura e em História


convidam para a palestra


“MUDAR DE VIDA”

PRECISA DA ARTE ?

Resumo: Um ensaio de cartografia, mesmo breve, dos modos de solicitação dirigidos às práticas artísticas pelo imperativo ético-político “mudar de vida” envolve sempre uma reflexão sobre os vínculos históricos da arte, ou melhor, o tipo de eficácia da arte no tempo. A comunicação incide, de um modo particular, na complexidade controversa que carateriza o período entre-as-duas guerras.



ANTÓNIO PEDRO PITA

Professor catedrático da Faculdade de Letras

Universidade de Coimbra

Coordenador científico do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20



Dia: 21 de maio

Horário: 14h30

Local: Sala Machado de Assis – CCE 4 andar

segunda-feira, maio 07, 2012

O que a arte pode ensinar aos psicanalistas


Lia Fernandes



Resumo:
Poderíamos, como psicanalistas, ouvir uma obra de arte sem considera-la como mero suporte de fantasias inconscientes do autor? Este trabalho propõe tomar a produção artística como revelação própria de cada artista acerca do humano, das alienações, angústias e excessos inominados de um tempo histórico. Além disso, destaca o enigma inerente ao fazer artístico em relação ao qual ao analista caberia mais aprender do que decifrar.
Palavras-chave Psicanálise: arte; interpretação; contemporaneidade; criação; estética.
A ponte
Rígido e frio, eu era uma ponte, uma ponte estendida sobre o abismo. Deste lado estavam as pontas dos pés, do outro as mãos, que eu metera pelo barro adentro a fim de segurar-me. As abas de minha casaca tremulavam-me nos flancos. Lá no fundo corria, ruidoso, o gélido riacho de trutas. Turista algum errava por aquelas alturas intransitáveis; a ponte ainda não figurava nos mapas. – Assim, ali estava eu à espera: cumpria-me esperar. Sem desabar, ponte nenhuma pode, uma vez erigida, deixar de ser ponte.
Certa ocasião, foi ao anoitecer – era a primeira vez ou a milésima, não sei ao certo –, meus pensamentos andavam sempre a dar voltas, numa confusão. Num anoitecer de verão, em que o riacho murmurava, obscuro, ouvi passos de um ser humano. Vindo até mim, até mim. – Estica-te, ponte; coloca-te em posição; mantém-te confiante, trava sem parapeito. Busca compensar-lhe, sem que ele perceba, a insegurança do passo; depois, dá­ te a conhecer e, como um deus das montanhas, arroja-o à terra.
Ele veio; percutiu-me com a ponta de ferro de sua bengala; a seguir, ergueu com ela as abas de minha casaca e as arrumou sobre mim. Correu a ponta da bengala pelo meu cabelo ramalhudo e, provavelmente olhando espantado à volta, deixou-a ali ficar por longo tempo. Mas por fim – eu o sonhara por montes e vales – pulou com ambos os pés para o meio do meu corpo. Totalmente ignorante, experimentei dor intensa. Quem era ele? Uma criança? Um sonho? Um salteador? Um suicida? Um tentador? Um exterminador? E virei-me para olhá­ lo. – Uma ponte virar-se! Não chegara ainda a virar quando despenquei e pronto me rasgaram e me furaram a carne os seixos pontudos que sempre me haviam fitado tão serenamente de dentro das águas frenéticas.
[Kafka, 1917]
Impossível, ao leitor sensível, conter seu próprio espanto frente a tamanha beleza! Estonteante, este pequeno conto de Kafka é, antes de tudo, uma mina inesgotável.
Com uma extrema economia de meios, tal qual um poeta, o autor nos transpõe, de um só golpe, para o terreno da experiência de uma surpreendente realidade, de uma particularíssima existência…
Bastam meia dúzia de palavras – num estilo em que forma e conteúdo caminham sempre juntos – para sermos atirados, de forma irreversível, à revelação contundente de um ser que assim se anuncia: “Rígido e frio, eu era uma ponte, uma ponte estendida sobre o abismo”.
Não há aviso, não há claquete, e Kafka nos atira de cara a uma situação insólita que, entretanto, parece nos dizer profundamente respeito. E, se desta forma súbita começa seu narrar, nos larga a mão, também subitamente, ao final do rápido conto, com a mesma suspensão que, de início, nos arrebatou. Só podemos suspirar, ao final, de susto e realização de uma poética que, antes de mais nada, desconcerta. Podemos sentir, enfim…
Como diz Mandelbaum, a obra de Kafka é uma experiência no sentido mais pleno da palavra: “lendo-a, não se é mais o mesmo” .
Não procederemos, neste momento, a uma leitura detalhada do texto – mas frase a frase ele nos fará oscilar da imobilidade do inumano para a encarnada e revolvente experiência humana – onde cabem o desamparo, a ânsia, a dor, o desejo, a espera, a ilusão e a dúvida. De sua força e rigidez de ponte para sua fragilidade e comoção humanas. De sua materialidade asfáltica para sua comovente sustentação precária. De sua vocação que é de ser passagem para a solidão de não ter conhecido transeunte. E de sua decepção de encontrar um transeunte e este se revelar o desumano! E, por fim, de ser uma coisa que, por definição, não conhece ou desconhece, espera ou se frustra, para ser tomado pela angústia e incerteza tipicamente humanas, face ao imprevisto no virar-se final da ponte, que a faz desabar, perdendo-se daquilo que Kafka nos adverte desde o início: somos um homem que é ponte.
Entretanto, embora diga que “ponte nenhuma pode, uma vez erigida, deixar de ser ponte”, esta ponte espera e isto não é coisa de ponte. Mas se ao se virar desaba, isso, não obstante, não é coisa de homem. Ou é…
E é neste exato ponto que o inumano de Kafka nos concerne, que ele faz falar desta dimensão em nós… daquilo que nos engessa e aprisiona. Nas formas e nos laços.
Mas que, apesar disso, não logra nos enrijecer por completo, pois o tempo todo nossa ponte resiste em render-se de sua humanidade, nos comovendo a alma por seu grito. E é esta alma de nosso homem partido que o faz esquecer, no passo a passo deste precioso conto, de sua existência mista, metamorfósica de homem-ponte e o faz cair, por sua materialidade concreta quando, ainda assim, não se converte em mera ponte… Até o fim Kafka nos arrasta a sua duplicidade ao pô­ lo a se recordar, durante a queda, da lembrança dos seixos serenos que foram os únicos a lhe corresponderem o olhar de dentro das águas frenéticas…
A um sem número de interpretações, ecos e associações dá margem uma obra simples de um grande escritor. Entretanto, nossa escolha por este conto se deu pela divisão inelutável a que o texto apela. Por se tratar de um homem-ponte, muitas alusões este pequeno fragmento narrativo pode evocar. Divisão tão experimentada na análise entre o que dizemos e o que pensamos que dizemos, entre o que queremos e pensamos que queremos, entre a palavra que nos funda e o que sentimos muito além das palavras, entre a solidão de sermos um e a ilusão de um outro que sonhamos nos completar. Entre nossa indeterminação inerente e a ilusão de um Outro sólido que nos dê sentido estável. Entre o que compartilhamos às vezes plenamente e o que não conseguimos nunca plenamente compartilhar. Entre sermos palavra e entranhas sensíveis, habitados pela solidão do furo (moldura de ponte) mas também pela atração da queda que o anula. Entre o desejo e a angústia, pergunta do humano…
Pensando também na modernidade de Kafka, por onde pode respirar o humano num mundo de formas asfálticas? Por onde podem caminhar a vida e os encontros?
Escolhi este conto pelo entre que é sua substância movediça, pela mágica do metamorfósico tão presente em Kafka e por nos apresentar numa dupla realidade que nos constitui, mas que pode nos possibilitar ou aprisionar. E, por fim, pela identidade impossível a que este texto aponta, por este homem que resiste a desumanizar-se, que se convulsiona de suas formas, se agita, se revolve e, no limite do mais inóspito, aponta para o movimento das águas que se estendem num sempre além…
Por sermos, enfim, inevitavelmente partidos. E por tudo isso nos brindar com a faculdade da espera. Esperando para melhor, esperando para pior, mas, como diz Lacan, de toda forma esperando…
Criação: identificação ou modo singular do diferir?
O que um artista, um escritor, muitas vezes tem o dom de produzir naqueles a que sua arte alcança – no caso presente, de Kafka, por sua escritura – é um acercamento do mistério que funda a existência humana. Estas obras nos fazem respirar, nos aconchegam numa sorte de dimensão normalmente temida onde temos, por definição, o menor aconchego possível. Lá onde estamos inteiramente sós e praticamente incomunicáveis.
Um artista consegue, via de regra, ter a coragem de transitar por estas paragens e nos trazer os pequenos e preciosos rastros que recolhe de um lugar onde a linguagem caminha em terreno movediço. Caroço e coração da própria linguagem, o real, em psicanálise, traduz esta dimensão extímica que, ao mesmo tempo que nos é radicalmente íntima, é alheia, inominável e inapreensível. Dessa maneira, não é possível, falando de escrita, ler ou escrever sem risco.
Clarice Lispector, ao ser procurada por José Castello para falar sobre o ato de escrever, interpela seu entrevistador, antes mesmo de que este lhe dirija palavra, dizendo: “Você é muito medroso. E com medo ninguém consegue escrever” .
O mesmo ponto é abordado, em relação à produção musical, quando Egberto Gismonti, músico brasileiro, num show, confessa: “Não tenho medo da música”. Negação através da qual sabemos que se denuncia, ao contrário, a presença de um temor que, não obstante, no caso desses dois autores, é sabido e enfrentado. O que tais afirmações revelam é o conhecimento vivido por estes artistas do risco iminente e inerente ao próprio ato de criar, sua vizinhança do real em relação ao qual ninguém se aventura sem consequências, muitas delas no corpo.
Dominique Laporte assinala a frequência com que um escritor experimenta um risco corporal no ato de escrever. Diz ela: “O risco corporal é imediato, pois não há nada que garanta o golpe do estilo – podemos pensar também em estilete, pois é essa a origem da palavra estilo – de que não escorregará do corpo da língua a minha própria carne envenenada pela palavra, pela letra ou frase destinada a um Outro excessivamente familiar” .
Como podemos observar, o terror é o da perda de contorno nas entranhas de um Outro que se torna excessivamente próximo – como pura substância gozante – na medida em que o sujeito avança no limite da linguagem. Por outro lado, a menção ao “veneno” que se espalha pela própria carne envenenada pela letra nos acerca desta dimensão altamente provocativa que o real, cortado pela letra, exerce nesses sujeitos, como um aguilhão que lhes faz não terem, por outro lado, outra saída subjetiva senão a entrada, igualmente violenta, pela borda da letra. É o que faz com que encontremos posições radicais como a de Clarice Lispector, que declara ser insustentável o estado da vida na ausência da escrita…
Numa entrevista para um programa de televisão, ao ser interrogada por uma jornalista quanto aos seus hobbies, se ela porventura os teria, Clarice, num primeiro momento, se limita a estranhar. A entrevistadora põe-se, então, a esclarecer, acrescentando: “O que a senhora faz, por exemplo, entre um livro e outro, quando não está escrevendo?” Ao que Clarice, simplesmente, responde: “Eu morro. Quando não estou escrevendo eu morro e agora, por exemplo, estou falando com você do meu túmulo” .
Golpe mortal, certeiro, cujo abismo que abre na entrevistadora e nos espectadores é o mesmo que se desfecha na diferença entre aqueles que podem se distrair da produção de marcas próprias e aqueles para quem, sem esta dimensão radicalmente presente, resta muito pouco do autêntico da vida. Isto também nos afasta de toda aproximação romântica do ato de criar ou escrever, imaginado por alguns como um cálido passear pelos personagens, ao balouço tranquilo da chamada inspiração. Para Clarice, isto é insustentável. Como ter hobbies se o desafio é estar vivo? Contrariamente a toda ideia de remanso que o imaginário social atribui aos artistas, muitos testemunhos que encontramos no âmbito do processo criativo apontam a um trabalho tão imperioso quando arriscado, além de visceral e doloroso.
Paulo Leite, fotógrafo brasileiro, declara em um documentário sobre sua obra: “A fotografia é o meu chão. Este é o meio que encontrei para expressar minhas coisas. Você tem que fazer… mesmo que tenha que vender as coisas, fazer uma exposição, depois comprar de novo, botar tudo no prego… É assim. Você tem que fazer” .
As referências recorrentes dos artistas ao é preciso fazer nos dão pistas da imperiosidade da criação. O artista não pinta porque quer ou gosta, mas porque precisa. Sem isso, ecoando Clarice, ele morre. Ou, como nossa ponte de Kafka, ele desaba. Não lhe resta senão embrenhar-se na confusão, na angústia do fazer e do não fazer, do aproximar-se e do perder-se, do rastro e do decorrente vazio, muitas vezes estéril, que se abre após o ato. Para que este possa se recolocar mais adiante…
Costuma-se falar da sublimação em psicanálise, seguindo as trilhas de Freud, como um destino dessexualizado da pulsão no qual se dá uma troca de objeto e de alvo. Porém, se tal definição nos dá a ideia de uma aptidão pronta do artista, os relatos de muitos artistas testemunham muito mais um processo convulsivo, corporal e fragmentário, onde uma desfiguração e uma transfiguração se sucedem num constante movimento.
Tal processo é movido por um impulso inevitável de algo que, por um lado, busca se inscrever e, por outro, afirmar a reinvenção da própria linguagem, da dimensão da significação que se instaura unicamente na medida em que um vazio movente – chamado por Lacan de objeto a – vem a se recortar pelo esvaziamento do signo de seu significado. Trata-se de uma operação destrutiva, de dessubstancializacão do mundo das coisas para o encontro com a linguagem – o que nas crianças tanto se observa nos jogos de ocultação em que o objeto, em sua substância concreta, imperante e invasiva, é repetidamente feito sumir…
Manoel de Barros, numa declaração feita no filme Janela da alma, ao falar da relação entre criação e visão, indica a transfiguração como processo por excelência da arte em geral e da poesia em particular. Diz ele: “Eu sou muito abrigado pelo primitivo… Eu acho que o primitivo é que manda na minha alma, mais do que os olhos. Eu não acho que entram pelo olho as coisas minhas. Elas não entram, elas vêm, elas aparecem, de dentro, de dentro de mim. […] O olho vê. A lembrança revê as coisas e é a imaginação que trans-vê, que transfigura o mundo, que faz outro mundo para o poeta e para o artista de forma geral. A transfiguração é que é a coisa mais importante para o artista” .
Embora, neste fragmento, o poeta isole a lembrança da imaginação e saibamos, como psicanalistas, que estes processos não se separam – as lembranças não deixam de ser ficções construídas – interessa aqui, a Manoel de Barros, chamar a atenção para o caráter essencialmente deturpador, transgressor e transfigurador do fazer criativo em relação ao objeto. Este é um tema recorrente na obra deste autor que repetidamente afirma a necessidade de “desinventar objetos”… .
Pommier, ao falar de sublimação e ato criativo, traz uma citação de Picasso dizendo que o ato criativo é apenas secundário e que “o que importa é o drama do próprio ato, o momento em que o universo se esquiva para encontrar sua própria destruição” . Como não pensar, obviamente, na pulsão de morte tal como a define Lacan, como “vontade de destruição, de recomeçar com novos custos”? . Quando a pulsão de morte opera produzindo parcialidades – ou seja, no sentido do desligamento de conexões fixas para a produção de novas e a reinstauração permanente da polissemia – esta passa a equivaler ao processo de nascimento da linguagem .
É o que lembra lindamente Manoel de Barros no poema que já começa no balouço desta negação vital. Diz ele:
 
No descomeço era o verbo
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
Para cor, mas para som.
Então a criança muda a função de um verbo, ele
Delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
Entretanto, se tal nascimento vem a ser um processo descontínuo no sentido de uma temporalidade cronológica, é permanente no sentido do que assinala Pommier e lembra bem Clarice, quanto ao evanescente sujeito da criação e do inconsciente. Aquele que cria – e aqui trata-se do sujeito – morre alternada e indelevelmente quando se intervala de sua criação, lugar de onde renasce, também, a cada ato.
Paulo Leite, no mesmo documentário citado anteriormente, lembra o momento inaugural em que foi tocado pelo mistério da fotografia. Ganhou, ainda criança, de seu pai, um laboratório fotográfico. Tendo feito uma foto, preparou a emulsão conforme indicava o brinquedo e daí surgiu uma primeira foto de seus dois irmãos ainda pequenos, num registro e descoberta inaugurais que ele guarda até hoje, passados mais de 40 anos. E acrescenta: a cada vez que ele repete o ato de fotografar, que dá o clique, reedita aquele momento mágico e reconhece: “Sou fotógrafo” .
Tal depoimento vai ao encontro do que formula Pommier ao afirmar que “no momento em que o sujeito cria, é ele próprio que é criado por sua obra – sendo a sua existência o que está no primeiro plano da criação”, acrescentando, em seguida, que isto não é um estado adquirido, substancial, mas que “é a cada instante que o sujeito deve afirmar sua existência”, posto que evanesce .
Nesse ponto, podemos evocar a ideia de exílio da escrita que nos traz Edson de Sousa, como aquilo que, ao eu, o ato criativo cobra. Diz ele: “Quais as fronteiras, em todas as suas figurações possíveis – zonas de passagens, territórios de silêncios, limites intransponíveis – entre aquele que escreve e o sujeito-autor deste ato, entre o escrito e evidentemente o leitor suposto?” E continua, mais adiante: “Todo ato de escritura verdadeiro, ou seja, um escrito que produz um sujeito, implica uma certa condição de exílio daquele que enfrenta o desafio de escrever. A tensão que se cria é justamente que há uma diferença importante entre aquele que se põe a escrever e o sujeito que este escrito produz” .
Isso nos faz pensar, de imediato, em como a escritura e a criação em geral põem o sujeito em suspensão, em estado de ponte. Nesse processo, toda ideia de controle e de unificação identitária se perde, se espatifa. E é essa mesma suspensão que se dá na criação própria ao dispositivo analítico. Por que tantas pessoas evitam a análise senão porque tentam preservar suas sínteses egoicas? E por que tantos pacientes, quando franqueiam algumas dessas primeiras zonas de passagem, comumente dizem que pensavam que eram uma coisa e agora não sabem mais quem são? A análise produz o contato com a multiplicidade identitária que vem a ser a própria subjetividade humana, da qual a neurose ferozmente se defende. Em estado de ponte.
Lacan denuncia lindamente isso com seu estilo quando, ao retomar a história chinesa da borboleta e Chuang-Tsé, a revira repetidas vezes sacudindo nossas amarras com o seguinte trecho:
No sonho, ele é uma borboleta. O que quer dizer isto? Quer dizer que ele vê a borboleta em sua realidade de olhar. […] Quando Chuang-Tsé está acordado, ele pode se perguntar se não é a borboleta que está sonhando que é Chuang-Tsé. Aliás, ele tem razão, e duplamente, primeiro porque isto é prova de que ele não é louco, pois não se toma por absolutamente idêntico a Chuang-Tsé – e, segundo, porque não acredita dizer tão bem. Efetivamente, foi quando ele era a borboleta que ele se sacou em alguma raiz de sua identidade – que ele era, e que é em sua essência, essa borboleta que se pinta com suas próprias cores – e é por isso, em última raiz, que ele é Chuang-Tsé .
E aqui nos reencontramos, subitamente, com nosso homem-ponte. Com tudo o que as metamorfoses têm a dizer do humano. Quem somos? E será que somos nós, mesmo, quando nos tomamos por iguais a nós mesmos? Nesse sentido, a metáfora de Lacan é preciosa, pois coloca o sujeito como um ser em movimento contínuo e “que se pinta com suas próprias cores”. Isso também não nos aproxima da ideia de identidade ou identificação como diferença pura, se a entendemos como traço único singularizador que cai na armadilha de novas equivalências saturantes. Mas fala de um diferir permanente – evocando uma ideia cara a Derrida –, de um tornar-se outro em criação ou transfiguração contínua, sem ponto de parada ou conhecimento prévio. A ideia de estilo aqui pode servir desde que não se detenha em novas sínteses acomodadoras. Será que somos donos de um estilo e pronto? Ou teríamos que resgatar, no estilo, a lâmina do estilete?
Nas trilhas da crítica de Derrida ao estruturalismo lacaniano, podemos pensar que sem a perspectiva de um rearranjo significante permanente e de suas decorrentes transmutações se faz necessário indagar se a assunção de um estilo não poderia se converter numa nova máscara egoica, sob a roupagem perigosa de uma escrita pretensamente subjetivada. Nesse ponto, Clarice Lispector nos provoca com sua agudez peculiar dizendo: “Escrever nada tem a ver com literatura”, desafiando com isto toda caricatura romanceada que a ideia de um bem narrar pode acarretar de um enredamento que culmina mais em figurações imaginárias e arremedos criativos do que num ato criativo mesmo.
Em A paixão segundo G.H., Clarice nos brinda com uma bela mas dura advertência, dizendo:
Já que tenho que salvar o dia de amanhã, já que eu tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e corta-­ lá em pedaços assimiláveis pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada – então que pelo ou menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.
Embora concordemos com Edson de Souza quando diz que “quando pensamos no que transmite um texto, percebemos que fundamentalmente o essencial é a lógica de sua construção, ou seja, seu estilo”, há que se pensar se determinado estilo não pode se converter, ou nos arrebatar, como diz Clarice, na invenção tentadora de uma forma – e de uma boa forma – destinada mais a embelezar e retocar as agruras do humano do que de testemunhar a presença, em nós, de uma nebulosa de fogo de origem entranhada e visceral que deixa escorrer num texto suas marcas incandescentes e incontíveis.
Deciframento x indeterminação: diferentes elos entre escuta e sublimação
Obedecendo à mesma lógica da divisão proposta por Clarice entre o escrever e a literatura, podemos pensar em duas formas bem distintas de ler e abordar a obra de arte também no tocante ao indeterminado que um fazer autenticamente criativo impõe. Podemos encontrar, em vias bem opostas, de um lado aquelas aproximações que permitem entrever o assombro da experiência criativa e de outro as produções sobre a obra de arte que primam por velar sua potência disruptora. Tais velamentos ou recalques mesmo podem se dar tanto pelo viés explicativo da obra de arte, que a achata, ou pelo viés romanceado, de um falar que não faz carne mas camufla e enfeita, como fetiche, o furo que na arte eclode.
A ideia de estilo – tomada, entretanto, como forma viva, ritmo de uma construção linguística que expressa primordialmente a posição particular de um sujeito em relação à causa que o funda em detrimento de qualquer derrisão conteudista – nos afasta de toda leitura semanticizante de uma obra de arte, ou mesmo, da sessão de um paciente. Nos faz pensar que o que mais produz efeito é o como se diz naquilo que se diz e não o que se diz em si mesmo.
Nesse sentido, abre-se um abismo entre todas as interpretações de sentido de uma obra de arte, de um poema e de uma sessão em relação às apreensões ligadas às construções e aos enigmas que estas obras recolocam continuamente. Numa posição de atribuição de sentido, de decifração, falamos sobre uma obra de arte ou sobre uma sessão de um paciente desde um lugar de fora ou acima delas e, de outra maneira, as escutamos e tomamos como interrogação – para nós mesmos – quanto àquilo que dizem e que não dizem, quanto ao que sacodem e rasgam o inteiro de nós, de nossas alienações culturais inevitáveis. É quando podemos de fato nos deter nos recantos de verdade, de mistério e revelação que as obras de arte apontam.
Renato Mezan se detém sobre esse tema de forma bem aguda ao criticar a ideia de deciframento interpretativo de uma leitura. Diz ele:
Que significa considerar que ler é decifrar? Significa supor que a obra lida tem um sentido intrínseco, que a leitura irá revelar se se dotar dos instrumentos adequados e se o leitor for suficientemente perspicaz. Este sentido seria o original, a verdadeira intenção do autor ou a verdadeira constelação de fatores que, combinados, resultaram na configuração da obra tal qual ela se dá ao leitor: sentido original, intenção profunda e fatores operativos seriam completamente restituíveis pela leitura adequada .
Nem sempre a postura de deciframento é tão claramente explicitada, ou consciente, para alguém que se propõe a interpretar e, igualmente, para os ouvintes que o acompanham. Normalmente, tal empreitada nos arrebata pelo fascínio que as ilusões de apreensão e de domínio carregam. Isso normalmente esconde o parti pris de verdade no qual o enunciante se baseia. Entendemos que tais leituras da obra de arte e da própria clínica psicanalítica operam no mesmo sentido de um sintoma que, ao revelar uma verdade, vela, no mesmo ato, as condições de sua produção. Tal mecanismo funciona como recalque daquilo que, de enigmático, brota da produção artística, ou seja, seu maior bem.
Diferentemente de todo viés redutor, interpretativo ou patologizante que se faz costumeiramente dos artistas, Alfredo Jerusalinsky aponta um outro tipo de abordagem em relação ao fazer artístico ao deter-se sobre o trabalho de Camille Claudel. Diz ele:

[…] Num artista, trata-se de alguém que está inserido numa posição tal que, desde o ponto de vista da sua subjetividade, está engatado, articulado ao discurso social numa nuança, num remanso desse discurso onde um resto de real se aninha. Carniça, excremento, vazio, miséria, beleza extrema que se revela por contraste a imperfeição cotidiana, amor impossível, eternidade inatingível, gozo sem limite. Vértice extremo do real que, pela sua virulência, potência, crueza e até crueldade, requer uma competência, esforço e condição muito especiais desse sujeito que ficou engatado para poder simbolizar este resto .

Embora seja bastante esclarecedora a posição de Jerusalinsky e se situe, antes de mais nada, como antinômica a toda prática de psicanálise aplicada, quando estamos no campo da arte, se se trata de simbolizar um resto passível de nomeação, trata-se também de fazer eclodir o enigma que a produção artística põe a nu e do qual se alimenta. Trata-se, a meu ver, na leitura da obra de arte, tanto de trazer suas luzes sobre aquilo que nossas alienações nos furtam, constituindo um inominado de nosso tempo (que é o que Alfredo aponta), como também de realçar seu caráter eminentemente disruptor que a faz ser, como diria Lacan, porta-voz do vazio da Coisa, ou seja, puro mistério…
O mistério como motor da criação artística e analítica
A Coisa, das ding, é um conceito cunhado por Freud em 1895 no contexto de seu Projeto de uma psicologia científica (publicado postumamente), e que permanecerá, como tal, restrito a esta obra, não retornando sob essa forma em nenhum de seus textos posteriores.
Dentro da elaborada engrenagem teórica do Projeto, a Coisa é situada por Freud no interior do chamado Complexo do próximo, o Nebenmensch. Entendido como efeito das experiências infantis iniciais da criança com o semelhante, o Nebemnmensch não é propriamente o semelhante, mas uma estrutura complexa referente às apreensões psíquicas do outro que constitui, para a criança em desamparo, “o primeiro objeto de satisfação, o primeiro objeto hostil, assim como o único poder auxiliar” .
Tal complexo se divide em duas partes componentes: uma que pode ser compreendida, assimilada a marcas de movimentos, sons, gestos e imagens visuais vivenciados anteriormente pelo infans com o outro ou com o próprio corpo (gritos, movimentos de mãos etc). Esta é a componente deste complexo que permanece inscrita como traços no sistema de memória – chamado no Projeto de sistema psi – integrando as redes de trilhamentos próprias a este sistema. A outra parte desse composto, entretanto, apresenta-se, diz Freud, como portadora de traços “novos e incomparáveis” do outro, permanecendo “como estrutura constante, coesa como coisa” escapando ao terreno da representação. Permanece no universo psíquico como algo inapreensível, indecifrável, ou seja, como um furo na representação.
Lacan retomará esse conceito em 1960, no Seminário 7, A Ética da psicanálise, situando esse vazio na representação como “um primeiro exterior em torno do qual se orienta todo o encaminhamento do sujeito”.
Construído a partir das primeiras experiências de satisfação vividas pela criança com o Outro primordial e carregadas de um prazer inaudito, esse furo figurará imaginariamente como um resto inalcançável de satisfação que será sempre almejado pelo sujeito em seus esforços, em sua espera, em seu desejo, como um horizonte sonhado mas presentificado apenas como saudade. Move o sujeito e escapa dele incessantemente – através de rastros de cuja totalidade sonhada entrevemos apenas o perfume. Inebriante, decerto, mas fugaz tal como o que se ilumina nas entrelinhas do que os escritores apenas tangenciam, roçam incessantemente em suas poéticas.
É o que nos evoca a frase de Barthes, ao falar do trabalho interminável do escritor. Diz ele: “Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina incessante, a literatura” .
Numa metáfora tanto certeira quanto bela, Lacan aproxima o trabalho do artista ao do oleiro que, ao esculpir um vaso em um movimento rápido e giratório, gera em quem assiste a sensação desconcertante de que é do vazio que nasce o vaso como borda quase invisível.
Ao tomar o vaso como suporte de sua teorização, Lacan se referencia no trabalho do oleiro como sendo “uma das funções artísticas mais primárias”. Lembra que o vaso tem como função primordial a de “elevar alguma coisa”. E acrescentará, como predicado: essa coisa é um nada. “É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê­ lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que, por si mesmo, não conhece semelhante”.
Tal efeito se dá, decerto, por sua bela moldura de vaso que eleva este vazio a um pleno antes insuspeitado. Por seu feliz torneado, a obra-vaso termina por juntar, em sua forma e ao mesmo tempo, estas três dimensões: a do traço, a do segredo e a do sagrado.
Traço que se faz na terra que o oleiro modela e à qual Lacan faz equiparar a materialidade da introdução inaugural de um significante que, fazendo marca, introduz, junto com a representação e no mesmo ato, seu além: a Coisa. Ou seja, tudo aquilo que da experiência de satisfação primordial não cabe no domínio dos registros, constituindo um inominável, um resto irredutível sempre a dizer, a reencontrar…
Prossegue ele:
Ora, se vocês considerarem o vaso, na perspectiva que inicialmente promovi, como um objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta na representação, apresenta-se, efetivamente, como um nihil, como nada. É por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo .
Porém, se, na modelagem desse furo, este toma corpo junto com o traçado que o modela e assim se eleva, na obra, um objeto à dignidade da Coisa – característica do sublimatório –, na interpretação da obra de arte a mesma dimensão de “unidade velada” precisa ser mantida para que a sublimação se prolongue através daqueles que se propõem a colocá­ la em palavras. Entretanto, se por nossa fala nos propusermos a decifrar a obra, faremos o contrário do trabalho sublimatório, degradando a Coisa à indignidade do objeto, arrancando-lhe o mistério…
Seria o mesmo que realizar o inverso do trabalho do oleiro a que se refere Lacan neste mesmo Seminário. Ao contrário de esculpirmos o vazio no vaso – dando-lhe um lugar de causa e horizonte intangível – tratar de enchê­ lo de barro seco para pôr em relevo a matéria de que é feito. São os mesmos riscos que corremos ao tentar responder aos enigmas da origem, tema das investigações sexuais infantis…
A propósito disso, contamos com uma preciosa advertência de Lacan no Seminário 11. Diz ele:
[…] os efeitos só se comportam bem na ausência da causa. Todos os efeitos estão submetidos à pressão de uma ordem transfactual, causal, que exige entrar em sua dança, mas, se eles se dessem a mão bem apertado, como na canção, fariam obstáculo a que a causa se imiscuísse em sua roda… A causa inconsciente é um ??????(mé on), da interdição que leva um ente ao ser, malgrado seu não advento, ela é uma função do impossível sobre a qual se funda uma certeza.
O analista como aquele que pode se pasmar
Trata-se, portanto, de um se deixar esculpir, tanto na clínica psicanalítica quanto na arte – e, inevitavelmente, na vida – pela ausência da causa, da qual advém, por consequência, a certeza do ato subjetivo, criativo. Fazer o jogo do salto, como diz Lacan a propósito do trabalho requerido à criança a partir do confronto com o fosso que, da borda do berço, se abre a partir das presenças e ausências do desejo materno.
Não há salto possível, entretanto, sem o fosso, sem o intervalo de onde nossa ponte vem a contemplar, serenamente, os seixos fundos do riacho por sobre onde, não obstante, ela permanentemente se arrisca.
Na leitura que Lacan faz do jogo do Fort!Da! do netinho de Freud, contrariamente ao que se costuma pensar, ele não propõe entender o carretel como representação miniaturizada da mãe, mas como pedacinho que se destaca do sujeito a partir das idas e vindas dela. Pedaço ao qual o sujeito irá se identificar. É a partir deste corte, vivido como uma automutilacão, que uma divisão fundamental se opera e a criança, com seu objeto, “passa a saltar as fronteiras de seu domínio transformado em poço e que começa a encantacão” .
“O homem pensa com seu objeto” , prossegue este seminário, trazendo-nos uma luz muito importante para a questão da criação. Toda ideia de transfiguração, aqui, ecoa. Há que se transfigurar a realidade, continuamente, para que nela eu encontre meu lugar de sujeito. É aí que se abre o mundo encantado do artista. E do sujeito. Ali onde a ilusão do reencontro com o objeto mítico brilha e se reatualizam tanto as marcas através das quais o artista se utiliza para o jogo do salto significante como sua própria divisão. Entretanto, embora seja movido por um encantamento inspirador, o trajeto do artista se dá, como para o nosso homem-ponte, pelas bordas de um abismo sobre o qual ele, se resistir, poderá ir trabalhando seus fios. Mas trata-se, fundamentalmente, de um trabalho. E de uma suspensão.
Nesse sentido, entendemos que uma leitura de uma obra de arte que não tampe o fosso a partir do qual ela se engendra – e engendra o universo em permanente destruição criativa, como diz Picasso – deve operar em homologia com a função do chiste, formação longamente estudada por Freud e retomada por Lacan como paradigmática do trabalho do inconsciente.
Freud isolou, no chiste, dois tempos: a estupefação e o esclarecimento (ou iluminação). No primeiro, toda a ordem linguística imperante vacila no surgimento da nova produção significante, o chiste. Surge o sem sentido. “Familionário”. No segundo tempo, através de cadeias de metáforas e metonímias, um novo sentido se engendra, provocando o riso pelo triunfo da irrupção do recalcado através de seus disfarces criativos. Reafirmação da linguagem sobre o código, do significante sobre o signo, do desejo sobre a demanda do Outro.
Lacan propôs chamar o primeiro tempo do chiste de peu-de-sens, pouco-sentido que eclode tão logo surge a neoformacão significante e todo saber instituído se desarma. Quedamos estupefatos numa suspensão de sentido. O que quer dizer aquilo? Aquela palavra, expressão ou gesto? O momento seguinte é o passo de sentido, o pas-de-sens, cujo duplo sentido da expressão aqui escolhida de “passo de sentido” e de “nenhum-sentido” aponta para a real função do chiste que é a de esvaziar o sentido pleno e introduzir o enigmático, o território do que escapa a toda apreensão de saber. Fresta pela qual se introduz o desejo, a invenção e o riso se dá…
Dê um exemplo de substantivo concreto, diz a professora a Joãozinho. – Minhas calças, professora. – E de abstrato? – As suas, professora.” Chiste lindamente cunhado por Guimarães Rosa que nos permite entrever a mágica dessa formação inconsciente em que o concreto e o abstrato das calças da professora deslizam deliciosamente do estatuto de substantivos àquilo que Joãozinho pode ou não pode pegar…
Propor tomar a obra de arte e o discurso numa análise numa homologia com a chamada terceira pessoa do chiste como aquele que pode se deixar afetar pela potência desconcertante do enigmático e, daí, continuamente partir, é poder pensar a posição do analista como aquele que pode se pasmar, se surpreender com aquilo que o paciente e o mundo em geral lhe apresentam como se, de fato, ele nunca soubesse direito aonde está. É ser um analista Chuang-Tsé…
Isto implica, evidentemente, a perda definitiva para o psicanalista de uma posição de mestria e de domínio sobre o humano, ainda que não cessem de nos convocar a responder do lugar da onisciência, do lugar do especialista. Poder ouvir desde um não saber é poder desabar, como faz nossa ponte, por sua intrínseca plástica matéria, por ser homem-ponte. Essa divisão é fundamental e é dela que pode advir a escuta de uma obra de arte. E uma escuta de nossa clínica iluminada pela arte. Escuta-transfiguracão, escuta-leitura sempre inacabada, enigmática, que vem a operar em nós metamorfoses inesperadas que só o vazio da Coisa pode engendrar.
Palavras finais
Evidentemente que, também no campo da arte, podemos pensar que há aqueles (ou há produções) que contam histórias para que sejam verdades e outros, para que fiquemos com perguntas. Talvez um precioso legado da arte autenticamente criativa, disruptora, aos psicanalistas de hoje, seja o de nos lembrar do mistério das possibilidades humanas além dos destinos pré­ traçados da repetição. Possibilidades que se jogam num espaço de arranjos possíveis mas também imprevisíveis, compostos de orlas de trilhamentos que se atravessam e se rearranjam continuamente – a cada nova experiência, a cada nova marca. Sempre entre determinação e indeterminado. Indeterminado de cartas/letras que, diferentemente do que diz Lacan, podem não ser tão marcadas e não chegar sempre aos seus destinos . Como com todos os objetos amados e obras humanas, em relação à vida e também à função analítica, o melhor que talvez nos reste seja poder sempre reinventar, partidos que somos.
Ou soletrar, como faz Paulo Mendes Campos, em relação ao inapreensível do amor. “Por qualquer motivo o amor acaba”, diz ele. “Para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba”.
Não seria isso o que chamamos desejo??


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 Lia Fernandes é psicanalista, mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Sedes Sapientiae, autora de O olhar do engano: autismo e Outro primordial (Escuta, 2000).
Fonte: Revista Percurso 43 - Site: www2.uol.com.br/percurso/




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