quinta-feira, maio 17, 2012

"Só um novo humanismo pode frear o niilismo", afirma Julia Kristeva



"A necessidade de acreditar é uma necessidade pré-política e pré-religiosa, sobre a qual se apoia o desejo de saber. Reconhecendo a importância dessa necessidade, nós, ateus, podemos favorecer o diálogo entre crentes e não crentes, para combater, de um lado, o niilismo e de outro, o integralismo".

Linguista e psicanalista, ensaísta e romancista, Julia Kristeva, depois de "Il genio femminile" [O gênio feminino], a trilogia dedicada a Hannah Arendt, Melanie Klein e Colette, publicou "Bisogno di credere" [Necessidade de crer] (Ed. Donzelli), um texto em que, mesmo sem renunciar às suas convicções filhas do Iluminismo, confronta-se com o universo da fé. Um diálogo que atravessa também "Teresa mon amour. Santa Teresa d`Avila: l`estasi come un romanzo" (Ed. Donzelli), um livro entre romance e ensaio, que analisa a personalidade e os escritos da santa espanhola do século XVI. Justamente sobre Teresa D`Ávila, a estudiosa francesa falou nesta segunda-feira na Basílica de Massenzio no encerramento do Festival das Literaturas.



“Comecei a me ocupar de Teresa quase por acaso, descobrindo um personagem extremamente complexo, rico e atual", explica Kristeva, que está envolvida agora com a produção de um novo romance. "Hoje, o choque de religiões é uma realidade que não podemos ignorar. O diálogo, portanto, é necessário. A Europa – talvez por ter conhecido a violência e o horror ligados às religiões, das Cruzadas ao Holocausto – empreendeu, antes com o Iluminismo e depois com as ciências humanas, um percurso de atravessamento da religião. Não para guilhotiná-la, como fez a Revolução Francesa, ou para encerrá-la dos gulags, como ocorreu na União Soviética, mas sim para tentar `transavaliá-la`, como diria Nietzsche. Por meio do caso concreto de Teresa, procurei dar a minha contribuição a esse percurso de atravessamento".

A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 21-06-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.


F.G. Por isso, Dom Gianfranco Ravasi convidou-a para participar do diálogo entre crentes e não crentes. Parece-lhe uma oportunidade?

J.C. Hoje, ainda mais do que o diálogo inter-religioso, é preciso promover o diálogo entre quem crê e quem não crê, principalmente na Europa. Pertenço àqueles que, nas palavras de Tocqueville e Hannah Arendt, cortaram o fio da tradição. Considero-me uma descendente do Iluminismo e da secularização que nos colocaram em guarda contra os riscos da religião: a neurose, as ilusões, os abusos, as guerras. O fio cortado da tradição nos permitiu movermo-nos rumo à liberdade, sem a qual não haveria o mundo da ciência nem o da arte, a aventura do empreendimento nem a dos novos amores. O fio cortado da tradição é uma conquista importante, mas é preciso evitar o desvio rumo a um niilismo sem valores e sem autoridade. Eis porque temos a necessidade de "transavaliar" a tradição. Isto é, repensá-la e atravessá-la, procurando tirar dela tudo o que pode ser positivo para nós, contemporâneos. Isso vale para toda a tradição, as três religiões monoteístas, mas também para a cultura clássica, o taoísmo ou o confucionismo.
 

F.G. A quem cabe essa tarefa?
J.C. Aos intelectuais, mas também aos artistas, visto que eu considero a literatura e as artes verdadeiras formas de pensamento. Sem o confronto com a tradição, corremos o risco de nos perder em um niilismo depressivo. No plano da religião, esse confronto nos permite entender que a fé não é apenas um beco sem saída, como dizia Diderot. Condenando a fé, a filosofia do Iluminismo privou a necessidade de conhecimento de um fundamento importante. Para mim, a necessidade de crer é o fundamento do saber. É uma necessidade antropológica que a história das religiões capitalizou por meio das variantes cristã, islâmica, judaica, taoísta. Nós, ateus, devemos redescobrir as raízes dessa necessidade, favorecendo desse modo o diálogo entre crentes e não crentes, um diálogo entre iguais, em que ninguém pode explicar e defender suas próprias posições. 

F.G. Como se manifesta a necessidade de crer em Teresa D`Ávila?
J.C. Teresa vive uma fé sobrenatural, que exalta o laço amoroso escondido na fé. Ela o exalta de maneira ideal, mas também concretamente com todas as fibras do seu corpo de mulher, como testemunha a estátua de Bernini na igreja romana de Santa Maria della Vittoria. Teresa se exila na alteridade divina, revelando uma profundidade extrema da vida psíquica, que Lacan foi o primeiro a colocar em evidência, falando do prazer feminino. Nas suas êxtases, não há só a felicidade do encontro com Deus, mas toda a violência do prazer, a anulação de si mesmo e do próprio corpo. Colocando por escrito os seus estados de êxtase, Teresa consegue, porém, afastar a sua dimensão mortuária. Quanto mais os descreve, mais se torna lúcida, agindo no mundo de maneira concreta.

F.G. No abandono do êxtase, Deus – para Teresa – cessa de ser uma entidade externa, tornando-se uma realidade interior e imanente. É isso?
J.C. Na sua viagem rumo ao outro, Teresa indica um dado importante para cultura europeia. Para que o eu exista, o cógito de Descartes não é suficiente. O eu tem necessidade do outro, com o qual instaura uma ligação indispensável. O eu e o outro se identificam e se confundem um com o outro. Teresa cria essa ligação com a divindade. Para ela, a transcendência torna-se imanência. Desse modo, coloca-se no caminho do humanismo cristão que dará lugar ao humanismo moderno. Justamente porque Deus e o infinito estão nela, Teresa torna-se uma pessoa e uma linguagem infinita. Também por isso ela tanto fascinou Leibniz.

F.G. É por isso que a senhora a considera como uma nossa contemporânea?
J.C. Certamente. Teresa é uma mulher excepcional, um gênio feminino que inovou a fé católica, antecipando a revolução barroca. A sua experiência fala às mulheres modernas e, em particular, àquelas que se consagram à criação artística, trabalhando com as imagens e a linguagem.
F.G. A senhora foi uma das vozes do feminismo francês. Teresa D`Ávila pode interessar às feministas?
J.C. Hoje, o retorno da tradição e a centralidade da maternidade colocam novamente em discussão as conquistas do feminismo. Isso é verdade principalmente quando a maternidade é prisioneira das preocupações materiais e sanitárias. Teresa nos ensina que é preciso conseguir pensar do ponto de vista do outro. Não devemos projetar sobre os filhos os nossos desejos, as nossas angústias, as nossas necessidades, mas considerá-los como um outro, procurando desenvolver a sua alteridade. Nessa perspectiva, as mulheres estarão na vanguarda da civilização. Como fez Teresa, toda mulher deve procurar ser singular. É preciso refundar o humanismo em uma direção que estimule as singularidades. É esse o ensinamento de Teresa.



Fonte: Instituto Humanitas UNISINOS.

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