sexta-feira, dezembro 27, 2019

CONTARDO CALLIGARIS






A língua que habito.


O psicanalista e escritor italiano Contardo Calligaris fala (ao Jornal Rascunho) sobre sua relação com a escrita e a literatura — e como essas atividades o ajudam a explorar a complexidade humana.


Manter as complicações sem que isso seja um obstáculo para a clareza. Essa é uma maneira de dar forma às impressões de leitura de Cartas a um jovem terapeuta — livro de 2004 que teve uma versão ampliada lançada neste ano pela Planeta — e da conversa de aproximadamente uma hora e meia no consultório, em São Paulo, do psicanalista e escritor Contardo Calligaris, numa tarde fria de agosto.
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 . Por que ampliar Cartas a um jovem terapeuta?


Parecia que eu devia alguma coisa de novo. Até porque essa correspondência que, em tese as cartas relatam, é fictícia. Mas fictícia até a página dois, porque, na verdade, as perguntas que eu finjo que me sejam colocadas por cartas, por alguns interlocutores, são perguntas que recebi mil vezes. Então, de fato, tinham outras perguntas, as quais eu podia responder e não tinha respondido. E algumas eram também perguntas em cima de coisas que eu tinha dito na primeira edição. É o tipo de livro que, no fundo, não tem fim. Sempre dá para continuar.

. Escrever no formato epistolar permite dizer coisas que um texto teórico não poderia comportar? 

Depende. Eu teria todo o interesse em revolucionar — talvez a palavra seja excessiva —, mudar o estilo do ensaio tradicional e ainda mais do texto acadêmico. Então, o recurso epistolar é um bom recurso para dinamitar os gêneros, se é que posso dizer assim. Sobre os livros propriamente de psicanálise que escrevi, o primeiro acho que é um livro bom, mas sou totalmente incapaz de reler porque acho pesadíssimo. É um livro que eu não escreveria mais. Acho que hoje, se quisesse reescrever aquilo, seria de uma maneira completamente diferente. Estou tendo esse problema com um livro parado na minha gaveta há 20 anos — se não mais, quase 30 —, que é a minha tese de doutorado. Existe uma primeira parte que está pronta, mas não queria publicar aquilo sem que se tornasse realmente um ensaio que fosse legível, digamos, pelo leitor das minhas crônicas da Folha de S. Paulo — um leitor letrado, alfabetizado, mas não mais do que isso. E aquilo me custou um trabalho tremendo porque foi escrito como uma tese de doutorado, mas, ainda por cima, numa época em que a ensaística, sobretudo de cunho psicanalítico, sofria enormemente da necessidade que cada autor tinha de mostrar que conseguia habilmente se servir dos conceitos, muito mais do que ele conseguia realmente falar de alguma coisa. A transformação daquilo é laboriosa. Então, desse ponto de vista, Cartas foi muito interessante. Acho que, numa outra forma, não teria conseguido escrever esse livro. Ele teve público muito amplo, não sei dizer quantas edições, e foi adotado — coisa surpreendente — em cursos de psicopatologia, de primeiro e segundo ano de Psicologia, até na residência de Psiquiatria do HC. E, sobretudo, foi lido por um monte de gente no avião. Aprendi muito nos últimos anos. Cheguei ao Brasil sendo um cara que tinha sido acadêmico — continuei sendo um pouco aqui no Brasil, depois nos Estados Unidos — e, sobretudo, um cara formado na França dos anos 1970, que era um lugar mágico, extraordinário, fantástico. Foi uma década incrível de explosão e invenção cultural. Tive sorte de escutar, de me aproximar, de ser amigo de algumas pessoas que me influenciaram fortemente. Mas, ao mesmo tempo, era uma época extremamente hipnotizada pelo som das próprias palavras. Então, o risco era o de produzir textos maravilhosos, sobretudo ensaísticos, dos quais ninguém era capaz de produzir um resumo, por exemplo. Vindo disso, cheguei ao Brasil assim. O Brasil é um lugar muito peculiar, isso me levou a fazer uma série de observações sobre como eu conseguia conviver com essa descoberta. Isso deu um pequeno livro, o Hello, Brasil! — que também foi reeditado, ampliado, digamos assim —, que foi, na época, uma espécie de best-seller intelectual. Pelo menos vindo de uma pequena editora, vendeu muito mais do que eu imaginava, muito mais do que a editora imaginava. A função desse livro, na minha vida, em última instância, fez com que eu começasse a trabalhar com a Folha. Aquilo realmente me permitiu reaprender a escrever. Me reeducou.

Reeducação pensando no alcance que aquilo poderia ter?


Parecer dominar o seu campo não era suficiente e realmente dar uma opinião não é suficiente. É uma arte escrever uma crônica, pelo menos do meu ponto de vista. A minha ideia era sempre fazer com que as coisas das quais eu estivesse falando parecessem ao leitor mais complicadas do que ele imaginava, mas não no sentido de mais confusas, realmente no sentido de mais complicadas, mais complexas. Isso foi um pouco a linha que segui. Então, reaprendi a escrever com a Folha. Desde então, escrevi romances, escrevi uma coisa enorme que ninguém vê, que é o roteiro de quatro temporadas de um seriado, Psi, algo gigantesco como quantidade de escrita. E de ensaios. Em breve deve sair um pequeno livro, que é interessante porque vai na mesma direção de coisas que eu queria dizer faz tempo. É um livro escrito a quatro mãos. Na verdade, não é um livro escrito a quatro mãos. Foi um livro criado a partir de discussões com uma amiga (a psicanalista Maria Lúcia Homem) sobre questões relativas ao feminismo, a posição da mulher hoje em dia. E aí, cada um corrigiu. É muito diferente do que seria se eu tivesse sentado para escrever um ensaio. Eu teria dito as mesmas coisas, mas certamente teria sido diferente.

E escrever regrado pelo dia da semana? A Clarice Lispector diferenciava o que era escrito com as entranhas e o que ela escrevia com a ponta dos dedos. Para você, é diferente? 

É uma obrigação da qual eu gosto. Tem uma certa temporalidade: em geral penso ao longo da semana, escrevo na segunda e corrijo na terça, porque tem um tempo de ilustração para a coluna sair na quinta. Essa regularidade, devo dizer, tornou a minha vida mais divertida, porque você está sempre pensando, meio que em off, no que poderia ser o tema da coluna da semana. A coluna é completamente livre, então você pensa nisso a cada dia quando lê o jornal, quando vai ao cinema, quando lê um livro, quando conversa com amigos, quando vai ao teatro, quando visita uma exposição. Isso combate a preguiça e faz também com o que você vê e as experiências que você tem ao longo da semana sejam mais atentas. É um esforço de se surpreender.

• Uma das cartas incluídas nesta edição se refere às leituras. Nela, você escreve que desconfia de quem não lê ficção. Qual é a perda? Ainda mais considerando que o Brasil não é exatamente um país de leitores. 

Não é uma questão de sentir falta, é uma coisa que me preocupa, porque não sei se têm muitos outros caminhos pelos quais uma cultura pode se civilizar. Num sentido muito vasto. Não se trata de ter valores parecidos, não, todo mundo pode ter valores muito diferentes. Mas de ter uma certa relação com o caráter relativamente efêmero da existência, a extrema diversidade do humano, o interesse por essa extrema diversidade. Tem quase uma base ética mínima do leitor de ficção, de quem realmente lê ficção. Não é necessariamente só que a ficção treinaria a capacidade de empatia. Sim, tudo bem, isso me parece o de menos. É muito diferente que ler ensaios, ensaios que, de uma maneira ou de outra, defendem uma hierarquia de valores. Ficção é outra coisa. Ficção introduz a gente num mundo de incertezas, em que, quase sempre, a gente acaba sendo o único responsável pelas escolhas morais que a gente faz. Isso, pra mim, é o que define uma posição moral. Me parece que quem não lê ficção não subiu num bonde absolutamente crucial para se transformar num ser humano que valha a pena.

A ficção pode ser uma maneira de investigar temas que inquietam? 


No caso do seriado Psi, completamente. Para mim, foi um luxo. Escrevendo roteiros, tive uma sensação muito boa porque foi uma espécie de — como posso dizer? — legado. Os roteiros e as cartas têm muito a ver. No sentido, de maneiras muito diferentes, de tentar transmitir um pouco do que foi a experiência bizarra que é a minha, de passar uma vida como psicoterapeuta. Ou seja, no fundo, passando, a cada dia da semana, de nove a dez horas, recebendo pacientes e tentando respondê-los, de maneira adequada, a demanda que eles tinham. Eu comecei a atender em 1975, quanto faz isso? Mais de quarenta anos, em dois continentes. É uma ficção, ao mesmo tempo quase todos os casos são verdadeiros. Isso vale de alguma forma também para os romances. Se você pega o meu segundo romance — A mulher de vermelho e branco —, a dita mulher de vermelho e branco é realmente uma paciente minha. A história inicial, com a qual o romance começa, é absolutamente verdadeira. Até essa paciente, só deslocada no lugar e no tempo. No primeiro romance [Um conto de amor], a história do protagonista com o pai é absolutamente verdadeira, é uma história minha com o meu pai. Não tem muita relevância, no fundo, mas acho que a ficção é sempre uma maneira de misturar — remixar — elementos que fazem parte do seu campo de experiência. No caso de um terapeuta, ainda por cima, isso chega a ser complexo, porque as pessoas esquecem que uma terapia não é feita de um encontro, dois encontros — é muito raro que seja assim. São, na verdade, vidas nas quais você se mete durante anos, num ritmo, às vezes, muito elevado — duas, três vezes por semana — com pessoas que ligam ou voltam a falar com você em momentos cruciais da vida. Então, você se envolve na vida de um grande número de pessoas e acaba — quer queira, quer não — carregando isso consigo, como se fossem experiências que, de fato, você viveu, porque são realmente experiências que de fato você viveu, na transferência da cura.

Qual o efeito particular de transformar numa ficção? Qual a diferença de um relato de caso? 

É diferente, sem dúvida. Eu tive uma primeira experiência com o meu primeiro livro de psicanálise, que são cinco casos — se não erro, quatro ou cinco. São casos meus daqueles anos em Paris. São pacientes que foram consultados e que deram sua aprovação, não ao texto, mas à ideia de que escrevesse e publicasse. E depois leram o que eu publiquei. E, não todos, mas a maioria veio me ver para dizer o efeito. Um dos efeitos mais curiosos para mim — que mudou um pouco a minha maneira de atender, transformou um pouco, ainda assim, não sei se o suficiente — é que todos acharam que eu dizia coisas, nos casos escritos, que eles teriam adorado que eu dissesse, e que, durante a cura deles, não tinha dito. De alguma forma, tinha a impressão que sim, fiquei com aquela sensação: “Será que fui eu que não disse ou foram eles que não tinham condição de ouvir e que, mesmo que tenha dito, eles não ouviriam?”. Não sei. Penso que isso é verdade em quase todos os casos escritos, acho que Freud disse coisas sobre o Homem dos Ratos que não disse a ele, disse coisas por escrito sobre pacientes histéricas, como a Dora e outras, que não conseguiu dizer tão claramente a elas pessoalmente. Então, isso modificou minha maneira de clinicar, sobretudo de tentar falar um pouco mais. Quanto aos casos que aparecem em A mulher de vermelho e branco — não falo de Um conto de amor porque nele o caso sou mais eu — e no Psi, gostei de poder escrever com essa liberdade. Porque, primeiro, as mudanças introduzidas são suficientes para que você não tenha um problema de esconder, para que o paciente não seja reconhecido por outros. Às vezes, isso permite juntar, numa figura só, dois pacientes com problemáticas parecidas. Uma das descobertas interessantes ao longo da escrita — até porque, na escrita, tinha uma ou duas corroteiristas com quem discutia —, quase sempre a verdade estava além. Em outras palavras, como diz Aristóteles na Poética, o importante não é ser verdadeiro, o importante é ser verossímil. Então, em geral, em matéria de clínica, os casos aos quais eu me refiro pareciam, aos produtores e aos corroteiristas, inverossímeis demais. Tivemos que, de alguma forma, amansá-los. Diminuir as estranhezas.

Onde entra o recurso da ficção? 

Eu não diria que ele é curativo. Às vezes, sim. No sentido de fazer algo, na ficção, que acho que deveria ter feito, algo que não fiz ou não fiz no momento certo. Eu perdi um bonde ou, como se diz, comi bola. Isso, às vezes, tem essa função mesmo. É um resgate, é uma espécie de arrependimento. Por outro lado, isso não é a motivação para escrever, porque no fundo eu me perdi. Agora é muito tarde, mas também nem tanto, consegui fazer muitas coisas, mas não queria ser outra coisa que não fosse ficcionista. Bom, o primeiro erro foi entrar na universidade. Eu queria escrever, não queria ir pra faculdade. Fiz duas faculdades ao mesmo tempo: Epistemologia Genética — o que me permitiu ser psicólogo depois, justamente em Genebra, quando Piaget ensinava ainda — e Letras e Filosofia. O saber me seduziu poderosamente, e aquilo me pegou. Bem, depois entrei na psicanálise e tudo foi andando. Mas a sensação de que estava deixando para trás o que eu realmente teria gostado de fazer desde sempre… Se não tivesse vindo ao Brasil, nunca teria voltado a escrever ficção.

Um conto de amor foi o primeiro livro de ficção encerrado? O primeiro romance foi em português, então? 

Um conto de amor foi escrito em inglês e em português. Tem outro livro que escrevi antes de ir pra faculdade, aos 18 anos, acho. Em italiano, que não foi publicado nunca. Acho que é péssimo, mas não tenho coragem de relê-lo. Existe o manuscrito. É divertido o fato de ter encontrado muito tempo atrás. Poderia ter se perdido na venda da minha biblioteca, mas sobreviveu.

E você mesmo traduziu? 

Sim, mas nunca é uma tradução. É uma reescrita em outra língua.

E hoje em dia, para escrever, o português sai naturalmente? Eventualmente você tem que fazer desvios por outros idiomas? 

Não, não. Mesmo depois, teoria eu escrevia em francês porque toda minha formação universitária foi em francês. Para mim, o inglês, paradoxalmente, é uma língua que continuo lendo mais do que em qualquer outra, provavelmente. É a língua dos meus grandes amores literários e leio muito ensaio em inglês. Mas não é uma língua culta para mim. A língua culta para mim é o francês.

E o português?


O português, hoje, é a língua que habito. A língua com a qual escrevo e me sinto muito em casa. Eu tive uma simpatia imediata pela língua portuguesa. Quando cheguei ao Brasil, não falava uma palavra. Eu falava espanhol que agora não falo mais, aliás, foi totalmente devorado pelo português. Por várias coisas, adorei o português: o futuro do subjuntivo que não existia em nenhuma das línguas que eu falava. Tem várias pequenas coisas na língua portuguesa que me seduziram.

Como a escrita agiu nesse processo de conhecer o país? Qual a noção de casa? É o Brasil?


Não sei. Até pouco tempo atrás, eu teria dito que casa é Veneza, que nem era realmente o lugar de residência, era a casa de fim de semana da minha infância. Na verdade, a escrita que transformou o Brasil na minha casa, de alguma forma. Não só a escrita de Hello, Brasil!, as crônicas tiveram um pouco essa função também, mesmo quando eu escrevia dos Estados Unidos, porque, justamente, eu as escrevia para os leitores daqui. Tenho uma tremenda antipatia por tudo que é ou implica uma identidade de grupo. Tenho dois passaportes, poderia ter cinco e adoraria não ter nenhum. Então, dizer que um país ou uma nação é a minha casa… não, não. Ultimamente estava pensando sobre que destino dar às minhas cinzas. Sei que é um pouco tétrico, mas, enfim, estava preparando uma lista de lugares e reservando um dinheiro para que alguém possa viajar e depositar um pouquinho em cada um desses lugares do mundo. Me parece mais adequado.

In: Jornal Rascunho,  edição  #235.





sábado, dezembro 14, 2019

OUTRO(S) NUM CASAMENTO




Uma conversa com Marcos José Müller, autor do recém lançado Outro(s) num Casamento.


MARIA: Gostaria em primeiro lugar que você falasse sobre a diferença deste livro em relação aos seus outros livros, já publicados. Parece-me que “Outro(s) num casamento” traz a marca de uma nova linguagem.

MARCOS: Obrigado pela oportunidade de mostrar aos leitores do blog minha mais recente produção. Ela marca, sim, uma  diferença em relação aos meus trabalhos anteriores, os quais são fortemente marcados pela escrita acadêmica, voltados ao público especializado em filosofia fenomenológica, psicanálise e psicologia clínica. Dessa vez, não obstante eu continuar a me servir dos resultados  e fontes de minhas pesquisas acadêmicas, o texto foi escrito em um formato ensaístico,  com forte apelo literário, em que encarrego 11 personagens de transmitirem, em função dos contextos narrativos em que se encontram, as diferentes maneiras pelas quais se pode pensar a experiência com o outro desde o ponto de vista da filosofia, da psicanálise, das artes, da religião e do misticismo.

MARIA: Na contra capa do livro, há uma pequena apresentação do texto. Ali você denominava esta narrativa como uma “autobiografia de ficção”. Você poderia falar um pouco mais sobre esta proposta. Afinal, toda autobiografia não é sempre uma ficção? 

MARCOS: Trata-se de um gênero já muito popular, que a academia denomina de autobiografia de ficção. Pois, não obstante o fato de toda narrativa ser ficcional, na autobiografia, estimamos algo de realidade, como se a realidade fosse algo mais consistente que a ficção de um narrador, seja ele um sujeito discursivo ou um algoritmo, muito embora saibamos que ela não o é. Por isso, mais além de coincidir com relatos de realidade, o gênero autobiografia de ficção põe em evidência, pela diversidade de vozes, o caráter ficcional das narrativas. Os personagens narram em primeira pessoa suas participações em um episódio que lhes é comum, precisamente, uma festa de casamento, a qual está inspirada em minha própria festa,  como se a pudessem relatar, muito embora, pela ótica de cada qual, sejam festas muito diferentes, em que se deparam com a presença de diferentes modos de apresentação do outro.

MARIA: Quem acompanha o seu trabalho sabe que você se interessa, há muito tempo, pelo tema do (O)outro. Tanto o outro enquanto descoberta da alteridade, quanto o outro como elemento construtor do laço social. Este livro foi uma forma de organizar esses anos todos de pesquisa sobre este tema?

MARCOS: Exato. É como se eu pudesse reunir em um mesmo modelo, que estou chamando de gestáltico, os diferentes olhares, irredutíveis entre si, intercalados como série de figuras em oposição a um fundo indeterminado, acerca do que possa ser essa diferença imtroduzida pela palavra - e a que chamamos de outro. A polifonia no modo de se dizer e viver as muitas caras do outro  é o tema do livro. Há o outro que se diz como silêncio desde o passado perfeito, como o faz a obra de arte. Há o outro que se diz como narrativa de futuro, tal como na experiência do desejo. Mas há também o outro que replicamos no presente a partir do passado imperfeito, não acabado, que é o outro como imagem. Temos ainda o outro que é uma narrativa fantástica, articulada num passado que não é nem indicativo nem subjuntivo, mas particípio, que participa de modo hierofânico, como testemunhamos nas narrativas religiosos. Bem como também há um outro  futuro, mas que não pode ser narrado, relatado, por que é mistério, meramente subjuntivo, tal como ele se apresenta na experiência mística. De sorte que, a partir de uma redução da fenomenologia da linguagem a seus elementos estritamente temporais, eu alcançasse um modelo, uma estrutura, uma gestalt, que mais não é senão um modo de apresentação das diferentes formas de configuração do outro enquanto linguagem. 

MARIA: Qual é a importância desse tema na sociedade contemporânea, onde a maior parte das relações com o outro se dá através da tela de computador?

MARCOS: Meu livro tenta radicalizar a antológica afirmação de Rimbaud, tão exaustivamente explorada por Lacan: o eu é outro. Como prefiro dizer, há muitos outros que se dizem no eu, não importa onde esse eu seja enquadrado: numa tela de computador, num aplicativo, num ideal político, numa reflexäo filosófica, numa teoria metapsicológica... A exigência iluminista de que tudo deve poder ser pensado a partir eu é questionada, à medida que se reconhece que tudo no eu vem do outro. E estejamos fisicamente afastados ou virtualmente conectados, é sempre do outro que se trata, em toda forma de vida humana. Qual é a abertura que nossos dispositivos, teorias, saberes e instituições têm para a multiplicidade de outros que se dizem nas linguagens?

MARIA: Finalmente, gostaríamos que você nos contasse como foi a recepção do seu livro no exterior? Sabemos que você fez lançamentos no México e no Chile.

MARCOS: Sou muito grato aos meus leitores, no Brasil e exterior, especialmente na América Hispânica, pela forma generosa como se ocuparam das minhas propostas, Tanto no Chile quanto no México, para os diferentes públicos que me deram o privilégio da palavra, as ideias deste novo livro encontraram uma boa receptividade, especialmente por conta de meu esforço para reunir, em um mesmo modelo aberto, diferentes referenciais apresentados sem a pretensão de síntese, ou redução a um ponto de vista hegemônico. Mais além do estranhamento com a proximidade entre significantes advindos simultaneamente da filosofia, da psicanálise e da literatura, os leitores se interessaram pelo modo como eu tentei discriminar os diferentes registros nos quais se inscrevem os significantes relativos ao modo como o outro se diz em nossas narrativas.


Maria  Holthausen

quinta-feira, dezembro 12, 2019

A INGÊNUA LIBERTINA




Como acompanhar a narrativa da jovem Minne sem lembrar de outras personagens que retrataram a figura da mulher burguesa bem casada, mas insatisfeita e descontente com o papel de esposa? Como não lembrar, por exemplo, das duas mais famosas personagens do século XIX: Madame Bovary, Anna Karenina? 

Contudo, apesar das semelhanças entre essas três personagens, uma dessemelhança fundamental se apresenta entre elas: Minne não é levada a um final trágico, como os de Emma e Anna. Certamente não podemos deixar de nos interrogar sobre, ao menos, dois fatores que poderiam esclarecer essa significativa diferença. 

Em primeiro lugar, a mudanças de valores morais do século XIX para o século XX. Lembremos que o século XIX foi marcado pela inflexível moral vitoriana que, conforme Freud, produziu uma rígida repressão sexual na sociedade civilizada. Em segundo lugar, arriscamos sugerir a questão de gênero na narrativa ficcional: Emma e Anna foram construídas por mãos masculinas, Minne é fruto do “devaneio”, como queria Freud, de uma mulher. Provavelmente estes dois elementos, assim como outros que possam ser sugeridos por estudiosos da cultura, estão em causa no desfecho dessas narrativas. Não é o nosso objetivo aprofundar esse viés de análise no texto. Mas antes, levantar a questão e suscitar outras possibilidades de análise.  

Voltemo-nos então para o romance de Colette. Sidonie-Gabrielle Colette nasceu na Borgonha em 1873 e morreu em Paris com 81 anos, consagrada como grande estilista da língua francesa.

Nas palavras de Maria Rita Kehl, “foi um monstro das letras e um fenômeno de massa. Vários de seus romances, desde a série inaugural dos Claudine, foram best-sellers, ao mesmo tempo em que seu estilo foi reconhecido por gente do porte de Proust, Cocteau, Sartre e Simone de Beauvoir.

Escreveu a vida toda, sem nunca ter tido a ambição de ser um gênio da literatura. Casada aos 19 anos com o quarentão mulherengo Willy, com quem teve sua iniciação erótica, Colette começou a escrever para superar uma suposta depressão decorrente das inúmeras traições do marido.”

Por um longo tempo, Colette não assumiu a autoria de seus romances, 
era o nome do marido – Willy – que aparecia nas capas das edições.   Só em 1923 passou a assinar sua obra. “A partir de então, sua escrita foi motivada acima de tudo pela "ambição louca de ganhar a vida por si mesma, no teatro e na literatura". 

Em A ingênua Libertina, publicado em 1909, Minne é uma garota que manifesta, desde muito jovem, um impertinente descontentamento com a educação estabelecida pela moral burguesa na alvorada do século XX.   Na primeira parte do livro, então com “catorze anos e oito meses”, acompanhamos o despertar de suas primeiras fantasias românticas e sexuais. O mistério da erotização do corpo levanta questões sobre o modelo do feminino representado pela figura materna: suas crenças e valores.

Frente à mãe, a jovem de pele alva, olhos negros e cabelos cacheados comporta-se conforme o esperado.  “Não é por medo que Minne esconde seus pensamentos da mãe. Um instinto caridoso a aconselha a permanecer, perante os olhos de Mamãe, uma criança grande obediente, cuidadosa como uma gata branca, que diz ‘Sim, mamãe’ e ‘Não, mamãe’, que vai às aulas e se deita às nove e meia da noite...”

Mas o que se passa fora do controle da mãe revela uma pré-adolescente “de inquieta sabedoria, que pouco fala, raramente ri, presa em segredo ao drama, à aventura romanesca, à paixão “.  Uma jovem impulsiva, “fria, que não conhece nem o medo, nem a piedade, e que se entrega em pensamentos a heróis sanguinários”. 

Assim como a jovem Emma Bovary, as leituras fecundam a selva fantasmática de Minne. Mas se Emma era fecundada por melodramas românticos, Minne se deixa fertilizar pelas colunas policiais dos jornais que lê escondido da mãe. Sua fantasia romântica/sexual não tem como protagonista nenhum príncipe encantado, mas um tipo desconhecido, Cabelo de Anjo, que, segundo as colunas policias, se encontra foragido da polícia. A jovem será capaz de não só elaborar fantasias com Cabelo de Anjo, mas de procurá-lo pelas ruas de Paris, interpelando homens que encontra pelas ruas. Esses encontros evidenciam uma adolescente que joga com a sedução, mas não se deixa enganar facilmente.

Mas além do seu mundo de fantasias está a convivência com o primo de dezessete anos. Nas trocas afetivas entre os dois adolescentes a autora se autoriza a uma inversão dos papéis tradicionalmente estabelecidos. Na narrativa estabelecida por Colette, é a personagem feminina que apresenta comportamentos perversos. Antoine é constantemente atormentado pela prima: sua permissão  para que ele lhe de apenas beijinhos no rosto, seus mandos e proibições, seus recursos para humilhá-lo, sua habilidade em descrever amores inventados - sem outro propósito senão o de torturar o jovem apaixonado; testemunham a sujeição do jovem frente a um gozo perverso do feminino.

Na segunda parte do livro o relacionamento entre os primos culminará em um casamento, conforme o desejo da mãe. No entanto, o lugar ocupado por cada um continuará o mesmo.  O cenário perfeito para o jogo de poder e submissão, com os parceiros se adaptando a seus lugares de dominadora e de amante subjugado. “Pobre Mamãe! Ela não achou nada melhor para me dizer antes de ir embora: ‘Case com Antoine, minha querida: ele a ama, e você não pode casar com outro...’ Ora essa! Eu poderia casar com trinta e seis mil outros, com qualquer um, contando que não fosse esse.”

“Com qualquer um, contando que não fosse esse.” Eis aqui um dizer que fala do desejo. Esse homem não. Esse homem, segundo o significado dado pela mãe, se situa na ordem da necessidade e não na ordem do desejo. Antoine, apesar de sua devoção, torna-se o representante da ferida narcísica de Minne. “Essa pobre mamãe, ela estava convencida de que eu trazia escrito na testa: “Eis aqui a moça que dormiu fora de casa! Dormiu fora de casa! As consequências que isso me trouxe!”

Minne, essa personagem narcísica, hedonista, movida pelo prazer, nunca se submeteria ao julgamento da mãe. Ela não pode amar a esse homem que ratifica diariamente o empobrecimento de sua imagem. É preciso que os desdobramentos das suas experiências sexuais e amorosas fora do casamento, venham deslocar o marido do lugar de significação dado pela mãe. Quando isso finalmente acontece Minne pode aceitar e reconhecer o amor de Antoine. 


MARIA HOLTHAUSEN
Grupo de Leitura - 25/11/2019


    

A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS

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