quinta-feira, dezembro 28, 2023

PSICANÁLISE: O TEMPO DA SESSÃO







Perante o sintoma todo relógio é mole 

Antonio Quinet 

 

Todas as tentativas de Freud de fixar o tempo de uma análise fracassaram quando não causaram dano maior ao paciente, como no caso, segundo Lacan, do Homem dos Lobos. Tampouco há como prever o tempo de duração de entrevista prévia e necessária a essa entrada. E, uma vez estabelecida a transferência analítica duas vertentes temporais estarão em jogo: a vertente sem fim, própria à cadeia significante do sujeito e a vertente disruptiva e atemporal do ser em sua modalidade de gozo. A primeira é a vertente interminável que inclui a temporalidade da sucessão própria à associação livre com o passado; presente; futuro, a retroação característica da experiência de significação na rememoração e a prospecção que o futuro infinito do desejo imprime no Inconsciente. A segunda é a vertente terminável conceitualizada como o encontro com o rochedo da castração e por Lacan como "a solução do enigma do desejo do analista que lhe entrega seu ser cujo valor se escreve () ou (a)". (Cf. Proposição). 

A teoria dos nós e do sinthoma na última parte do ensino de Lacan não modificam essas duas vertentes nem eliminam as dimensões do simbólico do inconsciente e do real do gozo. À pergunta sobre qual será a duração do tratamento analítico a única resposta verdadeira continua sendo a pronunciada por Freud: “Ande!”. 

O tema do nosso Encontro reafirma a posição do analista quanto ao tempo, quando escolas de psicanálise que se reivindicam do ensino de Lacan propõem uma "psicanálise aplicada" aos pobres por quatro meses (podendo ser prorrogado para até oito meses) diferenciando; a da "psicanálise pura" para os ricos e os psicanalistas. Um tal desvio da psicanálise é incompatível com seus princípios. Chamar essa terapia de psicanálise é desconsiderar que o sujeito do Inconsciente está também presente com seus desejos e sintomas nas classes mais desfavorecidas, oferecendo para eles esse tipo de tratamento que é um engodo. O preconceito é classificar os inconscientes segundo a classe social em nome de uma caridade. O psicanalista pode e deve atuar na urgência e propor o tratamento psicanalítico para todos que o quiserem sem precisar contrabandear seus fundamentos. É o que diversas Sociedades e Escolas de Psicanálise inclusive a EPFCL e as FCCL, e até mesmo ambulatórios em Universidades, já fazem há muito tempo no Brasil. O analista a partir de seu ato com a oferta cria a demanda de uma análise independente do bolso do sujeito. Padronizar uma psicanálise a curto prazo é ir contra toda a luta de Lacan contra os padrões estabelecidos e burocratizados que impedem a psicanálise de se exercer na sua criatividade e singularidade de cada ato analítico. Estipular um prazo para o tratamento é um empuxo ao furor curandi para fazer desaparecer o sintoma. Essa prática leva ao pior, na medida em que o sintoma é uma manifestação do sujeito que o analista deve antes de tudo acolhê-lo e fazê-lo falar ao invés de tentar liquidá-lo para engrossar as estatísticas dos êxitos da pesquisa científica. Diante do sintoma todo relógio é mole, como o do quadro de Dali. Impor um tempo ao sintoma é uma ingenuidade se não for uma impostura. E além do mais, prometer a reabilitação rápida do doente para que ele volte logo ao mercado de trabalho e ao consumo não seria estar ao serviço do discurso capitalista? Não se pode pagar o alto preço do assassinato do sujeito com vistas a não se perder o trem-bala da contemporaneidade. Isto não é estar à altura da subjetividade de sua época e sim submeter a psicanálise aos discursos dos mestres. 

O capitalismo e a tecnociência são as torres gêmeas que sustentam o mal-estar na civilização contemporânea levando-a ao desastre e ao terror. A psicanálise não deve se adaptar ao discurso capitalista com o empuxo-à-fama de seu marketing nem se curvar ao discurso da ciência que rejeita a verdade do sujeito. Ao ceder a elas não há mais lugar para o Inconsciente nem o real do sinthoma. A Escola de Lacan é o lugar do refúgio e crítica ao mal-estar na civilização. 

In: Anais do Campo Lacaniano, 

Junho, 2008

sexta-feira, novembro 24, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE


 

(O) Curso Livre (da) Formação

Módulo XXII

a elaboração de casos clínicos


Dia: 08 e 09 de dezembro

Ministrante: Maria Holthausen

Online: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC 


No campo da prática psicanalítica, a relato de casos clínicos é abalizado como uma ferramenta para a elaboração teórica da experiência de escuta. Além de se oferecer como um trabalho voltado para a transmissão da psicanálise, antes de tudo, consiste num trabalho fundamental no dia a dia da prática clínica, para orientar o analista na direção da cura, através de uma constante formalização do material bruto dos pacientes em casos clínicos.


Bibliografia:

LACAN, Jacques, “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”, Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.

MAZAN, Renato, Escrever a Clínica, São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

DUNKER, Christian, RAMIREZ, Heloísa, ASSADI, Tatiana de Carvalho, Orgs.,  A construção de casos clínicos em psicanálise – método clínico e formalização discursiva, São Paulo: Annablume, 2017


As vagas para este módulo foram esgotadas. Acompanhe-nos nas redes sociais da Usina Dizer, para saber quando abriremos inscrições para os próximos.

Caso tenha dúvida, entre em contato conosco pelo telefone

(48) 3030-7474

terça-feira, outubro 31, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE




(o) Curso Livre (da) Formação

Módulo XXI

Análise de uma fobia: Pequeno Hans


Dia: 10 e 11 de Novembro de 2023

Online: Plataforma Zoom
Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC

O Curso de Formação da Usina Dizer chega ao 21º módulo abordando o tema da fobia a partir do texto de Freud, “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”. 

Na época da publicação desse caso, a história do garotinho analisado através de uma dubla escuta - o pai e o psicanalista - provoca grande burburinho e levanta muitas questões. Pouco tempo depois, o caso Hans torna-se um precursor da psicanálise infantil, tornando-se a pedra fundamental dos trabalhos de Melanie Klein e Ana Freud, entre outros. Debruçados sobre esse material, ao mesmo tempo clínico e histórico, nosso objetivo é sublinhar os diversos movimentos conceitos que o referido caso proporcionou a Freud: histeria de angústia, complexo de Édipo, identificação, recalque, transferência e sublimação.


Bibliografia:

FREUD, Sigmund, Análise de uma fobia em um menino de cinco anos - 1909, Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. X, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

_______________, A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade - 1923,  Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

LACAN, Jacques, “A Estrutura dos Mitos na Observação da Fobia do Pequeno Hans”, in: Seminário livro 4, a relação de objeto, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

segunda-feira, setembro 25, 2023

GIDE, GENET, MISHIMA: INTELIGÊNCIA DA PERVERSÃO


 

Catherine Millot: O sexo

 

Transcrição da entrevista feita por Betty Milan

 com a psicanalista francesa Catherine Millot. 

 

Psicanalista – membro da Escola Freudiana de Paris, fundada e dissolvida por Jacques Lacan –, filósofa e ensaísta, Catherine Millot publicou vários livros, entre eles La vocation de l’écrivain (“A vocação do escritor”)de 1991, pelo qual é conhecida. Nasceu na França e vive em Paris, onde clinica e ensina na Universidade de Paris VIII. Gide, Genet, Mishima – A inteligência da perversão, Freud antipedagogo e Extrasexo – Ensaio sobre o transexualismo são algumas de suas obras em circulação no Brasil.

Betty Milan: Você escreveu um livro de grande sucesso, Gide Genet Mishima, cujo subtítulo é “A inteligência da perversão”. Gostaria que você dissesse qual é o sentido da palavra perversão hoje e comentasse o subtítulo do seu livro.
Catherine Millot: Prefiro comentar o subtítulo primeiro. Foi escolhido pelo meu editor, Philippe Sollers, porque, desde o início do trabalho, eu queria fazer um elogio à perversão, mas não ousava sustentá-lo publicamente. Temia que as pessoas logo se opusessem ao elogio, invocando o serial killer, que é um perverso. Ninguém pensaria na inteligência de Gide, que tornou pública a sua homossexualidade para defender o direito dos homossexuais de serem como são. O procedimento dele teve uma grande repercussão social e foi por causa disso que ele recebeu o Prêmio Nobel. Gide foi explicitamente nobelizado por ser um liberador dos costumes e do espírito.

FREUD: A UNIVERSALIDADE DA PERVERSÃO

BM: Seria possível retomar a questão e analisar o sentido da palavra perversão hoje?
MILLOT: A palavra perversão é usada na França para designar a manipulação de uns pelos outros. Por isso, o termo aparece muito na política. Quanto a mim, uso-o no sentido dos sexólogos, de Krafft-Ebing. No século XIX, o termo designava todas as formas de desvio sexual, ou seja, toda prática sexual que não estivesse ligada ao primado da reprodução. Em 1895, nos Três ensaios sobre a sexualidade, Freud mostrou que tal desvio era universal, ou seja, que as práticas perversas servem de preliminares para os heterossexuais. Noutros termos, que a sexualidade humana não é determinada pela procriação. Foi uma ideia subversiva, inteiramente nova.

BM: Que relação existe entre esta ideia de Freud e a liberação que ocorreu no século XX?
MILLOT: Por ter mostrado que a sexualidade humana não é redutível à reprodução, Freud induziu a uma tolerância social maior e favoreceu a aceitação dos homossexuais. Mas esta só ocorreu realmente depois de maio de 1968 e, na França, só quando a esquerda tomou o poder em 1981, porque ela modificou as leis. Quanto à liberação das mulheres, também está ligada à separação entre a sexualidade e a reprodução, mas só se tornou possível graças à pílula, que é na verdade uma arma de dois gumes.

BM: Por quê?
MILLOT: Porque a procriação, agora, é mais complicada, na medida em que depende de uma decisão. A mulher precisa pedir e o homem, aceitar. Ora, a paternidade é angustiante e não é fácil o homem assumir. Num certo sentido, a pílula dificultou a vida das mulheres. Ganharam por um lado e, por outro, perderam. Ademais, as pessoas agora resolvem ter filhos quando já é muito tarde, e as mulheres precisam de assistência médica para procriar. A procriação in vitro é a expressão mais clara da disjunção entre a sexualidade e a procriação.

BM: Voltando à perversão sexual, eu gostaria de saber desde quando ela deixou de ser considerada um delito.
MILLOT: Se considerarmos as diferentes perversões, existe apenas uma que deixou de ser delito: a homossexualidade. Na França, ela foi crime até a Revolução Francesa. Ainda no século XVIII, há gente queimada em praça pública por causa de sodomia. No Código Penal de 1810, a homossexualidade com menores de 15 anos leva à cadeia e é punida com trabalhos forçados, caso tenha havido violência. No século XIX, a idade passa de 15 para 13 anos. Com o governo de Vichy (1940-1944) há um endurecimento. Qualquer um que satisfaça suas paixões homossexuais com menores de 21 anos é preso. Durante o governo de Charles de Gaulle, as mulheres passam a ser consideradas maiores aos 15 anos. Mas a grande mudança ocorre em 1981, porque, a partir de então, a homossexualidade só é considerada criminosa com menores de 15 anos, homem ou mulher. Por um lado, se estabelece a igualdade entre os sexos e, por outro, se considera que o delito não é a homossexualidade, mas a pedofilia.

BM: Quais foram, no século XX, as principais vítimas da repressão sexual?
MILLOT: Oscar Wilde é uma delas. Todo mundo conhecia sua homossexualidade, mas ninguém havia se oposto a ele legalmente. Foi porque Wilde processou o pai do seu amante, um homem que o injuriava, tratando-o de homossexual, que a prova disso foi constituída. Nessa época, na França, era possível ter relações sexuais com menores, desde que tivessem mais de 13 anos. O fato é que Wilde saiu da prisão em 1897 arruinado e nunca mais se recuperou. Isso marcou André Gide, que conheceu Oscar Wilde na França em 1891 e depois o reencontrou na Argélia em 1895, onde Wilde ofereceu a ele um jovem músico. Pouco depois, Wilde foi preso, e Gide, que estava se iniciando, ficou muito impressionado. Tornou pública a sua homossexualidade para que a repressão não fosse mais possível.

BM: A situação de Gide foi diferente da situação de Wilde por um ser francês e o outro, inglês…
MILLOT: Verdade que sempre houve maior tolerância na França do que no mundo anglo-saxão. A gente se dá conta disso considerando o que acontece nos Estados Unidos com o caso de Clinton, por exemplo. Na França, há uma tradição de não-interferência na vida privada das pessoas.

BM: Quando Gide tornou pública a sua condição, a homossexualidade já não era mais considerada um crime na França. O que ele visava exatamente?
MILLOT: Quis se opor à condenação moral…

BM: E por que não foi reprimido?
MILLOT: Por causa da Primeira Guerra Mundial, que pôs frente a frente povos civilizados, povos que eram vizinhos e poderiam ser amigos – uma guerra que foi extremamente traumática em razão da destrutividade das armas modernas e do número enorme de mortos. O trauma foi tal que acabou com os valores tradicionais. Pode-se dizer que houve uma revolução de costumes depois da guerra de 1914. Foram os chamados Anos Loucos. Gide se beneficiou da liberdade que vigorava então.

BM: Nos anos 70, o homossexualismo foi assumido publicamente por muitos. O que levou a isso?
MILLOT: O militantismo apareceu em 1971. Foucault apoiou a luta pela igualdade entre os homossexuais e os heterossexuais, pela igualdade diante da lei.

BM: E o que você acha do fato de assumir publicamente a opção sexual?
MILLOT: Há grupos que até fazem propaganda da homossexualidade e outros que são mais reservados. Foucault, por exemplo, nunca declarou que era homossexual – até porque ele considerava que se trataria de uma confissão forçada. A tendência que obriga os homossexuais a tornar pública a sua homossexualidade é uma tendência tirânica. Muitas pessoas precisam viver a própria sexualidade de forma secreta. A dissimulação pode fazer parte do gozo.

BM: A liberdade, portanto, consiste em ter o direito de mostrar ou de esconder, e nós estamos bem longe disso…
MILLOT: Exatamente.

A REVOLUÇÃO SEXUAL DOS ANOS 60

BM: Nós falamos que a liberação dos homossexuais precedeu a das mulheres. Gostaria que você falasse da revolução sexual dos anos 60, que diz respeito sobretudo a elas.
MILLOT: Passamos da ideia de que as mulheres não tinham vocação para o gozo para a de que têm o direito e o dever do gozo. A revolução sexual dos anos 60 foi condicionada por duas descobertas médicas: a penicilina, que nos liberou do medo da sífilis, e a pílula, que nos liberou do medo da gravidez. Antes da pílula, as mulheres não tinham sossego. A gente corria o risco de ficar grávida e precisava estar atenta o tempo todo. A pílula apareceu na França em 1965, mas só foi legalizada em 1967. O grande boom foi mesmo em 1968.

BM: A homossexualidade deixou de ser incriminada e as mulheres foram liberadas para o gozo, mas passamos a estar sujeitos a dois imperativos: ter de falar de sexo e ter de transar, o que não deixa de ser opressivo. Você diria que nós passamos da repressão para a obrigação?
MILLOT: Quem focalizou mais claramente essa questão foi Michel Foucault. Na História da sexualidade, ele se opôs à ideia que vigorava nos anos 70 de que a sexualidade sempre foi reprimida e de que graças à psicanálise a repressão deixou de existir. Mostrou que a psicanálise nos incitou a falar de sexo continuamente e isso só favoreceu o controle da sexualidade pela Igreja. Para Foucault, a cura analítica não passa de um prolongamento da religião… A sexualidade de certo modo evoca os partidos totalitários, porque passamos sempre do que é proibido para o que é obrigatório. Nos anos 60, escapamos da repressão imposta às gerações anteriores, mas, para ser liberada, era preciso dizer sim a todas as propostas masculinas. Do contrário, éramos consideradas retrógradas. As mulheres tinham de dizer sim, e os homens, de responder ao imperativo de ter uma atividade sexual intensa, ao imperativo do gozo. A liberdade sexual não existe. Ou bem estamos sujeitos à interdição ou ao imperativo de transar.

O TURISMO SEXUAL

BM: O turismo sexual data dos anos 70 e é decorrente da democratização da viagem. Gostaria de saber se ele tem antecedentes.
MILLOT: O turismo de massa começou nos anos 70, mas o turismo sexual já existia antes. Sempre houve gente indo aos países do Sul nas férias para ter relações sexuais facilmente. A tradição do turismo sexual existe desde o século XIX. Os jovens da burguesia de então costumavam dar uma volta pela Europa. As viagens para a Itália fazem parte dessa tradição. Freud fez até um trocadilho porque, em alemão, ir para a Itália é gehen Italien, que lembra genitalien, ou seja, genitália. Gide, por exemplo, partiu com um amigo para a África a fim de perder a virgindade.

O PIONEIRISMO DOS ESCRITORES NA LIBERAÇÃO SEXUAL

BM: Gide foi um pioneiro da liberação dos homossexuais. E entre as mulheres, quem foi?
MILLOT: Colette. Uma de suas personagens, Claudine, tinha relações sexuais com a professora e com uma colega. A obra de Colette é atravessada por histórias de homossexualidade feminina. Ela nunca declarou que era homossexual, mas isso não a impediu de viver a sua homossexualidade e de fazer alusão a isso sob o modo da ficção. Num dos seus livros, O puro e o impuro, ela fala de um movimento homossexual que existiu no início do século em Paris. As mulheres iam aos restaurantes e às boates vestidas de homem, apesar de um decreto que proibia isso.

A TOLERÂNCIA DOS MEIOS INTELECTUAIS

BM: Quais foram os meios em que a sexualidade pôde ser vivida abertamente no século XX?
MILLOT: Os meios intelectuais e artísticos. Isso se torna evidente quando a gente lê Cahiers de la Petite Dame, por exemplo. a Petite Dame era uma amiga de Gide, uma amiga mais velha com a qual ele coabitou durante muito tempo e que todo dia tomava nota do que ele dizia. Foi testemunha das atividades de sedução de Gide, sobretudo de jovens adolescentes. Ela era de uma tolerância absoluta. Gide seduzia meninos de 13, 14 anos, e ela se divertia com isso. Havia uma cumplicidade muito grande entre eles. Trata-se mesmo de um exemplo de tolerância. Outro exemplo é o de Jean Genet. Logo depois da guerra, esteve ameaçado de prisão perpétua, porque era ladrão e reincidente… Pequenos roubos que hoje seriam considerados insignificantes, como roubo de um livro, de um lenço… Mas, como ele fazia isso o tempo todo, foi parar na cadeia – e a pena para os reincidentes era a prisão perpétua. Genet foi salvo por Cocteau, que conseguiu um juiz tolerante para ele. Depois, Genet foi agraciado pelo presidente da República. Ora, ele era autor de obras pornográficas, como Nossa Senhora das Flores ou O milagre da rosa,que narram explicitamente relações homossexuais. O fato de ter sido agraciado é uma prova da tolerância no meio em que ele vivia.

A ADOÇÃO DE CRIANÇAS

BM: Neste fim de século, se fala em legalizar a adoção de crianças por homossexuais. O que você pensa da adoção de crianças por um casal homossexual?
MILLOT: Eu poderia dizer que é melhor ter como pais um casal tradicional. Isso permite que a criança se estruture mais facilmente do ponto de vista das identificações sexuais, porque há um homem e uma mulher. Mas, considerando o que acontece com os filhos de casais tradicionais, talvez não seja pior ser criado por dois homens ou duas mulheres. Em suma, tudo depende da personalidade da criança e do casal. Há crianças que ficam traumatizadas por um quase nada e outras que se adaptam facilmente a qualquer situação.

A AIDS E A RETRAÇÃO DO ANOS 80

BM: A liberação sexual foi interrompida pela Aids nos anos 80…
MILLOT: Sim, e é preciso considerar que o medo da Aids talvez não seja proporcional ao perigo. Houve um movimento moralista que surgiu em função da sexualidade desenfreada nos meios gays, nos anos 70, nos Estados Unidos, terreno no qual a Aids, que já existia de forma incipiente, se desenvolveu. A retração de hoje também é devida ao fato de que o preservativo implica um pequeno risco. Podemos falar de sexo seguro, mas não de sexo absolutamenteseguro. A Aids reintroduziu o risco e reavivou o discurso moralista sobre a sexualidade.

BM: O século XVIII conheceu a liberdade sexual dos libertinos e o XX, a da revolução sexual. Gostaria que você comparasse essas liberdades.
MILLOT: Os libertinos eram minoritários – burgueses, aristocratas ou intelectuais. Já o que caracterizou a liberdade sexual dos anos 60 foi sua amplitude. Por outro lado, os libertinos tinham um discurso pedagógico e havia também, na libertinagem, uma dimensão de segredo. Nos anos 60, além de uma reivindicação aberta, houve a divulgação através da mídia, cujo desempenho foi muito importante.

BM: O sexo está hoje associado à felicidade. Quando foi que essa associação surgiu e como ela se explica?
MILLOT: Surgiu no século XIX. Freud diz que a satisfação sexual é a mais forte que o ser humano pode ter e, portanto, a mais importante para a felicidade, pois esta depende da satisfação.

In: https://www.bettymilan.com.br/catherine-millot-o-sexo/

sexta-feira, setembro 15, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE


 

(O) Curso Livre (da) Formação 

Módulo XX

"A Perversão no divã"


Dia: 20 e 21 de Outubro de 2023

Ministrante: Maria Holthausen

Online: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC


De Freud a Lacan o tema da perversão pode ser abordado sobre três perspectiva: Estrutura Perversa, Perversão Sexual e Perversão Moral. Três abordagens epistêmicas sobre a perversão. A primeira nos ensina o manejo clínico da estrutura perversa. A segunda, dentro do amplo campo da sexualidade, baliza o pensamento psicanalítico sobre as diferentes formas de sexualidade. E a terceira, oferece elementos que nos permite interrogar a violência e a destrutividade nos diversos campos sociais. 


Referência Bibliográfica:

FREUD, Sigmund, “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VII, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

_______________, “Fetichismo”, Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VII, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

DOR, Joël, Estrutura e perversões, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991


quarta-feira, agosto 30, 2023

É BOBAGEM?

 



Construindo polêmicas em 

direção a lugar algum


Vladimir Safatle


A vantagem de entrar em uma polêmica quando ela parece estar acabando é poder avaliar seu saldo. E no mais das vezes, quando ela é uma polêmica intelectual feita a partir do ritmo, das frases de impacto e das imagens próprias à mídia, seu saldo é muito próximo do zero. Talvez seja esse o caso da última versão nacional do já centenário debate sobre a cientificidade da psicanálise, impulsionada por uma pesquisadora da área de biológicas, a sra. Natalia Pasternak, e seu marido jornalista, o sr. Carlos Orsi.

E é bom lembrar do caráter centenário desse debate, porque teríamos o direito de esperar que sua versão nacional pudesse trazer alguma novidade, algum argumento astuto, alguma pesquisa nova a uma discussão sobre o destino de uma prática clínica que, para o bem ou para o mal, moldou a sensibilidade ocidental a respeito de questões tão centrais como: família, sexualidade, corporeidade, memória, desejos e seus conflitos. Pois é materialmente impossível descrever o século 20, suas aspirações, tensões e transformações, sem entendermos como nossa cultura é, em larga medida, uma “cultura psicanalítica”. Isso significa: uma cultura forjada pela circulação da psicanálise em consultórios, hospitais, escolas, filmes, literatura, mas também em periferias, lutas sociais, entre outros.

Entender tal força de influência de uma prática clínica exige um trabalho de sociologia das ideias que muito poderia acrescentar ao debate. Trabalho que poderia trazer elementos para responder, de forma mais objetiva, a questões como: por que a psicanálise se inseriu de forma tão orgânica na história das sociedades ocidentais? Foi porque Freud era um “ótimo publicitário”, um “astuto prestidigitador”? Ou foi porque a psicanálise efetivamente diz algo de relevante a respeito da estrutura de nossa subjetividade e cultura?

 

Olavo tinha razão

Antes de abordar esse ponto, seria o caso de fazer uma contextualização histórica. Livros contra a psicanálise contam-se aos montes há décadas. Em 2011, por exemplo, o Brasil recebeu a tradução de um deles, o então famoso Livro negro da psicanálise. Quem o reler encontrará praticamente todos os argumentos e críticas que animam o Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. O primeiro deve, inclusive, ser mais barato, pois o seu destino foram principalmente os sebos de ocasião. Pois quando o Livro negro foi traduzido, sua recepção foi morna, como quem ouve a mesma piada contada várias vezes.

O que aconteceu então com o Brasil para que a mesma discussão aparecesse agora de forma mais explosiva, sem que nenhum elemento novo ou dado relevante fosse acrescentado ao debate? É possível creditar parte do fenômeno à desorientação produzida pela pandemia. Diante de um governo que praticou uma sequência sistemática de crimes contra a saúde pública, não faltaram aqueles que se viram no meio de uma verdadeira reedição da guerra das luzes contra a superstição, da ciência contra o obscurantismo, da civilização contra a barbárie. Pesquisadores em ciências biológicas e exatas foram elevados à condição de guardiães da razão aos quais a política deveria se submeter, se não quisesse abraçar as vias do populismo ou de algum “irracionalismo” em política.

Só que agora talvez seja o momento de dizer que, nesse caso, o medo fez o pensamento crítico regredir duas casas. Primeiro, porque nunca estivemos em um combate da ciência, das luzes, da civilização, da razão, da bondade etc. contra as forças da regressão e do atraso. Seria bom começar por lembrar o quanto há de sombra nas luzes, o quanto há de barbárie na civilização, o quanto há de obscurantismo no positivismo científico. Um pouco de dialética do esclarecimento faz bem nesses momentos.

A luta contra o fascismo nacional não foi nem é uma luta contra forças obscurantistas, um termo mais apropriado aos debates teológicos do que às análises políticas. Analiticamente “obscurantismo” não diz nada, até porque, se me permitem, sempre se é o “obscurantista” de alguém. O que não poderia ser diferente, já que o conceito de racionalidade é um conceito histórico e em disputa, a ciência não é um espelho da natureza, e não há nada de “relativista” nessa posição. Não sendo uma luta contra o “obscurantismo”, nossa guerra contra o fascismo é uma luta política (sublinho, uma luta política) contra uma junção devastadora de ultraliberalismo econômico, indiferença social, violência estatal e organização da sociedade a partir da generalização da lógica de milícias.

Dito isto, sugiro que aqueles que gostariam de fazer debates de divulgação científica para o grande público não esquecessem de outro biólogo, o sr. George-Louis Leclerc, mais conhecido como conde de Buffon, quem nos lembrava que “o estilo é o próprio homem”. Maneira de dizer que a rudeza do estilo é expressão da simplicidade do conteúdo do pensamento. Ninguém faz discussão séria sobre nada com o tom bonachão do monopolista do bom senso que olha para as ditas “verborragia pseudocientíficas” e exclama, com se estivesse fazendo uma repreensão às impertinências de um adolescente: “Que bobagem!”. Isso deveria ser deixado com o finado Olavo de Carvalho e seus seguidores.

Tanto é assim que falta simplesmente tudo, do ponto de vista de uma reflexão epistemológica séria, nessa versão mais recente do debate nacional sobre a cientificidade da psicanálise. Há uma longa bibliografia recente, tanto nacional quanto internacional, de reflexões epistemológicas sobre a psicanálise e seus regimes de objetividade. Seria necessário levá-la em conta e se posicionar a respeito. Há uma história de respostas aos argumentos clássicos contra a psicanálise. Seria necessário levá-la em conta e se posicionar a respeito. Não vou fazer aqui o papel do professor de teoria das ciências humanas e passar a lista exaustiva e ausente, mas o mínimo que se pode dizer é que um debate sério sobre a objetividade da psicanálise levaria em conta, por exemplo, as discussões daqueles que pensaram nos últimos anos psicanálise e neurociências (como Mark Solms e as reflexões do Nobel de medicina Erick Kandel).

Ele poderia, ainda, fazer pesquisas com pacientes que passaram pela psicanálise e sentiram mudanças importantes em suas vidas, fazer a mesma pesquisa com pacientes que não perceberam tais mudanças e avaliar os resultados. Seria interessante fazer tais pesquisas no Brasil dos últimos anos. Tudo isso seriam contribuições significativas para o debate, mas nada foi feito, o que nos leva àquela sensação tão bem descrita por Shakespeare: Muito barulho por nada… mais uma vez.

 

Sofrimento e autorreflexão

Digo “mais uma vez” porque o debate sobre a psicanálise como pseudociência sempre foi muito pobre intelectualmente, já que foi feito em larga medida por quem se via mais na posição de esconjurar um embuste primário do que de efetivamente analisar uma prática clínica e uma crítica da cultura complexa que merece, ao menos, paciência nas análises. Por exemplo, uma dessas figuras, cuja crítica retorna pela enésima vez nas páginas do livro que analisamos, é, não poderia deixar de ser, Karl Popper.

Afinal, Popper foi responsável pela ideia de que a psicanálise não poderia ser ciência, já que as interpretações de um analista não são enunciados que podem ser verificados. Se o paciente aceita tais interpretações, o psicanalista se sente confirmado; se ele recusa, o analista pode sempre alegar resistência do analisando e continuar sentindo-se confirmado.

No entanto, não é difícil imaginar que a crítica é pedestre. Interpretações psicanalíticas podem, sim, ser incorretas. O critério de correção em uma análise está ligado à produção de novas associações. Se o analisando ou analisanda simplesmente nada faz com a interpretação, ela é incorreta; se ele ou ela se abre a novas associações, ela é correta. Claro que o critério não está em uma versão correspondencialista de verdade, ou seja, na ideia de que um enunciado verdadeiro corresponderia a algo em um estado de coisas dotado de acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica. O critério de verdade é pragmático e consequencialista.

Isto não é estranho para uma prática clínica desmedicalizada, ou seja, que não compreende o sofrimento psíquico como expressão causal de marcadores biológicos, como se fôssemos obrigados a assumir uma relação estritamente biunívoca entre estado cerebral e estado mental, ou como se estados mentais fossem apenas maneiras “metafóricas” de falarmos sobre estados cerebrais. Por ser desmedicalizada, a psicanálise opera por uma forma muito específica e singular de reconhecimento. Isso não poderia ser diferente porque, quando estamos a falar em sofrimento psíquico, a maneira com que um paciente se autocompreende interfere em seu quadro clínico.

Levar um depressivo a compreender-se de outra forma tem, sim, efeitos em seu quadro clínico. Mas, é claro que isso não se dá por simples “redescrição simbólica”. Nossas formas de autocompreensão estão enraizadas em experiências sociais e históricas, em violências reiteradas, na forma de circulação de discursos e práticas, em nomeações que têm o peso do aparentemente intransponível. Tais autocompreensões se organizam através de nossos usos de linguagem, de nossas disposições de ação, da história de nosso desejo, que é sempre uma história social composta de mortos e vivos, de disposições conscientes e inconsciente.

A modificação desse quadro não se dá com incitações empresariais à “vontade de mudar”. Ela se dá através do aprofundamento dos conflitos e da crítica, ela se depara com várias formas de angústias e de suas defesas, ela faz queimar narrativas que tínhamos de nós mesmos, não teme a desorientação que tal combustão produz, ela deve lidar com repetições que irão modificar-se a despeito de nossa vontade. É disso que uma análise é composta.

 

O lugar das ciências humanas

Aqui vale uma consideração de ordem geral a respeito do que chamamos de “ciências humanas”. Podemos dizer que a diferença ontológica fundamental entre as ciências humanas e as ditas ciências exatas é a autorreflexividade de seus objetos. Você pode pegar uma pedra e explicar a ela, em várias línguas, a lei da gravidade. Ela vai se comportar da mesma forma. O mesmo não acontece com seres humanas e suas produções sociais. Eles integram as explicações que fazemos sobre seus comportamentos, seus sofrimentos, seus afetos. Tais explicações produzem novos efeitos. Ou seja, a explicação não é apenas uma descrição. Ela tem força performativa.

Isso explica por que toda e qualquer ciência humana é indissociável de modalidades de intervenção. Um sociólogo que descreve a sociedade como uma totalidade antagônica marcada por lutas de classe necessariamente intervém no seu objeto, porque se a sociedade se autocompreender dessa maneira, ela produzirá efeitos que não produzia anteriormente. Ter essa consciência é algo muito mais honesto do que se esconder sob o manto de qualquer neutralidade axiológica que seja.

As ciências humanas não são neutras em relação a valores, pois suas explicações e descrições serão reflexivamente integradas pelos próprios objetos, redimensionando seus horizontes de ação no presente, no passado e no futuro. Mais honesto é, então, entender o vínculo indissolúvel entre descrição e valor no campo das ciências humanas, perguntando-se continuamente sobre a partir de que valores pesquisadoras e pesquisadores das ciências humanas intervêm no corpo social e em seus sujeitos.

Nesse sentido, a psicanálise é efetivamente uma ciência humana modelo, e por isso ela é tão atacada. Pois ela tem consciência plena do caráter performativo de suas explicações e intervenções. Isso explica por que o eixo de sua racionalidade clínica encontra-se no que chamamos de “manejo da transferência”. Uma maneira de explicá-lo consiste em lembrar que as relações de autoridade nos fazem sofrer. Elas determinam obrigações, normas, leis, modos de ser, disposições de conduta, valores e sentimentos morais. Eu me constituo socialmente internalizando princípios e figuras de autoridade. O médico, o discurso médico, o psiquiatra são também autoridades que têm força constituinte de sujeitos e subjetividades. Nossa vida psíquica é uma relação intersubjetiva constante com as marcas dessas figuras, com suas internalizações, suas idealizações. Por isso, há sempre muitos outros em um Eu.

Um psicanalista é alguém que entende que modificações na autocompreensão de uma paciente ou um paciente são indissociáveis da capacidade de modificar tais relações de autoridade constituintes e sempre reiteradas. E a principal delas acaba se tornando a relação com o próprio analista, ou seja, com alguém que procurei por supor um saber sobre meu desejo, alguém que por uma série de razões entrou em uma cadeia de figuras e representações constituintes de saber.

Por isso, a experiência que a psicanálise procura pôr em prática é uma experiência sobre o caráter constituinte de relações de saber e poder que estão presentes em várias estruturas sociais, até porque a transferência não é um fenômeno exclusivamente clínico. Ela está presente em todo lugar no qual há relação constituinte de autoridade. O psicanalista age sobre essas relações, procura dar corpo a elas em situação clínica a fim de permitir que elas caiam e desamparem. Ele irá então lidar com tal desamparo, na crença de que ele será um caminho capaz de produzir emancipação e fazer dos sintomas um campo de produção de singularidades.

 

O que não se diz em uma polêmica

Por fim, seria o caso de lembrar que uma polêmica é sempre composta daquilo que ela diz e daquilo que ela não diz. Nesse sentido, é sintomático que em um debate sobre práticas clínicas de sofrimento psíquico nada seja dito sobre as verdadeiras aberrações epistêmicas que encontramos no quadro psiquiátrico atual. Digo “aberrações” porque vemos uma ciência que demonstrou um desenvolvimento absolutamente anômalo nos últimos 60 anos. Por exemplo, quando foi publicado em sua primeira versão, em 1952, o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) continha 128 categorias para a descrição de modalidades de sofrimento psíquico. Em 2013, em sua última versão, ele apresentava 541 categorias. Ou seja, em cerca de 60 anos, 413 novas categorias foram “descobertas”. Não há nenhum setor das ciências que tenha conhecido um desenvolvimento tão anômalo e impressionante desde o fim do degelo glacial.

Bem, seria interessante se perguntar por que isso está a ocorrer agora. Estaríamos a passar, neste exato momento, por uma verdadeira revolução científica que teria nos permitido enxergar aquilo que não conseguíamos enxergar antes? Como se, durante décadas, não tivéssemos percebido que havia entre nós pessoas sofrendo de “transtorno de acumulação” (comportamento caracterizado por excesso de aquisição de itens e incapacidade de descartá-los) e “transtorno desafiador opositivo” (comportamento excessivo de quem está geralmente raivoso, irritado ou questionando figuras de autoridade)? Ou há algum outro a ocorrer e que diz respeito à extensão das tecnologias de intervenção nos corpos e desejos através da extensão dos procedimentos de patologização?

Alguns querem nos fazer acreditar que estamos em direção à clarificação inconteste de marcadores biológicos para as estruturas do sofrimento psíquico. Mas poderíamos nos perguntar, apenas para ficar em um exemplo pedagógico, quais são então os marcadores biológicos para o transtorno de personalidade histriônica? Seus critérios diagnósticos são, entre outros, “desconforto em situações em que ele ou ela não é o centro das atenções”, “uso constante da aparência física para chamar a atenção para si”, “demonstração de autodramatização, teatralidade e expressão exagerada de emoções”.

Tais critérios devem ser avaliados como expressão de marcadores biológicos específicos ou como comportamentos de recusa, inconsciente ou não, a padrões de socialização que, por sinal, são bastante imprecisos? Pois se estamos a falar em “expressão exagerada de emoções”, havemos de perguntar onde estaria a definição de um “padrão adequado” de emoções, a não ser na subjetividade do médico ou no manual de boas maneiras de nossa avó.

Na verdade, isso demonstra a profunda insegurança epistêmica que atravessa aquilo que a gritaria sobre “pseudociências” faz questão de esquecer de discutir. Seria o caso de refletir com vagar sobre as razões que levaram nossas sociedades a modificar de forma tão dramática sua maneira de intervir através da distinção entre saúde e doença, porque ela estendeu tanto suas patologias e quais consequências podemos esperar disto.

Seria o caso, ainda, de lembrar dos problemas profundos que a guinada farmacológica da psiquiatria contemporânea produziu. Por exemplo, estudos desenvolvidos por Michael Hengartner e Martin Plöderl publicados na revista Psychotherapy and Psychosomatics defendem que adultos começando tratamento com antidepressivos para tratar a depressão têm 2,5 chances a mais de cometer suicídio do que aqueles que se servem de placebos. Sim, você leu corretamente, é isso mesmo. Se os resultados de estudos dessa natureza forem reiterados, bem, temos um problema sério a resolver. Uma boa discussão epistemológica não seria indiferente a tais questões e dinâmicas. Mas, mais uma vez, ela nos falta.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.

in: https://revistacult.uol.com.br/home/polemicas-lugar-algum/

 

segunda-feira, agosto 21, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE



O 19º Módulo d'(o) Curso (da) Formação abordará o tema, 
"A escuta na Psicose".


Data: 01 e 02 de Setembro de 2023

Online: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis, SC


Ementa: Conforme Calligaris (1989, p. 9), a clínica psicanalítica difere da psiquiátrica por não ser pautar, como esta última, na constatação da presença ou ausência dos fenômenos elementares da crise psicótica: alucinações, delírios dissociativos, persecutórios … A clínica psicanalítica é uma clínica estrutural, o que significa dizer: ela se orienta pelas estruturas que se deixam reconhecer a partir do lugar que o discurso do paciente reserva ao analista. De toda sorte, é em função dessa forma de compreender a clínica - como uma estrutura discursiva em que o analista é convidado a assumir um lugar - que a psicanálise pode falar, por exemplo, de psicoses mesmo na ausência dos fenômenos catalogados como manifestações psicóticas. Isso porque, conforme Calligaris, a psicanálise reconhece haver uma estrutura psicótica, uma forma de ligação entre o analista e o analisando, a qual não necessariamente desemboca numa crise psicótica e, por conseguinte, nas manifestações comportamentais exaustivamente descritas pela psiquiatria. Há, para a psicanálise, uma psicose fora da crise. Há uma estrutura psicótica. Mas o que devemos entender por “estrutura psicótica”?


Bibliografia:

LACAN, Jacques. 1932. Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade. Trad. A. Menezes, M. A. C. Jorge & P. M. Da Silveira, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

_______________, 1955-6 O Seminário. Livro 3: As Psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, Trad. M. D. Magno. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

QUINET, Antonio, Psicose e Laço Social, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006

terça-feira, julho 25, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE


 

O 18º Módulo d'(o) Curso (da) Formação abordará o tema,

"Singularidades da Escuta do Adolescente".


Data: 11 e 12 de agosto de 2023

Profa. Ms. Adriana Cândido da Silva

On-line: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC


Ementa: Frequentemente, o adolescente chega ao consultório a partir da demanda de um adulto: os pais, os avós, ou os professores. São estes que trazem uma queixa, uma configuração sintomática que os angústia. Para que possa ocorrer uma análise é preciso que o adolescente consiga formular uma questão própria que pode ou não coincidir com a queixa dos pais. Por conseguinte, o analista escuta o adolescente, pois é ele o sujeito em análise, mas nem por isso deixa de estar atento à fala dos pais. Escutá-los faz parte do manejo da transferência, na sustentação do trabalho analítico. A partir disso, este módulo iniciará com uma compreensão acerca da adolescência na visão freudiana para, então, adentrar em uma discussão sobre o contexto de oferta generalizada de gozo em que o jovem está inserido atualmente e como isto afeta o manejo na clínica psicanalítica com adolescentes.


Bibliografia:

BAUMAN, Z., Modernidade Líquida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001

BRIMAN, J., Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

CALLIGARES, C. A Adolescência, São Paulo: Publifolha, 2000.

FREUD, S., Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. In: ____. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, v. VII, 1905 [1996], p. 117-297

_________, Algumas Reflexões Sobre a Psicologia Escolar. In: ____. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, v. XIII, 1914 [1996], p. 281-288

_________, A Vida Sexual dos Seres Humanos. . In: ____. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, v. XVI, 1916 [1996], p. 309-321

NASIO,J.D.  Como agir com um adolescente difícil? Um para pais e profissionais, Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2005.

quarta-feira, julho 12, 2023

MILAN KUNDERA - 1929-2023




O escritor tcheco Milan Kundera, uma das grandes vozes da literatura mundial, morreu aos 94 anos em Paris, anunciou sua editora Gallimard em Paris e a porta-voz da biblioteca que leva seu nome em sua cidade natal, Brno.

Deixa como herança um valioso tesouro literário. Seus textos teóricos e narrativas ficcionais fazem parte do patrimônio simbólico do Ocidente.  

Para todos que amam seus textos, é um dia de luto. 

 

terça-feira, julho 11, 2023

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE


 


O 17º Módulo d'(o) Curso (da) Formação abordará o tema "Os quatro discursos"

 

Data: 14 E 15 DE JULHO 2023

On-line: Plataforma Zoom

Presencial: Usina Dizer - Florianópolis-SC


Ementa: 

No Seminário XVII - O avesso da psicanálise, ministrado entre em 1969/ 1970, Lacan propõe uma formalização do que passou a chamar de “campo do gozo”, entendendo-se por tal uma pragmática social organizada na forma de “discursos”. Enquanto modo de gozo, cada discurso é um laço social em que podemos verificar uma forma de dominação, a dominação que um agente tenta impor a outro. Razão pela qual, em cada discurso deveríamos poder reconhecer dois polos distintos: o polo dominante (que é aquele em que, a partir da impossibilidade de se nivelar à verdade sobre si, o  agente ordena ao outro uma produção) e o dominado (em que o outro opera a produção ordenada pelo agente). 

Lacan distingue entre quatro tipos fundamentais de discurso: 

a) o discurso do mestre, em que o agente tenta governar o outro, fazendo deste um escravo; 

b) o discurso histérico, em que o agente faz desejar o outro, fazendo deste um mestre; 

c) o discurso universitário, em que o agente tenta educar o outro, fazendo dele um objeto; 

d) e o discurso do analista, que é o único em que o agente toma o outro como sujeito, ordenando a este que possa significar para si mesmo o gozo que, enquanto sujeito, possa produzir.

Bibliografia:

LACAN, Jacques, 1966. Éscrits. Paris: Seuil. Trad. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966.

_______________, 1969/70. O Seminário. Livro 17, O avesso da psicanálise. Texto estabelecido por Ari Roitman. Rio de Janeiro, Zahar, 1992.

quarta-feira, junho 28, 2023

ANGÚSTIA

 

ANGÚSTIA E A ORIENTAÇÃO DO SUJEITO

Isidoro Veg


Refletir sobre a angústia é retomar uma inquietude que podemos situar no pensamento que nos antecede, em reflexões importantes como a de Kierkegaard (1972), em O conceito da angústia, que propõe a angústia como um efeito no ser da distância inexorável entre o divino, infinito, e nossa finitude. Gosto de recordar especialmente uma frase: “A angústia surge quando a liberdade se apresenta como possível, mas nada a assegura” (Kierkegaard, 1972, p. 43). Ela vai servir para o que vamos desenvolver seguindo outro pensamento, o de Lacan. Essa definição, que vem de outro campo, a filosofia, está muito próxima daquela que em algum momento nós diremos desde a psicanálise. 

Uma jornalista perguntava-me qual seria a relação entre o tema da angústia com o mundo em que vivemos, a sociedade atual. Recordando Heidegger (2007), nessa oposição que faz entre o ôntico e o ontológico, entre o mundo dos entes e o encontro com o ser como acontecer – por isso é O ser e o tempo –, a angústia emerge quando lhe damos lugar, ou seja, quando conseguimos desprender-nos, mesmo que por um tempo, de nossa captura no mundo dos objetos. 

Respondi-lhe que bastava olhar ao redor na rua e constatarmos a quantidade de pessoas que caminhavam com o celular ligado. Não faz muito, vinte anos atrás, quando alguém caminhava, pelo menos durante esse ínterim, poderia ter a oportunidade de encontrar-se com suas próprias perguntas. Agora, até esse intervalo está obturado com a voz do Outro, que essa invenção moderna, o celular, representa. É difícil chegar à nossa casa, aguardam-nos as chamadas que recebemos no telefone, os e-mails do celular e da internet, o aparelho de som, o DVD, a tela da televisão. É difícil escutar essa voz que chega desde nosso ser, desde nosso corpo, que se chama angústia. Freud trabalhou durante toda sua vida em relação a esse afeto. Conhecemos a grande divisão em sua elaboração da angústia: na primeira teoria, a angústia surge frente ao acúmulo da energia sexual, a libido, e provoca a repressão (Freud, [1895] 1980); na segunda, diz exatamente o oposto: é a repressão que provoca, como efeito, a angústia (Freud, [1926] 1980). 

Não me estenderei nisso porque pretendo começar minha exposição com um enigma. O enigma é uma frase de Lacan, dos últimos anos de seu ensino, do Seminário R.S.I. (Lacan, [1974-75]). É exatamente a frase com a qual termina esse Seminário, na lição de 13 de maio de 1975: 

É entre estes três termos, nomeação do Imaginário como inibição, nomeação do Real como o que se encontra que acontece em realidade, ou seja, angústia, ou nomeação do Simbólico, quero dizer, implicada flor do próprio Simbólico, a saber, como acontece em realidade sob a forma do sintoma, é entre estes três termos que intentarei no próximo ano, que me interrogarei no próximo ano sobre o que convém dar, como substância, ao Nome do Pai (Lacan, [1974-75], inédito)

De início, proponho esta frase como enigma, e vou centrá-la especificamente no que concerne a esta ocasião. Que sentido teria para Lacan “a angústia como nomeação do Real” (Ibid.)? E por que essas reflexões vão levá-lo à substância do Nome do Pai? No Seminário seguinte, Lacan ([1975-76]) retoma questões que já́ havia trabalhado quando o expulsaram da Internacional Psicanalítica. Nessa oportunidade, deu apenas uma aula, que intitulou Os nomes do pai (Lacan, [1963] 2005). 


Lacan trabalhou três vezes seriamente a questão das psicoses. Primeiro com o caso Aimée (Lacan, [1932] 1980); depois, quando refletiu sobre Schreber (Lacan, [1955-56] 1981), o caso freudiano; por último, quando trabalhou no Seminário Le sinthome (Lacan, [1975-76])a vida e a obra de Joyce. Em cada uma dessas três oportunidades, Lacan reformulou a estrutura; não apenas pensou a psicose, mas também a neurose. Quando trabalhou o caso Schreber, introduziu a metáfora paterna. Sabemos que, em nossa perspectiva como psicanalistas, para que uma criança nasça, no início, está o desejo do Outro, desejo da mãe, necessário, instituinte. Seguindo Freud ([1909] 1980) na sua perspectiva mais clássica, esse filho constitui para a mãe o substituto de algo do qual ela carece, e aquilo de que ela carece é o falo, e ainda mais, o falo que seu pai não lhe deu. Na terminologia psicanalítica isso é conhecido como narcisismo-mãe fálica, tempo primeiro. A metáfora paterna, como foi proposta por Lacan ([1957-58] 1998), vem formalizar o que Freud ([1913-14] 1980) já havia exposto como proibição do incesto, em que o Nome do Pai permite então que seja introduzida a dupla proibição, para a mãe e para a criança, com o benefício de que esse vivente humano, a criança, obtenha a possibilidade de constituir-se como sujeito. Isso é o que sabíamos da metáfora paterna. 

Mas agora no Seminário R.S.I., Lacan ([1974-75]) promete desenvolver algo distinto em relação à substância do Nome do Pai. E acrescenta que já́ não se trata apenas do Nome do Pai, mas do Pai do nome; e, então, fala da função de nomeação. Lembremo-nos, temos um enigma: a angústia é a nomeação do Real. De que se trata? Que é, pois, nomeação? 

Nomeação, segundo Lacan ([1974-75]), é o que permite, ao introduzir um nome, fazer furo no Real. Pode haver nomeação do Imaginário, nomeação do Simbólico, nomeação do Real. A nomeação permite fazer furo no Real, em qualquer dos três casos. Que quer dizer fazer furo no Real? 

Avancemos. Digamos que fazer furo no Real é fazer furo no gozo. Se eu digo “tu és meu filho”, prescrevo e restrinjo gozo. Prescrevo, se eu digo “tu és meu filho, tu me herdarás”. Mas “se tu és meu filho, te é proibido deitar com minha mulher”. Nomeação faz furo no gozo, furo no Real do gozo. No Imaginário, faz furo, por exemplo, no gozo do sentido. No Simbólico pode fazer furo, por exemplo, no gozo da lei. Freud ([1923-25] 1980) já dizia que quando a lei não tem matizes é a crueldade da lei, é a lei arbitrária do supereu, é o supereu sádico e cruel. O furo no gozo é o que nós encontramos em nossa clínica, nesse gozo que parasita o sintoma. 

Encontramo-nos, então, com outra surpreendente frase de Lacan. Estamos acostumados – pelo menos para os que conhecem os últimos Seminários de Lacan – a pensar que o analista deve suspender o sentido. Na conferência A terceira, Lacan ([1974]1980) foi claro: o sentido é próprio das religiões, dar sentido a um sintoma é fazer com que persista, com que dure. 

Entretanto, curiosamente, vejamos no Seminário Le sinthome, na lição de 13 de janeiro de 1976: 

“É necessário que nós façamos em alguma parte o nó, o nó do imaginário e do saber inconsciente. Que nós façamos em alguma parte uma emenda . Tudo isso para obter um sentido. Isso que é o objeto da resposta do analista ao que é exposto pelo analisante ao longo de seu sintoma” (Lacan, [1975-76], inédito). 

Surpresa! Lacan, que questionava o sentido, agora diz que nossa tarefa é devolver o sentido ao que é exposto pelo analisante. 

Quando nós fazemos esta emenda, nós fazemos ao mesmo tempo outra, precisamente entre o sintoma e o Real. Ou seja, que por algum lado lhe ensinamos a emendar, a fazer emenda, épissure, entre seu sintoma e o Real parasita do gozo, o que é característico de nossa operação (Ibid., inédito). 

Trago estes dois nós:


O que são esses dois nós? O primeiro é como Lacan ([1974-75]) afirma ser nossa estrutura: estamos compostos por três registros, que são representa- dos com anéis postos de tal modo que nenhum penetra o outro. Há o Real, cobrindo parcialmente o imaginário, e o terceiro, o do Simbólico, com uma fórmula: por cima do de cima, por baixo do de baixo. Cumpre com duas cláusulas, uma prescritiva e uma restritiva. A restritiva diz: nenhum anel penetra o outro; no entanto, estão amarrados. São três anéis que fazem uma só́ cadeia. Para res- saltar que fazem uma só́ cadeia, Lacan nem sequer os chama de cadeia, chama-os de nós. A cláusula prescritiva é que, se corto qualquer um dos três, se desfaz o nó. É uma maneira de dizer que os trêsregistros são imprescindíveis para que nossa estrutura não se desfaça.

As três ocasiões em que Lacan diagnosticou psicose – em Aimée (Lacan, [1932] 1980), em Schreber (Lacan, [1955-56] 1981) e em Joyce (Lacan, [1975- 76]) –, não disse psicose, mas Verwerfung de fato do Nome do Pai; ele o fez porque havia um erro no nó que fazia com que o imaginário se perdesse. Não vou me deter nisso. A perda do imaginário foi muito bem descrita pelos psiquiatras, são os fenômenos de despersonalização, desrealização. 

O segundo nó foi proposto por Lacan ([1974-75]) para quando se produz o sintoma, a inibição ou a angústia. Com essa escritura, explica o sintoma quando o Simbólico faz imisção no Real. Algo do Simbólico se mete no Real e faz com que algo não ande bem no Real. Um exemplo: a terra brasileira permite produzir cana-de-açúcar em quantidade duas ou três vezes maior que a produzida. Mas se chegasse a produzir além de certa quantidade, pela ordem simbólica, que é a formação econômico-social capitalista em que vivemos, poderia ocorrer a necessidade de queimar parte da colheita, mesmo que no mundo haja fome. Marx dizia sintoma, e Lacan diz que Freud tomou esse mesmo conceito de sintoma. É a imisção do Simbólico no Real que faz com que algo não ande bem no Real. E isso que não anda bem tem a ver com um gozo que está representado por esta letra a. Uma letra a, que, para Lacan ([1962-63] 2004), tem dois valores: objeto de gozo pulsional, plus-de-jouir, ou, quando falta, objeto causa de desejo.

A frase anteriormente citada do Seminário Le sinthome (Lacan, [1975-76) refere que, se fazemos emenda nesse lugar, podemos também fazer emenda nesse outro, e isso permite que o sujeito perceba o gozo parasitário que o retém. O que isso quer dizer? Que não se trata apenas do Nome do Pai, mas dos nomes do pai. E quais são os nomes do pai que Lacan nos propõe? Os nomes do pai são o Real, o imaginário e o Simbólico. Como pode ser que esses sejam os nomes do pai? Eles o são pelo que Lacan ([1974-75]) chama de effet d’arrêt, efeito de detenção. Exemplo: o que pode deter a crueldade de um supereu sádico? A ternura, o amor. O que pode deter o sentido imaginário, esse que convida à homeostase, a que nada mude? Uma irrupção do Real, a angústia. Cada registro pode, se está bem orientado – e isso já́ tem a ver com o título de meu trabalho, A angústia e a orientação do sujeito –, fazer-se limite e, portanto, nome do pai aos outros registros. 

Proporei agora um efeito de retroação, um convite. No ano de 1955, Lacan falou em Viena, em uma homenagem a Freud ocasião em que propôs um retorno a Freud: o sentido do retorno a Freud que propunha é o retorno ao sentido da obra de Freud. Já́ se passou mais de um quarto de século desde a morte de Lacan, e parece-me que nos encontramos, em certa medida, com um fenômeno similar aos tempos do pós-freudismo. Há psicanalistas que se dizem devedores do ensino de Lacan e só́ reconhecem sua primeira etapa; outros, por sua vez, tomam algum Seminário dentre os últimos e só́ reconhecem essa última etapa; outros tomam uma frase isolada; outros dizem diretamente “Lacan já́ acabou, chega de nós, de metáfora paterna”. Proponho, como um convite, um retorno a Lacan, do mesmo modo que Lacan o propôs com a obra de Freud. Não para escolher entre o primeiro Lacan ou o último Lacan, mas para fazer o que, como método, podemos chamar de “as dobras do texto”. E quero mostrá-lo em ato. 

O recém exposto desdobra elaborações pertinentes aos últimos Seminários. Retomemos o Seminário A angústia, proferido num tempo muito anterior e do qual só́ vou sublinhar algumas partes: “Dizem que eu nunca falei dos afetos. Senhores, dediquei um ano a um afeto. A angústia é um afeto” (Lacan, [1962- 63]) 2005, p. 23). Duas importantes sentenças lacanianas nos guiam: “A angústia surge ante o desejo do Outro” (Ibid., p.14) e “A angústia não é sem objeto” (Ibid., p. 101). Como juntar essas duas sentenças? O que significam? Que dobra de texto se pode fazer entre elas e o que recém dissemos sobre os nomes do pai? Lembremo-nos, com Freud ([1926] 1980) e com Lacan ([1962- 63] 2005), de que estamos falando da angústia como sinal. Sinal de quê? De algo que aparece no Eu, mas se dirige ao sujeito. E se dirige ao sujeito para dizer-lhe: “Estás enredado como objeto para o desejo do Outro”. É um bom sinal, se é escutado. O pior que podemos fazer é suprimir a angústia. Perdemos o semáforo. Que diz a angústia? Quando a angústia emerge quer dizer que, pela primeira vez – como já dizia a seu modo Heidegger, ou Kierkegaard, acerca da liberdade –, o sujeito vislumbra o umbral por onde poderia passar. Lacan ([1973] 1975) costumava dizer que passava o tempo passando o passe. Passar de onde? Desse lugar de objeto para o desejo do Outro – às vezes para o gozo do Outro – a outro lugar, no qual o sujeito pode avançar em seu desejo. Implica, então, uma dimensão de tempo. 

Trata-se, então, da orientação do sujeito. Dizemos que o nó é R.S.I.; em francês, é homófono de hérésie, que quer dizer heresia. Se o sintoma é a imisção do Simbólico no Real, a inibição surge quando o imaginário faz imisção no Simbólico, e a angústia quando faz cair o véu imaginário e apresenta ao sujeito o objeto em que está retido, podemos entender que a angústia é uma nomeação, no sentido de que anuncia a necessidade de um gozo a ser perdido. E perder esse gozo é orientar o nó, dar a ele sentido vetorial. É assim que leio a frase do Seminário Le sinthome (Lacan, [1975-76]), já citada: nossa tarefa é dar- lhe sentido. Um sentido que implica que o Real faca limite ao Simbólico; que o Simbólico, o inconsciente, faça limite ao Imaginário; que o Imaginário volte logo a cobrir esse Real que irrompe. 

Orientação vetorial implica consequências na orientação da cura. Não poderíamos concluir que o analista tem direito a intervir no imaginário, com intervenções sugestivas, no Simbólico, com a clássica interpretação, e no Real, com intervenções no Real, na medida em que cada intervenção responda à lógica adequada? E qual é a lógica adequada? É a lógica do ato. A tarefa, para Lacan ([1967-68]), é do analisante; o ato, do analista. 

O tempo da angústia é o tempo prévio ao corte. O corte se anuncia, mas nada assegura que ele se produza – estou parafraseando a frase de Kierkegaard (1972): a liberdade se anuncia como possível, mas nada assegura que seja lograda. Anuncia-se o corte com o gozo parasitário, mas nada assegura que ele seja logrado. E encontramos que efetivamente há uma diferença entre o modo de pensar a castração em Lacan e a maneira de pensá-la em Freud. Em certos lugares, a castração em Freud ([1909] 1980) é uma ameaça da qual é possível salvar-se, renunciando ao gozo incestuoso. Com Lacan ([1962-63] 2004), o pior que poderia acontecer é que a castração não se produza, porque não é a castração imaginária do órgão, mas a castração do Outro: quando posso me subtrair, como objeto, do lugar em que completava o Outro, deixar o Outro com seu buraco. 

Trata-se, então, para concluir, de uma heresia que a psicanálise nos propõe, que não consiste no corte do nó. O nó neurótico, diz Lacan, é irrompível. É o corte com o gozo parasitário que faz com que seja tão difícil que um sintoma se apague. O corte produz, (vejam que paradoxo!), o bom enlace dos registros, não o corte dos registros, mas, sim, o bom enlace do Real, do Simbólico e do Imaginário. Poderíamos então dizer que se o ato se produz, o analisante passa da culpa com o Outro – culpa inexorável quando persiste em querer satisfazer o que o Outro lhe demanda, porque nunca o logrará – à culpa do Real, do Real do gozo. Eu diria que passa a ser responsável pelo Real do gozo, pelo destino da pulsão que o habita, que não é igual quando parasita o sintoma e quando se enlaça ao desejo do sujeito. 

Para dizê-lo de forma resumida, como o diz habitualmente muito melhor o poeta argentino, falecido há poucos anos, chamado Roberto Juarroz. Escreveu uma só́ obra ao longo de sua vida, que se chama Poesia vertical (1978). 

Um de seus poemas diz assim: 

Sobre que lado se apoia mais a ternura do homem? 

Sobre seu peito, sempre relativamente aberto?
Sobre suas costas, sempre relativamente abandonadas? 

Sobre seu perfil, sempre relativamente alheio? 

Sobre que lado se abre o voo que levamos,
O fruto que levamos,
O zero que levamos?
Sobre que lado é o homem possível para o homem?

(Juarroz, 1978, p. 109). 

Se encontramos alguma resposta, podemos então ajudar nossos analisantes a fazer de um destino, um estilo.

Apêndice:

Pergunta: Que é o bom enlace entre Real, Simbólico e Imaginário? 

Jaime Betts: Se pensarmos naquilo que o cotidiano promove, a dissolução do enlace entre o Real e o Simbólico, como pensas os efeitos subjetivos disso? 

Isidoro Vegh: São duas perguntas que podemos enlaçar: o bom enlace entre Real, Simbólico e Imaginário e o efeito da dissolução desse bom enlace. Lacan precisou algo que para os matemáticos não tem relevância: estender um dos três anéis de um nó borromeano, aumentá-lo, para que cubra mais superfície de outro dos anéis, não é relevante para a topologia. Mas Lacan não era topólogo, era psicanalista; necessitava pensar aquilo que sua clínica lhe apresentava: sintomas, inibições, angústias, psicoses, neuroses, perversões. Distintas manifestações, dentre as quais algumas conseguiu-se escrever com o nó. Outras podem ser melhor lidas com o grafo que Lacan trabalhou nos primeiros Seminários, As formações do inconsciente ([1957-58]1998), O desejo e sua interpretaçã([1958-59]). Lembro-o para os que conhecem os grafos: se olhar- mos os circuitos do grafo, podemos ver que há um circuito no qual, saindo do lugar da pulsão, passa-se pelo fantasma e vai-se direto ao sintoma. Mas pode haver outro circuito, que passa pelo lugar da castração, e será́ diferente. Não se trata do mesmo quando a pulsão se enlaça ao desejo e quando a pulsão está desenlaçada do desejo. Por exemplo: chego à minha casa cansado, depois de trabalhar, e vou à cozinha. Como sou neurótico e tenho ainda a barreira do pudor, averiguo se não tem ninguém por perto, e então me lanço sobre a geladeira e pego com a mão um pedaço de queijo, que sei que não devo fazer, gosto e pego outro. É um pequeno exemplo do que chamamos de premência pulsional. É diferente, por exemplo, se me convidam a um jantar de amigos. Tenho muita fome, quero comer já. Mas se enlaço isso ao desejo, que é estar com meus amigos no laço social, compartilhando esse momento, não posso me atirar sobre a mesa, tenho de esperar. É o enlace da pulsão com o desejo. 

Quanto aos efeitos contrários, por exemplo, um efeito extremo. Lacan ([1975-76]), quando trabalha a estrutura de Joyce e propõe um nó que a representa, aponta um erro aqui: nesse lugar onde tem que passar por baixo, passa por cima.


Se aqui passa por cima, o Imaginário pode ser tirado, perde-se. Como lemos isso na clínica? Há um parágrafo no Retrato do artista quando jovem (Joyce, 1986), que relata quando seus companheiros o castigam, batem nele porque ele se nega a corrigir sua afirmação de que o melhor poeta inglês é Lord Byron. Era um colégio católico, com muitos preconceitos. Dão-lhe uma surra terrível e Stephen Dédalus, o protagonista, próximo ao autor, Joyce, diz, que o que mais o surpreende é que não consegue sentir ódio, que o ódio se vai como se a pele se desprendesse. É uma magnífica descrição literária dessa perda do imaginário. Aí teríamos um exemplo desse efeito. 

Outro exemplo contrário, que eu me animo a propor como boa intervenção analítica: uma paciente depressiva, tomada pela angústia – essa irrupção do Real que quebra o imaginário –, vem à sessão dizendo que tudo está mal, que não sabe como vai poder superar a morte de um familiar querido que se soma à morte de outro. Quando termina a sessão, a única coisa que encontrei para dizer-lhe foi: “Que blusa bonita que está vestindo hoje”. Alguns poderiam perguntar: “Mas o que é isso, cognitivismo, psicoterapia?”. Não, é fazer funcionar o Imaginário como nome do pai, que limita a irrupção do Real do gozo, em que ela se identificava ao nada. Trata-se de situar adequadamente a lógica. Por isso, digo a meus alunos em Buenos Aires, quanto mais se avança na teoria, na lógica, mais livre se é na pratica. Por isso, Freud ([1893-95] 1980) podia atender Katharina nas escadarias da montanha sem ter medo de que o enquadre se perdesse. A história da psicanálise mostra que, quando a lógica foi esquecida, o enquadre tornou-se rígido, porque não se sabia muito bem o que definia a especificidade da prática da psicanálise. 

Gérard Pommier: A partir do que disseste sobre a nomeação, que faz furo, me parece interessante, na tua maneira de propô-lo, acrescentar a distinção entre o ato de nomear – a nomeação é mais precisamente o próprio ato – e o nome dado pelo ato. Ao se fazer essa distinção, nota-se que o que faz furo é o próprio ato, ou seja, fazendo uma nomeação, o ato se subtrai ao Real, é ele próprio que está no exílio do Real. A segunda observação que fizeste a propósito foi tomar um exemplo do Nome do Pai, que proíbe o gozo da mãe. É importante notar que, no momento em que o sujeito é nada, no exílio do Real, o nome lhe dá um lugar, o Nome do Pai. No mesmo momento, há uma subtração de gozo e nomeação dele, mesmo como sujeito. É uma implicação muito difícil de entender, com teus desenhos, entre o Real e o Simbólico. Mas o Simbólico não são as palavras, as palavras em si mesmas podem matar; não é especialmente a lei. É respeito unicamente à questão da nomeação do sujeito em seu ato de nomear que faz Simbólico.

A segunda pergunta é a propósito dos nós borromeanos em si mesmos, ou R.S.I., da maneira de utilizar esses instrumentos. Não se trata de conceitos; são coisas qualitativas, permitem dar certa qualidade a conceitos, e a melhor prova é que escreveste conceitos: angústia, inibição, gozo, sentido. Não te parece que estamos na mesma posição de Lacan de fazer um retorno a Freud com outros instrumentos? Somos fundamentalmente freudianos, apesar do fato de que podemos utilizar instrumentos dados por Lacan. Minha questão é: que quer dizer ser lacaniano? 

Isidoro Vegh: No nó que Lacan ([1974] 1980) apresentou em A Terceira, ele pós “sentido”, “vida”, “morte” e “corpo”.


Não figura o matema “sujeito” neste nó. Não é chamativo? Pois Lacan ([1965] 1966) muitas vezes disse que o objeto da psicanálise é o sujeito. Do que expõe Gerard, entendo que, efetivamente, para que a nomeação seja propiciatória para o analisante, ela tem de ser formulada de tal modo que lhe permita ex-sistir, no duplo sentido da existência. Lacan propõe ex-sistir desse modo: ex (fora), sistere (do lugar). 

A palavra sujeito é proposta por Lacan em vários tempos de modo diferente. O primeiro tempo é o do sujeito do significante (Lacan, [1964] 1979). Depois falará do sujeito do fantasma (Lacan, [1966-67] inédito); depois, do sujeito acéfalo da pulsão (Lacan, [1964] 1979). Também falará no fim de análise de um sujeito advertido (Lacan, [1967-68] inédito). Eu proponho – é minha maneira de responder a Gérard – que há um sujeito que ex-siste ao nó. Este nó não tem escrito o matema “sujeito”, porque este nó escreve o sujeito, quando está bem amarrado. 

Assim também seria em nossa clínica. Quando a nomeação está mal enlaçada, nossos analisantes vivem a iminência do corte como uma queda no abismo. Ajudá-los a fazer o bom enlace é ajudá-los a observar que passar por esse corte é encontrar-se com um vazio, pois vazio não é igual a nada. Um vazio é algo que me incita, que me estimula a criar, a inventar. 

Quanto à segunda pergunta de Gérard – a respeito de que os nós borromeanos não são conceitos –, realmente é o que eu proponho com as dobras do texto. Lacan disse: “eu sou freudiano; vocês, se quiserem, sejam lacanianos” (Lacan, [1980] 1982, p. 5). Que é ser lacaniano? A meu ver, ser lacaniano é fazer com a obra de Lacan o que ele nos mostrou que fez com a obra de Freud: conversou com Freud durante toda sua vida. Algumas vezes propôs coisas distintas; em outras, deu-se conta de que havia se equivocado e voltou a Freud – como aconteceu com as três identificações que desenvolveu no Seminário L’insu (Lacan, [1976-77]). É muito variada a relação. Na epígrafe do texto Televisão, há uma frase atribuída a Lacan: “Aquele que me interroga também sabe me ler” (Lacan, [1973] 2003, p. 508). É preciso interrogá-lo. Qual é, então, a vantagem do nó? É minha leitura, algo a ser discutido: com o nó, Lacan consegue introduzir na estrutura algo que é do Real, a vida. Ele diz que é o Real do Real. Creio que aí Lacan já não está discutindo com psicanalistas, mas com neonietzschianos, com Foucault, com Deleuze, enfim, é outra história. E faz o que se chama uma mostração. Mas mostração não significa ficar definitivamente posta de lado à demonstração. Apelar à topologia, que em algum lugar Lacan ([1974-75]) diz que é do Real, em outro, que é imaginária (Lacan, [1975-76]), dá distintas variantes; para mim, não quer dizer renunciar ao conceito. Creio que é impossível ler Lacan sem transitar pela obra de Freud, nisso coincido totalmente com o que diz Gérard.

Edson de Sousa: Queria retomar o tema das três nomeações, em relação ao Simbólico, Imaginário e Real. Minha pergunta é uma reverberação do que Gérard Pommier acaba de colocar, mas vou tentar fazê-lo por outra via. Todo conceito busca uma forma; qual seria a forma do Real? Gosto muito da proposição de George Bataille (1969), o “conceito” de informe. Seria um “conceito” – ele mesmo o diz com todas as letras – que serviria para desclassificar. À semelhança de Freud, quando no final dos Três Ensaios de teoria sexual (Freud, [1905]1980), confessa não ter conseguido capturar em teoria a dimensão sexual. O último parágrafo é uma confissão de fracasso, como se nesse âmbito só́ se pudesse falar na dimensão ensaística – daí o título Três ensaios de teoria. Partindo dessa proposição de Bataille, esse objeto injeta um “fora”, e Lacan ([1975-76]), em vários momentos, insiste no Real como um “fora da linguagem”. Qual seria a particularidade da nomeação do Real? Pensando, por exemplo, em algumas alusões feitas não apenas por Lacan ([1975-76]), mas também por outros autores, em relação ao que não se pode nomear – o nome de Deus, por exemplo, esse inominável – mas se pode escrever. E essa mesma escritura falha. Eu queria discutir um pouco sobre essa problemática que me parece crucial, pela inovação que a teoria e o discurso lacanianos trazem com a categoria do Real e o objeto a, que Lacan ([1962-63] 2004) diz ser sua única invenção.

Isidoro Vegh: Muito obrigado pela pergunta, poderia incitar-nos a fazer um Congresso. Para responder algo: não surpreende que Lacan nunca tenha dito “jovem analista, escute o significante”? Lacan dizia: “Leiam a letra”. Temos uma pergunta. Se a primeira definição lacaniana de sujeito é “o que um significante representa para outro significante” (Lacan, [1964] 1979, p. 135), poderia dizer-se “vou estar atento ao significante”. No entanto, ele disse “leiam a letra”. Isso quer dizer que deve haver alguma diferença entre letra e significante. Agora direi por que mencionei isso. Sabemos que a definição lacaniana mais forte do Real é que o Real é o impossível. Às vezes, isso pode levar-nos à confusão, a crer que o impossível é o inexistente. Não, a inexistência é uma das formas do Real. Mas o Real que mais nos interessa como analistas, Lacan ([1975-76) o diz textualmente, é o Real do gozo. Efetivamente, o Real é o impossível, o impossível de ser coberto totalmente pelo Simbólico ou de ser coberto totalmente pelo Imaginário. É o que ex-siste, está fora do Simbólico e fora do Imaginário. É informe, como diz Bataille (1969), porque não tem a forma, a gestalt do Imaginário, e está fora de toda lei, porque não responde à lei simbólica. Mas, para não fazer uma mística da psicanálise – e a psicanálise não é uma mística – Lacan nos lembra: “o Real que eu menciono é sempre um Real amarrado” (Lacan, [1974-75]). É o que permite que a letra o bordeje, letra como litoral entre o saber significante e o gozo do objeto. 

REFERÊNCIAS

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A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS

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