quinta-feira, fevereiro 11, 2010

O Objeto de arte

Romildo do Rêgo Barros


Vocês certamente conhecem a história de Apeles, o célebre pintor da antiguidade que, escondido atrás de uma cortina, escutou o comentário feito por um sapateiro a respeito das sandálias que tinha pintado. Apeles aceitou a crítica e modificou as sandálias. No dia seguinte, o mesmo sapateiro criticou a
forma da perna. O artista respondeu então com a frase que se tornou famosa:
e sutor ultra crepidam, “o sapateiro não deve ir além das sandálias”.

Essa frase, sem dúvida um pouco brutal – e que até poderia ser aplicada a mim próprio esta noite –, não quer dizer que um sapateiro não pode opinar sobre uma obra de arte, mas que quando se trata de um assunto diferente da sua atividade profissional, é preciso ter outros critérios: ou seja, um sapateiro, como sapateiro, somente pode falar sobre sandálias.

Como vocês sabem, os objetos são geralmente qualificados de acordo com sua utilidade. Eles servem para algo. Uma caneta, por exemplo, serve para escrever. A caneta é uma condição para nossa escrita: não é sua causa, que está em nós, mas um instrumento. Uma caneta não pressupõe a inspiração para o texto que escreve, nem precisa saber o que vai escrever (a menos que alguém, como Edgar Alan Poe, por exemplo, nos conte a história de uma caneta que escreve sozinha). Mas isto não impede que deixe uma marca sobre uma superfície de papel, que interpretamos como escrita. Para dizê-lo bem resumidamente, os objetos servem para alguma necessidade do corpo, do corpo de um sujeito, já que um objeto sempre supõe um sujeito: nossas roupas servem para abrigar os nossos corpos, os sapatos nos protegem da dureza do chão, canetas servem para escrever, etc. É o que pensamos..., quando não pensamos muito.
 
A utilidade é, pois, uma das condições para o encontro entre um corpo e um objeto. Muitas vezes a utilidade até determina a forma do objeto. Através do design, por exemplo, podemos tornar compatível a forma com a utilidade. O design, como sabem, não se restringe a isso, embora seja também isso, ou seja, uma maneira de juntar a forma que um objeto deve ter com sua finalidade prática.
 
Em princípio, um sapato deve ter uma forma oposta à do pé, de tal modo que possa servir de continente para o pé, que se tornará conteúdo. Um pé calçado é uma unidade, formada por um continente e o seu conteúdo. Isso pode dar impressão de que há complementaridade entre os corpos e os objetos que se acrescentam aos corpos. Efetivamente, se permanecemos no plano da utilidade, parece possível pensar em termos de complementaridade. Um conteúdo somente pode ser visto como conteúdo se encontrou o continente adequado: se temos um pé de número 40, não podemos usar um sapato de número 39. A dor que sentiremos indicará que há um gap, uma distância entre o conteúdo e o continente. A dor é o aspecto sensitivo desse gap. Como Freud costumava dizer referindo-se à angústia, a dor servirá como um sinal. Ela nos mostrará que há algo que excede o encontro entre o corpo e o objeto. Há algo a mais. Já não estamos no terreno da relação complementar, mas no plano dos suplementos. A dor é o sinal do caráter suplementar do encontro entre o orpo e o objeto: se antes havia o pé e o sapato, temos agora também a dor, que não pertence propriamente nem ao pé nem ao sapato.
 
Porém, não é apenas a dor que se situa no terreno do suplemento: também os prazeres, sobretudo certos prazeres que escapam às necessidades imediatas do corpo, e que não podemos considerar facilmente como funcionais. Podemos  pensar no prazer do sexo, que não tem um objeto preciso, e no chamado prazer estético, que se espera de nossos encontros com o belo. O que excede ao complemento excede igualmente à função, à necessidade e à utilidade.
 
Algo mais...


Tomemos como ilustração  um quadro famoso de Van Gogh, conhecido de todos e comentado por vários pensadores e teóricos, por exemplo, Heidegger em seu artigo “A origem da obra de arte”. O quadro representa o par de sapatos de uma camponesa. São sapatos usados, têm as marcas do uso, quer dizer, nos mostram que há um sujeito que, aliás, não aparece no quadro, que usou ou está talvez usando os sapatos. A cena se situa num intervalo entre dois momentos do uso dos sapatos. Há, portanto, um objeto, um sujeito, pelo
menos suposto, e uma utilidade, unindo os sapatos e a camponesa. Podemos também pensar que os tamanho do sapato e do pé da camponesa estão de acordo.

Porém, o que acontece, que transformação ocorre quando esse objeto tão banal é representado por Van Gogh em um quadro? Esta é a questão que gostaria de explorar um pouco com vocês esta noite.


Poderíamos fazer a mesma pergunta sobre o cachimbo que Magritte pintou em
1929, escrevendo abaixo: “isto não é um cachimbo”. Realmente, o artista tem azão ao dizer que não se trata de um cachimbo, já que não se pode fumar um quadro. Por mais fiel que seja a reprodução, a pintura não consegue dar à imagem a utilidade do objeto que ela está reproduzindo. Alguma coisa se modifica entre o objeto que serviu de modelo para a obra de arte e a própria obra de arte; nessa passagem algo se acrescenta ou, ao contrário, se subtrai. Finalmente, a mesma questão poderia ser colocada desde que Andy Warhol, um dos artistas americanos mais conhecidos do século XX, pintou nos anos 70
uma série representando um objeto que não poderia ser mais comum: as latas de sopa Campbell's. 
 
As latas de sopa do artista são reproduções fiéis das latas que encontramos nos supermercados, e que qualquer um compra quase sem pensar. Além disso,
como Warhol pintou objetos em série (fez o mesmo com fotos de Jacqueline Kennedy, Marilyn Monroe, etc.), sua obra reproduz também um aspecto fundamental dos objetos de consumo contemporâneos, quer dizer, o de serem
vistos sempre em série, e nunca individualmente. Uma lata de sopa Campbell's é sempre uma das milhões de latas de sopa que alimentam milhões de pessoas que não precisam ter um rosto, uma história, ou experiências singulares. Basta que tenham o comportamento repetitivo de pegar as latas nos supermercados. E, naturalmente, pagar na saída.

Warhol não apenas isolou um objeto do conjunto – puramente ideal – das coisas do mundo, como também procurou dar um caráter singular ao que há de menos singular, isto é, o coletivo dos objetos de consumo, fabricados, expostos e consumidos em série, dia após dia, pessoa após outra, lata após outra lata.


Como ocorre com freqüência na arte, Warhol nos coloca diante de um paradoxo: a reprodução, por mais perfeita que seja – a imitação, a mímesis, como dizia Aristóteles em sua “Poética” – inclui sempre algo que ultrapassa a forma, a necessidade e a função, sem que saibamos muito bem o que é. Na história da arte, os criadores buscaram sempre transmitir esse algo, às vezes se aproximando mais da forma, como fez Andy Warhol, às vezes tomando distância, como fizeram os impressionistas, ou, de maneira ainda mais radical, os artistas que, em seus trabalhos, romperam com a forma das coisas do mundo.

Isso que não sabemos muito bem o que é, parece ser o que caracteriza o objeto da arte, no sentido de que a arte expõe, dá a ver o que não pode ser contido na forma ou dito por inteiro.


Como escreveu Walter Benjamin em 1935, “mesmo na reprodução mais  perfeita, um elemento está ausente: o hic et nunc da obra de arte, sua existência única [...]. É nessa existência única, e somente nela que se desdobra a história da arte”1. Benjamin chamou de “aura”, esse elemento único da obra, “a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que esteja”. Benjamin pensava que a aura desapareceria com a possibilidade de reprodução técnica das obras de arte, sobretudo no cinema e na fotografia, contudo, não é muito certo que isso esteja ocorrendo. Há algo que pôde vir no
lugar da aura tradicional e sustentar a unicidade das obras de arte de nossos tempos.
 
Psicanálise e arte

Penso que a psicanálise e a arte têm em comum, cada uma à sua maneira, a intenção de dar um destino a esse algo mais, que, embora não encontre lugar na forma nem nas palavras, é certamente o essencial, quer dizer, é a causa de
todo o resto que conseguimos dizer em palavras ou expressar formalmente. Como podemos situar esse algo a mais, sem cair no domínio da religião, que trata justamente dos objetos sublimes, situados, por suposição, além do humano? Como situar como humano, essencialmente humano, o que ultrapassa as palavras?


Benjamin dizia também que aquilo que chamamos de objeto de arte, antes de
expressar o belo, começou historicamente como instrumento de culto; no início mágico, e logo após religioso. Somente com o esvaziamento da sua função ritual, os objetos de arte se tornaram objetos de exposição, coisas para serem vistas. Podemos pensar que, ao se tornar objeto de exposição, o objeto de arte perdeu – pelo menos em parte – sua eficácia mágica e passou a representar algo, no lugar de ser esse algo. Parece-me que aqui a psicanálise se encontra  com a arte, no ponto em que a eficácia dos objetos já não é imediata, mas exige uma mediação simbólica.

Muitos trabalhos e posições artísticas, particularmente no campo das artes plásticas, parecem conduzir a arte para fora do campo estrito do Belo. Parece-me importante notar que essa tendência a sair do Belo impele a arte para a Ética, na medida que o ato ou o gesto do artista se inclui na própria definição
de sua arte, passando a fazer parte da obra. Podemos tentar enumerar algumas dessas tendências:


• No lugar da busca do Belo,  do “esplendor da forma”, como dizia Santo Tomás de Aquino, muitos trabalhos resgatam a dimensão do resto. Não se trata de uma elevação do resto para cima – este “para cima” tem forçosamente uma inspiração religiosa –, e sim da revelação de uma dignidade própria dos restos como restos. Penso em alguém como Franz Krajcberg, que faz sua arte com restos da natureza amazônica do Brasil, como raízes mortas e árvores caídas. Penso igualmente em Andy Warhol, que anulou com suas latas de sopa a distância sagrada que separava os objetos reconhecidos como artísticos dos objetos comuns oferecidos pela indústria de massa. Isso obriga os psicanalistas a precisarem melhor o que entendem por sublimação, que não é uma domesticação da arte, cujo objetivo seria a aceitação pela opinião média da sociedade, mas, como nos ensinou Lacan, a extração de um certo núcleo de ser que parece inacessível fora da arte.


• Surgiu igualmente um novo estatuto para o corpo que,  em alguns casos, se oferece como objeto ou como suporte artístico, apagando assim a separação entre o corpo e os objetos que nos guiou durante séculos. Não me refiro tanto às mutilações do corpo humano como base para a criação, nem à exposição de seus dejetos – isso mereceria uma discussão a parte –, mas simplesmente, por exemplo, às obras que são propostas como continente para o corpo, e que, para serem vistas, necessitam que o espectador passe ao seu interior, de onde somente pode olhá-las. Cada corpo, então, que passa ao interior se constitui, durante sua curta permanência, em parte da obra.


• E finalmente, observa-se uma crise, ou um certo declínio,  da autoria, que se manifesta não apenas sob a forma da criação coletiva, mas também nos casos em que a obra não tem como objetivo a eternidade, como dizia Benjamim sobre as estátuas gregas. Ou seja, as obras efêmeras, cuja autoria desaparecerá juntamente com os trabalhos.
 
Para um psicanalista, a arte é um campo privilegiado do encontro sujeito/objeto, no sentido de uma convergência entre a obra e seu criador. Não exatamente por força de uma identificação imaginária do sujeito com os seus objetos, senão porque o sujeito pode encontrar, no objeto, a exterioridade que é desde sempre a sua.


Neste ponto preciso, há um encontro entre as conseqüências da prática da psicanálise e os efeitos da criação.


Romildo do Rêgo Barros

Tradução do original em espanhol: Maria Angela Maia
in: Latusa digital - ano 4 - no. 28 -maio de 2008

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Saber e Experiência

Por que visitamos museus?
Procuramos experiência estética
ou queremos nos cultivar?

Cotardo Calligaris

NA SUA próxima visita a um museu de arte, esqueça-se das obras e considere apenas os visitantes.

Um bom número, talvez a maioria, não para diante de uma tela (por exemplo) sem antes ter lido a pequena placa com nome do artista, título e data. Bom, eles querem se cultivar, saber quem pintou, quando e o quê. Mas, dessa forma, muitos acabam, sobretudo, limitando sua experiência: ao constatar que o autor lhes é desconhecido, eles mal olham para a tela e passam à obra seguinte, enquanto, se o pintor for uma celebridade, contemplam com dedicação - as más línguas dirão que eles sentem-se assim "autorizados" a parar e contemplar.
Os mais divertidos são os que adotam estratégias bizarras para dar uma espiada na placa sem que o amigo que os acompanha se dê conta e logo exclamam em voz alta, como se tivessem reconhecido a obra sem auxílio algum: "Aqui está o quadro de...".
E há os grupos de turistas, forçados a correr de uma "obra-prima" a outra, atropelando obras menores, que talvez fossem para eles (quem sabe, só para eles) decisivas.
De fato, o saber pode aprimorar nossa experiência estética; por exemplo, é bom apreciar uma tela de El Greco tendo conhecimento do fato de que ele pintou no século 16, pois talvez, sem isso, sua incrível ousadia expressionista nos comova menos.
Inversamente, se privilegiarmos demais o saber, tenderemos a nunca sair de caminhos trilhados e, pior, a forçar nossa experiência no molde do pouco que sabemos.
A primeira vez que visitei o Museu do Prado, em Madri, aos 14 anos, eu só queira ver a pequena sala onde estavam os quadros de Hieronymus Bosch.
Ao entrar, fui hipnotizado pelo azul estranho e intenso do céu numa paisagem de Joachim Patinir, um pintor flamengo da mesma época, que eu desconhecia. Não li a placa, "atribuí" a Bosch o quadro de Patinir e saí feliz de ter descoberto "meu Bosch preferido", que era tão diferente dos quadros de Bosch mais conhecidos e reproduzidos.
Se tivesse lido a placa, provavelmente eu teria me sentido na obrigação de esquecer o céu de Patinir e destinar minha atenção só aos quadros de Bosch; em obséquio ao meu saber, que era modesto e trivial, eu teria renunciado a uma experiência cuja lembrança ainda me encanta.
Recentemente, visitei a exposição "In-Finitum", no Palazzo Fortuny, em Veneza, que reúne obras e objetos de todas as épocas ao redor de um tema, "In-finitum", que, cá entre nós, é suficientemente vago para que qualquer coisa possa ser incluída na exposição.
Instalações e quadros emprestados por museus e coleções particulares são assim misturados com objetos que enfeitavam a casa de Mariano Fortuny, quando ele estava vivo. Há de tudo: de um "conceito espacial" de Lucio Fontana a um banal ovo de avestruz.
A regra (inusitada e atrevida) das exposições do Palazzo Fortuny quer que os objetos não sejam identificados por placa alguma, como se a gente estivesse visitando a casa de alguém. Para quem não aguenta o tranco, está disponível uma espécie de mapa que deveria permitir identificar os objetos expostos, mas cuidado: a duras penas.
Para alguns, a visita se torna assim uma caça ao tesouro (as crianças adoram). Outros rejeitam o mapa e testam sua própria capacidade de atribuir algumas das obras a seus respectivos autores. Outros ainda, fiéis ao espírito da exposição, percorrem os andares do palácio permitindo-se uma experiência estética e meditativa, sem se preocupar em saber direito quais são os objetos nos quais eles esbarram.
O catálogo obedece ao mesmo princípio da exposição: começa com as reproduções das obras expostas, sem nada que as identifique. Seguem os ensaios e, só em apêndice, a lista das reproduções.
Antes de deixar o palácio, li o caderno em que os visitantes são convidados a escrever suas impressões. O leque vai de "Experiência única, por uma vez pensei e senti, em vez de querer saber quem fez o quê" até a (mais frequente) "Os curadores estão bêbados? Não se entende nada no mapa. Que tal uma plaquinha de vez em quando?".
Pergunta: o que aconteceria em nós, visitantes, se os museus escondessem toda informação sobre as obras expostas?
Moral da história: o debate entre saber e experiência, por mais que seja um clássico do pensamento pedagógico, é sem solução. A falta de saber compromete e empobrece a experiência, mas, sem a liberdade da experiência imediata, o saber se torna chato, estupidamente repetitivo e, no fundo, frívolo.

A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS

  (O) Curso Livre (da) Formação chega ao 23º Módulo abordando o tema   “A clínica hoje: Os novos sintomas” e acontece nos dias 01 e 02 de m...