sábado, julho 20, 2024

SEXUALIDADE NA PSICANÁLISE E ONTOLOGIA





                   

             Sexualidade e ontologia

 

Alenka Zupancic

Tradução: Ariana Lucero

 

O lugar central da sexualidade na psicanálise foi, frequentemente, e continua a ser, uma questão controversa. Especialmente quando, com Jacques Lacan, a psicanálise entrou na cena da filosofia contemporânea e, desde então, se tornou um importante ponto de referência nessa cena, essa questão é frequentemente levantada nos debates concernentes à relação entre a filosofia e a psicanálise. Muitas noções psicanalíticas (e especialmente as lacanianas) parecem perfeitamente aceitáveis para a filosofia, mas, então, existem aquelas ‘noções sexuais’ que parecem ser bem mais problemáticas.

Sugeriu-se, por exemplo, que a insistência no sexual ‘particulariza’ a psicanálise e, por conseguinte, a priva de um alcance mais universal, o qual a filosofia possui. Isso é realmente assim? 

A questão da sexualidade deveria ser, de fato, enfaticamente debatida em qualquer tentativa séria de associar filosofia e psicanálise. Não apenas porque ela geralmente constitui o ‘núcleo duro’ [hard core] de sua dissociação, mas também porque não desistir do problema da sexualidade constitui o sine qua non de qualquer postura verdadeiramente psicanalítica, o que parece fazer essa dissociação ainda mais absoluta ou intransponível [insurmountable]. 

Este último ponto (a ênfase na sexualidade como sine qua non de qualquer postura verdadeiramente psicanalítica) é massivamente sustentado pela história da psicanálise que, obviamente, teve suas próprias tentativas de relativizar e minimizar o papel do sexual, transpondo-o para uma ‘questão importante’ que tem seu lugar ao lado de outras questões importantes que representam a totalidade da condição humana. Enquanto essas tentativas parecem, por vezes, trazer a psicanálise para mais perto da filosofia, elas constituem, acredito, o pior tipo de ‘false friends’. Elas produzem uma ‘filosofia psicologizada’, uma certa Weltanschauung, que poderia ser, talvez, melhor descrita como uma ‘filosofia do interesse humano’, uma filosofia que põe em seu centro a investigação do animal humano e de sua alma. 

É por isso que, não é de modo algum um acidente, que os dois psicanalistas que tiveram, de longe, a mais produtiva e importante influência na filosofia contemporânea, Freud e Lacan, foram ambos absolutamente inabaláveis em se tratando do papel central da sexualidade na psicanálise. Os exemplos de suas influências na filosofia são abundantes, mas deixem-me tomar apenas o proeminente exemplo contemporâneo de Alain Badiou: enquanto totalmente inflexível em sua postura no que diz respeito a recusar a associar a subjetividade, em sua emergência, com qualquer coisa como ‘sexuação’, o trabalho de Badiou é profundamente engajado e em muitos níveis com Freud e Lacan. Não se pode de modo algum imaginar Badiou em paralelo, por exemplo, com a abordagem junguiana, enquanto uma abordagem na qual a sexualidade está felizmente posta no seu apropriado lugar secundário.

A situação é, de fato, muito interessante. É quase como se a psicanálise e a filosofia tivessem seus encontros mais atraentes, produtivos e poderosos quando esta questão central de discussão permanece não resolvida. Poderíamos também dizer: é como se a filosofia sempre se livrasse da psicanálise que permaneceu inflexível quanto à questão da sexualidade, embora tendesse a deixar essa questão em suspenso [at the door]. Ou: é como se aquilo que gera o que faz a psicanálise verdadeiramente interessante para a filosofia é aquilo mesmo que a filosofia não pode aceitar. A sexualidade parece assim constituir um ponto singular de ‘desencontro’, que apenas permite um mínimo encontro verdadeiro entre filosofia e psicanálise (em sua heterogeneidade). 

No que se segue, tentarei lançar alguma luz na questão do porquê isso é assim, e começarei examinando mais de perto qual é exatamente o estatuto da sexualidade na psicanálise. Irei então esboçar as linhas fundamentais de um argumento que poderia ser feito no que diz respeito às possíveis consequências ontológicas dessa postura psicanalítica.

Freud e os Três Ensaios 

Comecemos por um ponto que é tão óbvio que fico quase envergonhada de desenvolvê- lo, mas que é também tão crucial que, talvez, nunca se deveria cansar-se de repeti-lo. 

Freud descobriu a sexualidade humana como um problema (que precisava de explicação), e não como algo com o qual se poderia, eventualmente, explicar todo (e qualquer) problema. Ele ‘descobriu’ a sexualidade como intrinsecamente sem sentido, e não como o horizonte final de todo sentido produzido pelo homem. Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) continuam a ser um texto de grande importância a esse respeito. Se se precisasse resumir seu argumento em uma única frase, a seguinte chegaria suficientemente perto das expectativas: a sexualidade (humana) é um desvio enigmático-paradoxal [paradox-ridden] de uma norma que não existe.

Freud começa com a discussão das ‘aberrações sexuais’, que foram identificadas como tais no corpus existente do conhecimento médico: homossexualidade, sodomia, pedofilia, fetichismo, voyeurismo, sadismo, masoquismo e assim por diante. Discutindo essas perversões e os mecanismos nelas envolvidos (basicamente, os desvios em relação ao objeto sexual, supostamente um adulto do sexo oposto; e os desvios em relação ao alvo sexual – supostamente a reprodução) o argumento de Freud move-se simultaneamente em duas direções. Por um lado, ele demonstra extensivamente como os mecanismos ‘aberrantes’ envolvidos nessas práticas estão muito presentes no que é considerado o comportamento sexual ‘normal’ ou ‘natural’. Na medida em que eles estão bem integrados no que é considerado a sexualidade ‘normal’, eles não são vistos como perversões. Eles são apenas considerados como aberrações perversas se eles se tornarem completamente independentes do objeto sexual ‘adequado’ e do suposto alvo sexual, se eles se tornarem autônomos em seus alvos fragmentados, parciais, que não servem a nenhum propósito significativo. Freud faria objeção, entretanto, à palavra ‘torna-se’ – e isso constitui a segunda linha crucial de seu argumento. As pulsões são fragmentadas, parciais, sem alvo e independentes de seu objeto desde o início. Elas não se tornam tais devido a algum desvio ulterior. O desvio das pulsões é um desvio constitutivo. Freud escreve que “é provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos encantos deste” (FREUD, 1905/1969, p. 140). É por isso que “no sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não é uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química” (Ibid., p. 138). 

Este é um ponto crucial quando se trata de compreender outra ênfase importante da conceitualização de Freud da sexualidade: ‘sexual’ não deve ser confundido com ‘genital’ (Ibid., p. 170). A ‘organização sexual genital’ está longe de ser primordial ou ‘natural’: ela é um resultado, um produto de diversos estágios de desenvolvimento, envolvendo tanto a maturação fisiológica dos órgãos reprodutivos quanto os parâmetros simbólico-culturais. Ela envolve uma unificação da originalmente heterogênea, dispersa, sempre-já [always-alreadycomposta pulsão sexual, formada de diferentes pulsões parciais tais como olhar, tocar, lamber, e assim por diante. Essa unificação comporta duas características principais. Primeiramente, é sempre uma unificação forçada e artificial (ela não pode ser vista simplesmente como o resultado natural, teleológico da maturação reprodutiva). E, em segundo lugar, ela nunca é completamente alcançada ou realizada, quer dizer, ela nunca transforma a pulsão sexual em uma unidade orgânica, com todos os seus componentes servindo, finalmente, a um único e mesmo propósito. A sexualidade humana ‘normal’, ‘saudável’ é, assim, uma naturalização artificial e paradoxal das pulsões originalmente desnaturalizadas (desnaturalizadas no sentido de que partiriam de alvos ‘naturais’ de auto-preservação e/ou da lógica de uma pura necessidade não afetada por outra satisfação suplementar). Poder-se-ia mesmo dizer que a sexualidade humana é ‘sexual’ (e não simplesmente ‘reprodutiva’), precisamente na medida em que a unificação em jogo, a amarração de todas as pulsões a um único propósito nunca dá certo, mas permite que as diferentes pulsões parciais continuem suas atividades auto perpetuadoras e circulares. 

É com relação a essa postura freudiana que se pode medir o significado do que estava em jogo em seu rompimento com Jung, assim como as genuínas implicações filosóficas da radical mudança conceitual de Freud. Jung adotou a noção freudiana de libido e, com uma modificação aparentemente pequena, deu-lhe um sentido inteiramente diferente. Com Jung, a libido torna-se uma expressão psíquica de uma ‘energia vital’, cuja origem não é unicamente sexual. Nesta perspectiva, a libido é um nome genérico para a energia psíquica, que é sexual apenas em determinados segmentos. Freud imediatamente viu como seguir esta mudança junguiana envolveria sacrificar “tudo o que foi ganho até agora com a observação psicanalítica” (Ibid., p. 206). Com o termo ‘libido’, Freud designa um desequilíbrio original e irredutível da natureza humana. Toda satisfação de uma necessidade traz consigo a possibilidade de uma satisfação suplementar, desviada do objeto e do alvo de uma dada demanda, ao perseguir seu próprio objetivo, assim constituindo um desvio aparentemente disfuncional. É este desvio, ou o espaço que ele abre, que constitui não apenas o campo das catalogadas ‘aberrações sexuais’, mas também o solo, bem como a fonte de energia, para o que é geralmente referido como a cultura humana em suas mais elevadas realizações. A fonte geradora da cultura é sexual, neste sentido preciso de pertencer a uma satisfação suplementar que não serve a nenhuma função imediata e não satisfaz a nenhuma necessidade imediata. A imagem da natureza humana que se segue a essas conceitualizações freudianas é aquela de uma natureza cindida (e conflituosa), na qual o ‘sexual’ se refere a essa própria cisão. Se Freud usa o termo ‘libido’ para referir-se a um determinado campo de ‘energia’, é para referir-se a ela como uma energia excedente [surplus], e não como algum tipo de nível energético geral envolvido em nossas vidas. Ela não pode designar a totalidade da energia (como Jung sugeriu), uma vez que ela é precisamente o que faz deste todo ‘não-todo’. 

A ‘energia’ sexual não é um elemento que tem seu lugar dentro da totalidade da vida humana; o ponto central da descoberta de Freud foi, precisamente, que não existe nenhum lugar ‘natural’ ou pré-estabelecido para a sexualidade humana, que a última é constitutivamente fora-de-seu-lugar, fragmentada e dispersa, que ela só existe se desviando ‘dela mesma’ ou de seu suposto objeto natural, e que a sexualidade não é nada além que esse ‘fora-de-lugar’ de sua satisfação constitutiva. Em outras palavras, o passo fundamental de Freud foi desubstancializar a sexualidade: o sexual não é uma substância a ser propriamente descrita e circunscrita, ele é a própria impossibilidade de sua circunscrição ou delimitação. Nem ele pode ser completamente separado das funções e necessidades orgânicas, biológicas (uma vez que ele se origina de seu terreno, começa por habitá-lo), nem pode simplesmente ser reduzido a elas. O sexual não é um domínio separado da atividade ou da vida humana, e é por isso mesmo que ele pode habitar todos os domínios da vida humana. 

O que era, e ainda é, realmente perturbador na descoberta freudiana não é simplesmente a ênfase na sexualidade – esse tipo de resistência, indignada com a ‘obsessão por problemas sujos’ da psicanálise, nunca foi a mais forte e foi logo marginalizada pelo progressivo liberalismo da moralidade. Bem mais perturbadora foi a tese concernente ao caráter sempre problemático e incerto da própria sexualidade. Assim, uma resistência ainda mais poderosa (e uma forma mais perigosa de revisionismo) veio do próprio liberalismo, promovendo a sexualidade como uma ‘atividade natural’, como alguma coisa equilibrada, harmônica em si mesma, mas tirada de seu equilíbrio por um ato de repressão ‘necessário’ ou ‘desnecessário’ (dependendo de quão liberal se pretenda ser). Na verdade, essa imagem da sexualidade como alguma coisa óbvia e não problemática em si mesma é diretamente oposta à lição fundamental de Freud, a qual, posta em termos lacanianos, poderia ser formulada como se segue: o Sexual não existe. Há somente o sexual que insiste/persiste como desequilíbrio constitutivo do ser humano. Permitam-me encerrar com uma última citação de Freud: “Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza da própria pulsão sexual é desfavorável à realização da satisfação completa” (FREUD, 1912/1969, p. 171). 

Lacan e a ‘lâmina’ [‘lamella’]

Os argumentos apresentados acima devem ser suficientes para apoiar a seguinte tese, que gostaria agora de propor em relação à pergunta inicial: qual é exatamente o estatuto do sexual em psicanálise e como isso se relaciona à filosofia? A psicanálise, naturalmente, parte das vicissitudes dos seres humanos, nas quais ela focaliza suas investigações. O que a impede de se tornar um tipo de filosofia do interesse humano [human-interest] ‘psicologizada’, entretanto, é precisamente sua descoberta e insistência no sexual como um fator de desorientação radical, um fator que permanece colocando em questão todas as nossas representações da entidade chamada ‘ser humano’. Na teoria freudiana, o sexual (no sentido das pulsões parciais constitutivamente desviantes, também chamadas ‘libido’) não é o horizonte final do animal chamado ‘humano’, não é o ponto-de-ancoragem da irredutível humanidade da teoria psicanalítica, pelo contrário, ele é o operador do inumano, o operador de desumanização ou ‘desantropomorfização’. É isso que prepara o terreno para uma possível teoria do sujeito como alguma outra coisa que não simplesmente um outro nome para o individuo ou ‘pessoa’, quer dizer, para uma teoria universal do sujeito que não é uma abstração neutra de todas as particularidades do humano, mas um ponto singular, concretamente-universal, de sua inerente contradição. Em outras palavras, é precisamente o sexual como operador do inumano que abre o caminho do universal, do qual a psicanálise é frequentemente acusada de perder por causa de sua insistência no sexual. 

O que Freud chama de sexual não é, portanto, aquilo que nos faz humanos, em qualquer sentido que esse termo possa ter, ele é antes aquilo que nos faz sujeitos, ou talvez, mais precisamente, ele é coextensivo da emergência do sujeito. Embora seja verdade que o sexual tal como conceitualizado por Freud é especificamente humano (e neste sentido ele é o que nos faz humano), isso é verdade precisamente na medida em que a sexualidade faz os seres humanos gravitarem em torno de alguma coisa radicalmente não-antropomórfica, poderíamos mesmo dizer, alguma coisa a-morfa

E esse aspecto inumano é precisamente o que Lacan enfatiza mais fortemente com sua própria contribuição ‘mitológica’ à questão da sexualidade humana: sua invenção da ‘lâmina’ [‘lamella’]. Em seu Seminário XI, ao discutir o conceito de pulsão como um dos ‘quatro conceitos fundamentais da psicanálise’, Lacan introduz seu famoso mito da lâmina no intuito de ilustrar o que está em jogo na noção de libido. A concepção da última em termos de ‘energia’ é tão enganadora e largamente mistificadora, que se deveria inclusive pensá-la, ele sugere, em termos de um órgão. 

Mais precisamente, em termos de um ‘órgão irreal’ (organe irréel). Permitam-me recordar a famosa descrição de Lacan: 

A lâmina é algo de extrachato que se desloca como a ameba. Simplesmente, é um pouco mais complicado. Mas isso passa por toda parte. E como é algo (...) que tem relação com o que o ser sexuado perde na sexualidade, é, como o é a ameba em relação aos seres sexuados, imortal. Porque sobrevive a qualquer divisão, porque sobrevive a qualquer intervenção cissípara. E corre. (...) Essa lâmina, esse órgão, que tem por característica não existir, mas que não é por isso menos um órgão – eu lhes poderia dar maior desenvolvimento sobre esse lugar zoológico – é a libido (LACAN, 1964/1979, p. 186). 

Lacan propõe esse mito como sua alternativa ao mito de Aristófanes do Banquete de Platão, ao qual Freud ocasionalmente se referiu: no início, os seres humanos eram Unidades arredondadas compostas ou fusionadas a partir de duas metades; eram seres ‘inteiros’, auto satisfeitos e autossuficientes, e isso os conduziu à arrogância e insolência, que os deuses desaprovaram. Então, eles decidiram dividir os seres humanos ao meio. Desde essa época, cada metade anseia por sua outra metade. O Amor, que emerge quando encontramos nossa outra metade, não é senão esse anseio de mais uma vez nos tornar Um com nossa outra metade. A diferença crucial que Lacan quer enfatizar em relação a esse mito é essa: o que o ser humano perde por causa da reprodução sexual não é sua outra metade sexuada, mas uma parte de seu próprio ser. E, na verdade, é essa parte – e não seu complemento sexual – que ele procura (no ‘amor’). 

Na história de Lacan, no início não existiam entidades arredondadas de completude, fundidas a partir de duas metades; no início existiam alguma sorte de criaturas amebóides, criaturas que se mantinham e se multiplicavam sem reprodução sexual. Essa é a imagem de uma vida que se preserva e se expande por meio da divisão, uma vida que não é individualizada, ou seja, na qual não há nenhuma diferença entre o individuo e a espécie. Cada criatura desse tipo é diretamente a vida de sua espécie. E, naturalmente, os deuses não poderiam punir a eventual arrogância e insolência dessas criaturas cortando-as ao meio – isso não levaria a duas metades (sexuais) deficientes, mas a seres mais autossuficientes. A verdadeira mudança ocorre não com a divisão ou cisão, mas – e aqui a imagem que Lacan evoca em seus desenvolvimentos é bem concreta – com a ocorrência da reprodução sexual, na qual a continuação da vida pela combinação de dois conjuntos (diferentes) de cromossomos envolve uma perda ou redução constitutiva. Diferente da replicação genética, a reprodução sexual envolve a mesma lógica de uma perda irreversível que está em jogo no que a lógica simbólica chama de operação de união, em que Lacan modela sua teoria do sujeito como emergindo a partir de uma alienação constitutiva. Unir é algo diferente de adicionar: se temos duas coleções de cinco elementos, e se dois dos elementos aparecerem em ambas as coleções, o resultado da união das duas coleções não será́ dez, mas oito. 

Além disso, a reprodução sexual implica a individuação e a vincula com a morte: a espécie continua, sobrevive, pela morte dos espécimes individuais. 

No mito lacaniano, a libido é, assim, esta perda constitutiva da sexualidade, que encontra seu caminho de volta (pelo “desfile do significante”) e assombra o sujeito em forma de pulsão. Ela fragmenta o sujeito de dentro. Os objetos parciais da pulsão são todos seres dessa perda/falta. 

Poderia ser interessante indicar isso na bem conhecida passagem de Além do princípio de prazer, na qual Freud se refere ao mito de Aristófanes. Ele o compreende ou o ‘traduz’ de uma maneira que também não é aquela de um ser sexuado desesperadamente buscando sua outra metade, mas de uma maneira que sugere a própria versão de Freud da lâmina:

Devemos seguir a indicação do filósofo-poeta e ousar supor que a substância viva, ao ser vivificada, foi rompida em pequenas partículas que desde então anseiam por reunir-se novamente através das pulsões sexuais? (...) E que essas partículas dispersas de substância viva atingiriam assim o estado multicelular (...)? Creio que é chegado o momento de interromper esta especulação (FREUD, 1920/2006, p. 178 – grifos nossos).

Muitas imagens cinematográficas já foram propostas em relação à lâmina de Lacan, e em relação a essa passagem de Freud, não se pode deixar de pensar no Exterminador do Futuro 2 – a cena na qual o exterminador explode em pedaços, formando pequenas poças de substância tipo-mercúrio [quicksilver-like] no chão, que, em seguida, começam lentamente a se reunir, atraindo-se umas às outras. 

Olhando mais de perto a questão da sexualidade na psicanálise (freudiana e lacaniana) chegamos, assim, a uma situação bastante estranha. Por um lado, há um certo nível de ‘desapontamento’ (deslocado) que Lacan explicitamente sublinha em diversas ocasiões, notadamente n’Os quatro conceitos fundamentais e em Televisão – a psicanálise não nos ensinou praticamente nada sobre o sexo. Eis um bom exemplo: 

[Psicanálise] nada nos ensina de novo quanto ao operatório sexual. Dela não saiu nem um pouquinho da técnica erotológica (...) A psicanálise só toca a sexualidade no que, na forma de pulsão, ela se manifesta no desfile do significante, onde se constitui a dialética do sujeito no duplo tempo da alienação e da separação. A análise não cumpriu, no campo da sexualidade, o que se teria podido, a se enganar, esperar dela de promessas, ela não cumpriu isto porque não tem que cumprir. Não é seu terreno (LACAN, 1964/1979, p. 252). 

Por outro lado, os ‘restos da sexualidade’ na psicanálise, que estão, ao mesmo tempo, situados em seu centro, não são senão essas formações ‘sem pé́ nem cabeça’, bizarras, tais como a ‘lâmina’ lacaniana ou a realidade originalmente fragmentária das pulsões parciais freudianas. 

Um conceito de impasse ontológico 

De fato, a questão que estamos debatendo aqui, aquela da critica filosófica do conceito psicanalítico de sexualidade, poderia também ser dita, começar apenas aqui. E se a sexualidade é posta (pela psicanálise) como inerentemente problemática, não- substancial, como um ‘múltiplo inconsistente’ – para usar o termo de Badiou para ser puro, como um múltiplo que é sempre um múltiplo de múltiplos (de múltiplos, de múltiplos...), de modo que o eventual ‘ponto de parada’ não pode ser em absoluto um ‘um’, mas apenas um vazio? Na verdade, no nível da descrição formal pode-se encontrar paralelos bastante notáveis entre a teoria de Badiou do ser puro como múltiplo puro que é, de início, inconsistente, que ‘consiste’ no vazio, e é um “excesso puro além de si mesmo”, e a consideração freudiana do ser como sexual. Contudo, isso é precisamente onde a psicanálise parece mais vulnerável ao ataque da filosofia: se estamos no nível do ser puro, por que deveríamos pintar este ser puro com colorido sexual? 

Não devemos esquecer, entretanto, que a pergunta/objeção acima apenas faz sentido se já tivermos aceitado o esquema de acordo com o qual o sexual é uma das características do ser (enquanto humano). Contudo, este não é precisamente o argumento que Freud defende. O que Freud diz não é que o sexual é uma característica do ser (humano), mas que é algo que põe em questão o próprio caroço [kernel] do ser. 

Com a terminologia lacaniana poderíamos também dizer que ele é a barra (la barre) do ser. Uma outra maneira de se colocar isso seria em termos do ‘ser dentro do ser’ (no mesmo sentido em que falamos, por exemplo, a propósito da peça em Hamlet, de uma ‘peça dentro da peça’). Freud desenvolve um conceito do ‘sexual’ como o nome (psicanalítico) para a inconsistência do ser. Até mesmo ao formular as coisas desta maneira, pode-se ainda ter a impressão de que não fizemos nada além de humanizar o ser enquanto tal (e sua não-consistência), que apenas o colocamos como especificamente ser humano, ou tomamos os ‘humanos’ (com sua sempre problemática sexualidade) como paradigma do ser e de sua inconsistência enquanto tal. Então, o que insiste neste termo? Por que não dizer simplesmente ‘inconsistência’ ao invés de ‘sexualidade’? 

A resposta pode ser esboçada em dois passos: 1) como indicado acima, o procedimento da psicanálise é realmente oposto ao procedimento de humanização, pois o que está em jogo é – para colocá-lo brevemente – que tomamos o ser humano em sua especificidade e então o levamos, via insistência no sexual enquanto questão, para o seu núcleo mais íntimo como algo objetivo, externo, ‘êxtimo’, anônimo, não-humano, estrangeiro; 2) o sexual como a perspectiva que conduziu a isso não é como uma escada que nos trouxe à inconsistência do ser e poderia ser deixada de lado e esquecida assim que chegamos lá, mas é essencial para a própria coisa. Posto de maneira simples: se chegamos à inconsistência do ser pelo caminho do sexual, esta inconsistência teve que ser estruturada de uma maneira que tornasse esse caminho possível. Em outras palavras: não devemos cometer o erro de pressupor que o ser como múltiplo inconsistente é algo simplesmente dado, que apenas precisamos descobrir e descrever tal como ele é. A inconsistência não ‘é’ precisamente nesse sentido (não é um ser). Freud não é simplesmente alguém que descreveu corretamente algo dado, seu principal gesto foi descobrir a inconsistência do ser como dada no sexual. 

Antes de retornar a este ponto, vamos dar uma olhada em Lacan que estava mais do que disposto em incluir em sua teoria precisamente o seguinte: o sexual como o conceito de um impasse ontológico radical. 

Quando, por exemplo, ele enfaticamente propõe, no Seminário XI, que “a realidade do inconsciente é a realidade sexual” (LACAN, 1964/1979, p. 143), isso deve ser lido estritamente junto com outra tese que ele repete neste seminário, a saber, que o inconsciente está essencialmente relacionado a algo que pertence à ordem do ‘não- realizado’ ou do ‘não-nascido’ (Ibid., p. 28 e 34). Essa afirmação não implica, de modo algum, que pela análise este algo vá́ finalmente ‘nascer’ e se tornar ‘plenamente realizado’. Isso não significa que o inconsciente é uma distorção subjetiva da realidade objetiva (uma distorção que poderia ser ‘endireitada’ pelo trabalho de análise), ele se refere, ao contrário, a uma ‘falha’ fundamental da própria realidade, a algo como uma constituição ontológica incompleta da realidade. É bem sabido quão firme era Lacan em sua insistência de que não há nada ‘puramente subjetivo’ (no sentido de alguma profundidade psicológica) sobre o inconsciente, que ele definiu como o “discurso do Outro”. 

Isso poderia ser dito como uma postura propriamente materialista da psicanálise: o inconsciente não é uma distorção subjetiva do mundo objetivo, ele é primeiro e principalmente uma indicação de uma inconsistência fundamental do próprio mundo objetivo que – como tal, ou seja, como inconsistente – permite e gera suas próprias distorções (subjetivas). A tese aqui é, de fato, muito forte: se a realidade ‘objetiva’ fosse plenamente, ontologicamente constituída, não haveria nenhum inconsciente. O inconsciente é testemunha de um caráter problemático da ‘realidade objetiva’, e não simplesmente do fato de que um sujeito ‘tem um problema’. O sujeito e ‘seu problema’ são melhor vistos por Lacan como o modo mesmo no qual algum impasse ontológico da realidade objetiva existe dentro dessa mesma realidade (como uma de suas figuras subjetivas). Deveria estar imediatamente claro como essa perspectiva difere radicalmente da manobra ideológica contemporânea popular que consiste no reconhecimento massivo de nossos problemas subjetivos. Reconhecendo a singularidade, a profundidade subjetiva, e a importância de nossos problemas eficientemente rouba-se deles toda a validade objetiva. O imperativo aqui é reconhecer os direitos do subjetivo como subjetivo, e não como um possível indicador de algo objetivo, de algum mau funcionamento objetivo, de algo na realidade objetiva que não é

Outro bem conhecido axioma lacaniano, a saber, que o “inconsciente está fora” [“unconscious is outside”], também pode ser compreendido neste sentido mais forte. Ou seja, não apenas no sentido de que o inconsciente sempre pega o material com que trabalha de ‘fora’, mas também no sentido de que o inconsciente designa uma zona de realidade objetiva onde a última não é completamente constituída e apenas existe como um excesso sobre si mesma. Essa hiância constitutiva no Outro deveria ser, assim, a própria condição de possibilidade dos ‘próprios’ recalcamentos do sujeito. Lacan, ele mesmo, diz isso quando distingue entre a estrutura do inconsciente como a estrutura de uma hiância (béance), e todos os possíveis conteúdos do recalcado: “O inconsciente, primeiro, se manifesta para nós como algo que fica em espera na área, eu diria algo de não-nascido. Que o recalque derrame ali alguma coisa, isto não é de se estranhar” (Ibid., p. 28). A imagem aqui é bem eloquente, e, ao mesmo tempo, muito precisa: o recalque preenche as hiância da realidade (objetiva). Nesse contexto, é válido lembrar de uma outra passagem que radicalmente destrói uma percepção comum do que é a perspectiva analítica, uma percepção de acordo com a qual o inconsciente é o que determina a neurose: 

... o inconsciente freudiano, é nesse ponto que eu tento fazer vocês visarem por aproximação que ele se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação. O importante não é que o inconsciente determina a neurose – quanto a isso, Freud fez de bom grado o gesto pilático de lavar as mãos. Mais dia menos dia, vão achar talvez alguma coisa, determinantes humorais, pouco importa – para ele dá na mesma. Pois o inconsciente nos mostra a hiância por onde a neurose se conforma a um real – real que bem pode, ele sim, não ser determinado (Ibid., p. 27). 

Algumas linhas a frente, Lacan relaciona essa alguma coisa indeterminada ao que ele chama da “ordem do não-realizado”. Estamos lidando aqui, dessa maneira, mais explicitamente, com a ideia de inconsciente como um curto-circuito entre a (neurose) ‘subjetiva’ e alguma coisa (indeterminada) na ‘realidade objetiva’. 

A hiância do inconsciente é um outro nome para a realidade do Outro inconsistente. Esse Outro inconsistente não é uma causa direta, imediata dos recalques (subjetivos), ele é sua causa indireta. As distorções subjetivas não são distorções de alguma coisa que é objetivamente outra, são distorções no lugar de alguma coisa que não é. É precisamente por isso que – como Freud foi cedo levado a descobrir – a decifração exclusiva do sentido coerente por trás das distorções do inconsciente não é suficiente para fazer o sintoma desaparecer. Para o núcleo do problema, não é algum fragmento da realidade bruta que foi distorcida e deve agora ser reconhecida tal como ela ‘realmente é’. O problema – e isso é precisamente o que é chamado o inconsciente – é que essa suposta linha reta da representação (verdadeira ou falsa) é constitutivamente fraturada, jogada ‘fora do conjunto’: enquanto as distorções usam fragmentos da realidade, elas correspondem ao (e são dirigidas pelo) vazio inerente, ou hiância, desta realidade. 

Agora, o que quer dizer que o sexual é o conceito psicanalítico desse impasse ontológico fundamental? Ao tentar compreender isso, é crucial perceber que o que está em jogo aqui não é precisamente a proliferação de sentidos sexuais ‘inconscientes’ (que podem muito bem ser aquilo com o qual o dito impasse ontológico é preenchido, ou obstruído). Novamente, para ver isso, é suficiente ter em mente como Freud foi conduzido à sua teoria do sexual como relacionada às constitutivamente desviantes pulsões parciais. Ele não foi conduzido a isso simplesmente descobrindo e decifrando o sentido sexual ‘por trás’ dos sintomas e das diferentes formações do inconsciente, muito pelo contrário, ele foi conduzido a isso tropeçando no ‘fracasso terapêutico’ da revelação definitiva do sentido sexual. Os sentidos sexuais foram revelados, as conexões que conduziram a eles foram estabelecidas e reconstruídas; não obstante, o problema/sintoma persistiu. 

É como se o sentido sexual, tão generosamente produzido pelo inconsciente, estivesse lá para mascarar a realidade das pulsões, para separá-las dele por uma tela que extrai sua eficiência do fato de que ela mesma é um meio de satisfação – satisfação através do sentido, satisfação na produção do sentido sexual, e (como o outro lado disso) na produção do sentido do sexual. 

O sentido sexual é o outro lado da pulsão. O que eu chamo aqui ‘o sexual’ (como uma referência fundamental da psicanálise) é, na verdade, ambos; são os dois porque estão constantemente deslizando de um lado para o outro. O sentido sexual e a pulsão estão irredutivelmente conectados (em um ponto genérico comum), mas eles também são radicalmente heterogêneos, irredutíveis um ao outro, ‘incompatíveis’. Um tem seu aliado no inconsciente, e encontra sua satisfação ‘fazendo sentido’ (como fundamentalmente fazendo sentido sexual), e o outro, a realidade das pulsões, é um ser silencioso, paradoxal, externo a qualquer sentido. Contudo, este último ponto não deve induzir a uma imagem de uma realidade das pulsões substancial, completa, o que está em jogo é antes alguma coisa como um ‘positivo’ (no sentido fotográfico) da hiância do inconsciente como pré-ontológico, i. e., como a marca da zona do não-nascido. O que eu quero dizer com isso? A oposição real de uma substancialidade completa não é simplesmente um vazio, mas objetos parciais não relacionados, ilógicos, tipo-fantasmas, multiplicidade de ‘impossíveis’. Referindo-se a eles, Lacan evoca a “função do limbo”, bem como o que a tradição da Gnose chama “seres intermediários” (Ibid., p. 34). 

O desenvolvimento das possibilidades de clonagem tem recentemente incitado uma vívida fantasmagoria de tais ‘seres intermediários’. É suficiente recordar o início de Alien 4, quando Ripley entra na galeria de suas próprias versões não-realizadas, incompletas, clones abortados. Essa cena literalmente representa o encontro do sujeito com seu sempre limitado ser parcial no real. No real da pulsão, somos precisamente o que Ripley vê nessa cena – criaturas fragmentadas, bizarras, com alguns dos órgãos e superfícies (libidinalmente) multiplicados, e os outros faltando... Não obstante, a cena é profundamente fantasmática. Por quê? Porque sugere um olhar neutro, objetivo, que pode ver Ripley assistindo essas criaturas, esses não-seres, e, assim, situar os últimos na cena da realidade objetiva, expondo-os como suas próprias degenerações. Contrário a isso, a posição de Lacan é de que essa sorte de não-seres é uma parte integral da realidade objetiva, precisamente na medida em que, como um, não se pode ver ambos ao mesmo tempo. Isso é para dizer que a realidade em si é inerentemente enigmática para qualquer um dos dois/ou o que está em questão no caso da anamorfose: ou vemos uma realidade consistente, com uma mancha opaca aqui e lá, ou, então, essa mancha mesma transforma-se em algo como um ser consistente, enquanto o resto da realidade se dissolve em um borrão indistinguível... Não podemos ver as duas coisas ao mesmo tempo, mesmo se estamos lidando com a mesma realidade. (E o que eu chamei previamente de um ‘ser dentro do ser’ é precisamente tal mancha na realidade do ser). 

Agora, já podemos especificar mais precisamente o que é a inconsistência do ser descoberta pela psicanálise. Ela não é simplesmente uma multiplicidade caótica de objetos parciais, ela se refere antes precisamente a esse qualquer um dos dois/ou a essa ‘paralaxe’ da realidade, sua cisão constitutiva. 

Em um de seus importantes ensaios, “Marx e Freud”, Louis Althusser sugeriu algo que nos ajudará a formular alguma espécie de conclusão, bem como um determinado fio político, para essas reflexões. De acordo com Althusser, as teorias marxiana e freudiana têm (pelo menos) duas coisas fundamentais em comum. Elas são ambas ciências conflituosas, e seu pior inimigo não é uma oposição direta, mas revisionista. Desde o início, a teoria freudiana deparou-se não apenas com ataques e críticas ferozes, mas também com tentativas de anexação e revisão. Isso atesta, de acordo com Althusser, o fato de que ela tocou em algo de verdadeiro e de perigoso: esse algo precisa ser revisto, para ser neutralizado. Por conseguinte, o incessante sionismo interior característico da história da teoria freudiana: a teoria tem que defender ela mesma de dentro, contra essas tentativas de revisionismo. Antes da teoria freudiana, a teoria marxista já tinha nos dado um exemplo de uma ciência provocadora- de-cismas [schism-provoking] e necessariamente conflituosa. Em ambos os casos, isso está intrinsecamente conectado ao próprio objeto das ciências que Marx e Freud fundaram. 

Ambos, marxismo e psicanálise, estão situados dentro do conflito que eles teorizaram, eles mesmos são parte da própria realidade que reconhecem como conflituosa e antagônica. Em tal caso o critério de objetividade científica não é uma suposta neutralidade, que não é outra coisa senão uma dissimulação (e, por conseguinte, a perpetuação) do dado antagonismo, ou do ponto de real exploração. Em todo conflito social, uma posição ‘neutra’ é sempre e necessariamente a posição da classe dominante: ela parece ‘neutra’ porque alcançou o status da ‘ideologia dominante’, que sempre nos atinge como auto evidente. O critério de objetividade em tal caso não é, dessa maneira, a neutralidade, mas a capacidade da teoria de ocupar um ponto de vista especifico, singular, dentro da situação. Nesse sentido, a objetividade está ligada aqui à própria capacidade de ser ‘parcial’ ou ‘partidário’. Como Althusser o coloca: quando lidamos com uma realidade conflituosa (que é o caso de ambos, marxismo e psicanálise) não se pode ver tudo a partir de todas as partes (on ne peut pas tout voir de partout); algumas posições dissimulam esse conflito, e algumas o revelam. Pode-se apenas descobrir a essência dessa realidade conflituosa ocupando determinadas posições, e não outras, nesse próprio conflito (ALTHUSSER, 1991, p. 81). 

O que eu gostaria de sugerir é que o sexual é precisamente uma tal ‘posição’ em psicanálise. O sexual é aquilo no qual o conflito, o antagonismo do ‘ser’ e do ‘sentido’ está constantemente vivo. O sexual é sua interseção como um conjunto vazio que, não obstante, os prende juntos, conecta-os. Ele é isso porque é impossível dizer ser sem deslizar pelo sentido, enquanto, por outro lado, é impossível ‘fazer sentido’ sem algum ser inesperadamente emergindo das bordas do significante. É por isso que o sexual é o que torna possível ver, discernir, pensar, essa dualidade impossível, essa paralaxe da constituição ontológica da realidade, esse qualquer um dos dois/ou, o que é a inconsistência do ser precisamente, porque não podemos simplesmente escolher um ou outro (e, assim, chegar a um ser consistente, ou à realidade como plenamente ontologicamente constituída). 

Como eu já indiquei mais de uma vez, Freud descobriu essa cisão como a divergência entre o fato de que uma determinada representação inconsciente se tornou consciente, e o fato de que o recalque, no entanto, persiste. Ele o formulou em termos de uma cisão entre o conteúdo (intelectual) de uma representação e o processo ou o componente afetivo. Propôs, então, diferentes conceitualizações de suas relações. Essa dualidade e sua articulação é algo a que ele retornou por diferentes caminhos, como se ele nunca tivesse encontrado uma resposta completamente satisfatória. E existe, de fato, um perigo aqui, um perigo de que uma ‘resposta completamente satisfatória’ resolveria essa tensão fundamental perdendo simultaneamente a própria dimensão que é mais produtiva nisso. De um modo geral – e apesar de algumas soluções que podem ser vistas como um passo nessa direção problemática (por exemplo, a ‘divisão do trabalho’ entre as ‘pulsões de vida’ e a ‘pulsão de morte’) – Freud consegue preservar o fio dessa tensão. Para evitar um possível mal-entendido: admirando isso não estou de modo algum glorificando algo do tipo não-perfeito, frouxo, ‘abertura’ indeterminada do pensamento. O conflito e a tensão em jogo são mantidos vivos em Freud precisamente por causa de sua perfeição, perseverança, persistência inflexível ao retornar aos pontos que parecem ‘já estabelecidos’. E é aqui que se pode encontrar uma dimensão política inerente ao pensamento de Freud, bem como aquilo que faz dele um autor tão irresistível para o qual é muito válido retornar – mesmo ao lidar com a pergunta da ontologia. 


Referências Bibliográficas:

ALTHUSSER, L. (1993) “Sur Marx et Freud”, in Écrits sur la psychanalyse. Paris: STOCK/IMEC.
BADIOU, A. (1988) L’être et l’événement. Paris: Seuil.
FREUD, S. (1905/1977) “Three Essays on the Theory of Sexuality”, in On Sexuality, The Pelican Freud Library, vol. 7. Harmondsworth: Penguin Books.

_________. (1905/1977) “On the Universal Tendency to Debasement in the Sphere of Love”, in On Sexuality, The Pelican Freud Library, vol. 7. Harmondsworth: Penguin Books. 

_________. (1920/1984) “Beyond the Pleasure Principle”, in On Metapsychology, The Pelican Freud Library, vol. 11. Harmondsworth: Penguin Books.
LACAN, J. (1964/1979) The Four Fundamental Concepts of Psycho-Analysis. Harmondsworth: Penguin Books. 

_________. (1990) Television. New York and London: W. W. Norton & Company. ŽIŽEK, S. (2007) “K materialistični teologiji”, in Filozofski vestnik, Stevilka 1, Letnik XXVIII.
ZUP ANCIC, A. (2007) “Psychoanalysis”, in BOUNDAS, C. V . The Edinburgh Companion to Twentieth-century Philosophies
Edinburgh: Edinburgh University Press. 

In: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rel/v1n2/v1n2a10.pdf

 

sábado, julho 06, 2024

UM TIPO EXCEPCIONAL DE CARÁTER

 



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Um tipo excepcional de caráter


 

Tania Coelho dos Santos

Fabio André Moraes Azeredo

 

 

Em 1916, Freud, em seu artigo intitulado Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, descreve três tipos básicos: os que se consideram “exceções”, os “fracassados pelo êxito” e os “criminosos devido ao sentimento de culpa”. O primeiro tipo refere-se àqueles que acham que sofreram alguma lesão a mais em relação aos demais seres humanos, e julgam que possuem também um direito a mais na esfera das limitações impostas pela vida e suas regras de convivência. O segundo tipo diz respeito àqueles que quando finalmente alcançam aquilo que almejavam, adoecem e produzem um quadro sintomático que os impede de usufruir sua conquista. O último tipo inverte a concepção clássica que coloca o sentimento de culpa como uma consequência do delito. Freud postula que o sentimento de culpa é anterior ao crime, e que a passagem ao ato criminoso teria a função de produzir uma representação psíquica consciente desse sentimento inconsciente de culpa.


O que pretendemos avançar é que os dois últimos tipos de caráter descritos por Freud, por serem vinculados ao sentimento de culpa, são tipos de caráter que estariam “caindo em desuso”, ou seja, são típicos de uma forma de organização social baseada em uma figura paterna forte, que serve de ideal do eu e justifica a culpa neurótica, isto é, derivada da transgressão efetiva ou imaginada desse ideal. Em contrapartida, o primeiro tipo abordado por Freud, o das exceções, estaria assim em franco avanço, pelo mesmo motivo que os outros dois estariam em desuso.


Este artigo compreende uma extensão em um campo ainda inexplorado, o do caráter na contemporaneidade, dos estudos que efetuamos no Núcleo Séphora sobre os efeitos do declínio da função paterna na modernidade e no contemporâneo. Esses termos capitais, na medida em que supõem uma longa tradição de pesquisa de todo um grupo, serão aclarados ao longo destas páginas. Nossa questão será: como se explicam as mudanças na posição subjetiva dominante a que chamamos caráter? Sabemos que a função paterna apoia-se no recalque das pulsões. A função psíquica da representação de um pai que proíbe alguma coisa é a condição para delimitar a zona de silêncio, que engendra o desejo permitido. O que o pai não proíbe, então é permitido. O declínio da função paterna, conceito originalmente lacaniano (Lacan, 1938) que descreve o crescimento na cultura de uma neurose caracterial ligada a um modo de subjetivação da pulsão, foi redescrito e ampliado com apoio na literatura sociológica e psicanalítica recente para atualizar a discussão sobre as patologias que se fazem acompanhar de um avanço na direção da satisfação direta das pulsões. Propomos que o privilégio paterno de fazer lei, delimitando o que é proibido, vem sendo substituído pela sua forma denegada, “é proibido proibir”. À medida que desaparece o lugar da exceção e cresce o nivelamento e a equalização entre os sujeitos sociais, vemos surgirem novos modos de subjetivação da pulsão e patologias diferentes da neurose. Pensamos que o tipo das exceções pode nos ajudar a compreender os quadros clínicos contemporâneos. Ele configura um obstáculo ao trabalho analítico, uma vez que este sempre envolve uma dose de renúncia ao prazer mais imediato:


Apenas se pede ao paciente que renuncie às satisfações que inevitavelmente trarão consequências prejudiciais. Sua privação deve ser apenas temporária; ele só tem de aprender a trocar uma dose imediata de prazer por uma mais segura, ainda que adiada. Ou, em outras palavras, sob a orientação do médico, pede-se a ele que avance do princípio do prazer para o princípio de realidade pelo qual o ser maduro se distingue de uma criança (Freud, 1916, p. 352).


A tese é que o primeiro tipo, o das exceções, seja hoje mais comum do que quando Freud escreveu esse texto. Entretanto, o fundador da psicanálise já percebia que juntamente com os degenerados, esses pacientes são muito mais difíceis de submeter à tarefa analítica. Para justificar nosso ponto de vista, sustentamos que a sociedade atual não se organiza mais segundo a dominância do modelo hierárquico, quando o pai era o polo repressor da sexualidade e objeto privilegiado da identificação do sujeito. Nesse contexto, o da hegemonia da organização opositiva fálico/castrado, as mulheres definiam-se pela inveja do pênis e os homens pela ameaça de castração. O modelo que domina nossa organização social é igualitário e não hierárquico. Pela mesma razão, os outros dois tipos de caráter também terão que ser revistos.


O tipo das exceções destaca-se por uma resistência maior em renunciar às satisfações mais imediatas. São pacientes, segundo Freud, que acham que já renunciaram a muitas coisas na vida, e por essa razão julgam-se no direito de serem poupados de quaisquer sacrifícios. Ressalta ainda que esse sentimento é universal, e todos gostariam de ser uma “exceção” à regra e terem uma posição privilegiada em relação aos demais. Mas, justamente por ser um sentimento presente em todos, Freud pergunta-se por que alguns não renunciam em se tomarem como exceção:


Deve haver uma razão específica, e não universalmente presente, para que alguém realmente se proclame uma exceção e se comporte como tal. (…) Suas neuroses se ligavam a alguma experiência ou sofrimento a que estiveram sujeitos em sua primeira infância, e em relação aos quais eles sabiam não ter culpa, podendo encará-los como uma desvantagem injusta a eles imposta (1916, p. 353).


A psicologia da vítima, com a consequente reivindicação sintomática de um direito à exceção é inanalisável, porque exclui justamente a cumplicidade do desejo. Para entendermos esse ponto basta fazer uma comparação com o trauma de sedução sexual na histeria. O que torna a histeria analisável é o reconhecimento da cumplicidade do sujeito no desejo edipiano. No caso das exceções não se trata também da perversão como o negativo da neurose. Freud toma o exemplo emprestado ao personagem Ricardo III, de Shakespeare, que nasceu desprovido de beleza. Impedido de se fazer amante devido à sua feiura, ele decidiu ser o vilão. Segundo Freud, o drama do Rei Ricardo III faz com que nos identifiquemos com seu direito à reparação.


Freud universaliza o desejo de ser uma exceção. Nossa hipótese, considerando o ensino de Lacan, é que há dois modos de subjetivação desse desejo: a identificação ao eu ideal e a identificação ao ideal do eu. Nas neuroses trata-se sempre do desejo de ser uma exceção no sentido da identificação ao traço do pai. A transmissão da castração, como a lei do pai que proíbe, tal como podemos depreender de Totem e tabu (Freud, 1913), dá lugar às diferentes identificações com aspectos parciais do pai morto. O assassinato do pai primitivo é uma metáfora da passagem do pai que proíbe tudo ao pai que permite. A identificação com o pai morto, se ela engendra o desejo de ser uma exceção, é marcada pela castração, pela parcialidade que resulta da realização do ideal do eu, o qual nasce de um traço, um aspecto parcial do pai. Não se trata, portanto, do direito a ser uma exceção no sentido de ser um eu ideal.


Podemos ainda estabelecer uma distinção entre “as exceções” e o segundo tipo de caráter, os “fracassados pelo êxito”. Trata-se da culpa que resulta da satisfação de um desejo incestuoso. O sujeito, em consequência de sua culpa edipiana, não suporta seu próprio êxito e termina por impedir-se de usufruir de suas conquistas:


O trabalho psicanalítico nos ensina que as forças da consciência que induzem à doença, em consequência do êxito, em vez de, como normalmente, em consequência da frustração, se acham intimamente relacionadas com o complexo de Édipo, a relação com o pai e a mãe – como talvez, na realidade, se ache o nosso sentimento de culpa em geral (Freud, 1916, p. 374).


Podemos perceber uma clara diferença entre esses dois tipos de caráter, o das exceções e aqueles que fracassam pelo êxito. Sem a culpa, o primeiro tipo não tem como fazer obstáculo ao desejo de ser uma exceção absoluta, e aspira ser tratado como um eu ideal. São sujeitos que acreditam ter sofrido alguma lesão da natureza. Justamente, não têm culpa disso. A culpa, então, é a culpa do Outro – da natureza ou de alguém.


Vamos agora à articulação que nos permite diferenciar o tipo das exceções e o terceiro tipo, o dos que cometeram um crime para aplacar sua culpa, quando esta é, na verdade, anterior ao crime. No caso dos criminosos devido ao sentimento de culpa, o sujeito sente-se endividado com o Outro, a culpa é dele, e o crime vem apenas para dar suporte simbólico a um sentimento inconsciente de culpa. Para compreender esse raciocínio precisamos nos valer da função paterna no Complexo de Édipo:


Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o sentimento de culpa se encontrava presente antes da ação má, não tendo surgido a partir dela, mas inversamente – a iniquidade decorreu do sentimento de culpa. (…) O resultado invariável do trabalho analítico era demonstrar que esse obscuro sentimento de culpa provinha do complexo de Édipo e constituía uma reação às duas grandes intenções criminosas de matar o pai e de ter relações sexuais com a mãe (Freud, 1916, p.375-6).


Entre os três tipos de caráter, o das exceções é o único sobre o qual Freud não menciona qualquer relação com o complexo edípico. Em nossa opinião, isso não é uma coincidência; parecia já ser uma indicação de um modo de subjetivação do direito à satisfação pulsional, como um direito absoluto. Consideramos que após os movimentos de maio de 1968, que promoveram uma crítica generalizada a todos os modos de exercício do poder fundados na autoridade, esse tipo de caráter generalizou-se. O declínio da autoridade paterna é um conceito que se apoia simultaneamente na experiência da clínica psicanalítica, que ressalta o surgimento de novas patologias, e nas análises sociológicas de uma ampla diversidade de autores sobre os efeitos do repúdio ao modo de organização social que privilegiava as diferenças sexuais e geracionais, na dispersão dos laços sociais. Esses indivíduos consideram que não precisam renunciar a uma satisfação mais imediata em nome de uma dívida para com pai, o ideal do eu, ou com os laços fundados na diferença sexual e geracional. A renúncia ao direito a uma satisfação pulsional absoluta, ao direito de ser tratado  como um eu ideal, e a identificação ao ideal do eu não é o modo de organização dominante da constituição subjetiva dos sujeitos contemporâneos. O Nome do Pai, conceito lacaniano que descreve a função do pai como metáfora da impossibilidade de uma satisfação pulsional absoluta (Lacan, 1955-56), não domina o modo de subjetivação contemporâneo.


Freud, com respeito às mulheres, ousa sugerir que se poderia generalizar essa posição de um direito à exceção como um traço normal do caráter. A inveja do pênis comanda o caráter das mulheres. Elas teriam o direito de ser uma exceção por terem sido lesadas ao nascerem desprovidas de um pênis. O que nos interessa em nossa pesquisa é o fato de que aparentemente a mulher é o protótipo de uma nova identificação. A ordem fálica, patriarcal e edípica tem sido questionada desde o advento da modernidade e da ciência. Os movimentos de liberação da sexualidade e o feminismo generalizaram esse questionamento, em especial depois de maio de 1968.


Contemporaneamente, recolhemos os efeitos da oposição ao pai como lugar de exceção. O direito à exceção, no tempo de Freud, era prerrogativa de Deus, do pai morto, e a função do pai no complexo edipiano era a de transmitir essa lei simbólica, a lei da castração. A presença do pai na família organizava a transmissão da impossibilidade de uma satisfação pulsional absoluta, fazendo valer a diferença geracional e sexual. Quanto mais o sujeito se afastava dessas referências, mais ele era tomado como degenerado, imoral ou infantil. Contemporaneamente, no rastro das ideologias individualistas pós-68, o sujeito reivindica “ser si mesmo”, afirmando seu direito de ser uma exceção à regra:


(…) a reivindicação de um direito absoluto à própria individualidade. O discurso que advoga a absolutização dos direitos do indivíduo inclui uma vontade cujos efeitos retornam como uma grande vulnerabilidade à depressão. Essa configuração de valores tomará corpo no crescimento de uma retórica psicologizante, cuja lógica profundamente individualista mal esconde uma vocação insistente para reivindicar que se seja tratado como exceção diante de toda e qualquer manifestação da lei. Toda lei é suspeita de mascarar, em princípio, interesses autoritários ou simplesmente alteritários, interesses de um outro que não sou eu (Coelho dos Santos, 2001b, p. 100).


Em que se funda o direito de “ser a si mesmo”? Será que é legítimo comparar a posição subjetiva dominante na cultura contemporânea com a do tipo freudiano das exceções? Ao homologar um e outro pretendemos precisar o que Jacques Lacan, em seu conhecido artigo sobre Os complexos familiares chamou de “a grande neurose caracterial contemporânea”. Como é que se generalizou entre nós essa espécie de direito generalizado à compensação? De que nos sentimos lesados? Esse direito à compensação apresenta-se também como um dever a menos. Significa acusar, denunciar a sociedade e os poderes públicos constituídos como devedores, insuficientes, inconsistentes. Essa atitude reivindicativa é, portanto, um prolongamento daquela que surgiu com as lutas pela emancipação feminina e pela liberdade sexual. Aparentemente não cessamos mais de nos declarar credores de um Outro (o Estado, o pai de família, a sociedade) autoritário e usurpador. Somos todos lesados! Esse bem poderia ser o lema do sujeito contemporâneo. O problema é: quando todos são lesados, quem deve pagar a compensação?


A “Era dos Direitos”


Para apresentar esse aspecto estrutural da civilização contemporânea, vamos revisitar os fundamentos da modernidade. O passo seguinte é demonstrar como se aprofundam alguns impasses da constituição subjetiva e do laço social na contemporaneidade. Segundo Norberto Bobbio, com o advento da modernidade e a declaração universal dos direitos do homem, há uma conversão dos até então súditos do poder soberano do Rei, na monarquia absoluta, à posição de cidadãos, no Estado de direito:


A inversão, característica do Estado moderno, ocorrida na relação entre Estado e cidadãos: passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais predominantemente do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade em contraposição à concepção organicista tradicional (Bobbio, 1990, p.3)


O indivíduo era o súdito passivo diante das obrigações que lhe eram impostas pelo soberano. Há uma inversão na economia do poder, tal como foi descrita por Michel Foucault e recentemente retomada por Norberto Bobbio: os direitos, que até então eram do soberano, passam para os cidadãos:


Nessa inversão da relação entre indivíduo e Estado, é invertida também a relação tradicional entre direito e dever. Em relação aos indivíduos, doravante, primeiro vêm os direitos, depois os deveres; em relação ao Estado, primeiro os deveres, depois os direitos. A mesma inversão ocorre com relação à finalidade do Estado, a qual, para o organicismo, é a concórdia ciceroniana, ou seja, a luta contra as facções que, dilacerando o corpo político, o matam; e, para o individualismo, é o crescimento do indivíduo, tanto quanto possível livre de condicionamentos externos (p. 60).


É preciso distinguir a redução da soberania monárquica ao poder de Estado, que é a característica da modernidade, do crescimento da economia globalizada de mercado, que vem enfraquecendo a soberania dos Estados e nações que se verifica contemporaneamente. O individualismo moderno, bem como o capitalismo moderno, substituem o poder repressivo do Rei por um tipo de exercício da autoridade que fomenta o recalque, isto é, a interiorização da lei. Essa passagem é explicada magistralmente por Michel Foucault durante toda a fase de sua obra dedicada à genealogia do poder. A crítica antiautoritária que se expandiu nos movimentos pós-68 visa muito mais aos efeitos superegóicos da autoridade paterna do que a derrubar um poder de coação externa como se fez durante a Revolução Francesa. Contemporaneamente, assistimos ao declínio do poder do Estado, do pai de família e dos agentes educativos e normativos de edificar o superego, baseado na interdição e no ideal do eu. Trata-se de uma nova liberdade, que é distinta daquela que se conquistou na aurora da modernidade.


Os efeitos dessa nova forma de liberdade conquistada estão na raiz dos problemas enfrentados pelos sujeitos na contemporaneidade. Um sociólogo como Zygmunt Bauman, ao escrever sobre a pós-modernidade, tomou como eixo comparativo o texto de Freud sobre o “mal-estar na civilização”. Ele situa a modernidade como uma luta entre a liberdade e a opressão. Por “mal-estar na civilização” Bauman entende que Freud tratava do mal-estar na modernidade.


Ele declara que para Freud a civilização – isto é, a modernidade –construía-se a partir da renúncia pulsional. “Esses mal-estares, que eram a marca registrada da modernidade, que resultaram do ‘excesso de ordem’ e sua inseparável companheira – a escassez de liberdade” (1998, p. 8-9). Esses sujeitos, divididos entre liberdade e opressão, ainda tinham como referência algum representante soberano (O Estado, o pai de família, a religião) para acusar de ser a fonte de suas angústias. Esses representantes do poder soberano, mesmo que fossem inimigos a serem enfrentados, serviam de polo identificatório para os sujeitos que deste modo, ou estavam em conformidade com a norma ou eram rebeldes. Hoje não há mais necessidade de batalhas para a conquista da liberdade, ao menos não com o vigor que havia antes.


Passados sessenta e cinco anos que O mal-estar na civilização foi escrito e publicado, a liberdade individual reina soberana: é o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria de todas as normas e resoluções supraindividuais devem ser medidas. Isso não significa, porém, que os ideais de beleza, pureza e ordem que conduziram os homens e mulheres em sua viagem de descoberta moderna tenham sido abandonados, ou tenham perdido um tanto do seu brilho original. Agora, todavia, eles devem ser perseguidos – e realizados – através da espontaneidade, do desejo e do esforço individuais (Bauman, 1998, p. 9).


Se esses representantes não são mais o obstáculo às realizações individuais, contra quem o sujeito reivindica o que lhe falta para ser completamente feliz? Aparentemente, o indivíduo tem mais liberdade, mas podemos deduzir que sua responsabilidade pessoal por seu sofrimento aumenta muito. A partir dessa perspectiva, Bauman revisita a lógica que regia a modernidade segundo Freud. Os sujeitos da modernidade renunciavam a uma dose de prazer imediato em nome de um prazer mais seguro, embora menos completo.


Os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca de felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais (1998, p. 10).


Segundo esse autor, Freud de modo algum supunha que essa relação à satisfação pulsional, que se verifica dominante nos dias de hoje, pudesse vir a se tornar hegemônica. O campo do direito à satisfação pulsional ampliou-se e não pode mais ser visto apenas como algo destrutivo:


Em sua versão presente e pós-moderna, a modernidade parece ter encontrado a pedra filosofal que Freud repudiou como uma fantasia ingênua e perniciosa: ela pretende fundir os metais preciosos da ordem limpa e da limpeza ordeira diretamente a partir do ouro humano, do demasiadamente humano reclamo de prazer, de sempre mais prazer e sempre mais aprazível prazer – um reclamo outrora desacreditado como base e condenado como autodestrutivo (p. 9).


Esse incremento de liberdade e de prazer tem uma contrapartida no campo das identificações. Enquanto o pai era na família o representante do lugar da exceção, a autoridade da lei encarnava a virtude simbólica. O sujeito poderia sujeitar-se à lei ou rebelar-se contra ela, o que de qualquer modo significava estar marcado por ela. Quando o pai de família não encarna mais de forma dominante o lugar de exceção, a organização fálica também não se impõe a todos igualmente. As diferenças sexual e geracional não são mais um modo hegemônico de ordenação do laço social. Todos são, igualmente, sujeitos de direito. Em contrapartida, não têm mais um porto-seguro, a partir do qual suas identidades diferentes possam constituir-se. Todos tornaram-se pares, todos iguais; é a guerra dos sexos e das gerações. Isso traz para o próprio sujeito uma liberdade e uma responsabilidade a mais, pois terá que inventar uma identidade para si. O sujeito hoje deve “ser si mesmo”. O que é ser “si mesmo”?


Essa questão acerca da construção da identidade na contemporaneidade interessa-nos diretamente. Seguimos com Bauman:


O projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Não tomou, porém, uma firme posição contra a identidade como tal, contra se ter uma identidade, mesmo uma sólida, exuberante e imutável identidade. Só transformou a identidade, que era questão de atribuição, em realização – fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivíduo (1998, p. 30).


A identidade não necessariamente se esvaziou, porém ela não está mais assegurada por um ideal coletivo e hegemônico. Podemos ter assim, tanto sujeitos que têm dificuldades em constituir para si uma identidade, como sujeitos cuja identidade não está em conformidade com qualquer ideal mais coletivo. Para Sennett, os sujeitos da sociedade atual não contam com uma estrutura identitária – na esfera do trabalho e da família – para o desenvolvimento do caráter. Essa visão também é expressa por Anthony Giddens:


À medida que a influência da tradição e do costume definha em nível mundial, a própria base de nossa identidade – nosso senso de individualidade – muda. Em situações mais tradicionais, o senso de identidade é sustentado em grande parte pela estabilidade das posições sociais ocupadas pelos indivíduos na comunidade (2000b, p. 57).


A corrosão do caráter relaciona-se, para Sennett, com o declínio da tradição. Coordena-se ao declínio do complexo de Édipo como estrutura que diferencia os sexos e as gerações. Daí podemos extrair a seguinte pergunta: será que sem o apoio no complexo de Édipo, o sujeito não tem caráter?


Freud moldou sua teoria do caráter a partir da identificação primordial ao pai, que após o período de latência geraria o caráter. É essa consciência moral que Freud valoriza, chegando mesmo a dizer que é preciso ter, em certa medida, um bom caráter para que a psicanálise possa fazer alguma coisa pelo sujeito. Aqueles que não o possuem são degenerados, e portanto, não são elegíveis para um tratamento analítico. O caráter positivado é o do menino, que herda na saída do complexo edípico, o superego – que nada mais é do que a internalização da moral paterna.


As crianças, as mulheres e os homossexuais eram justamente esses outros sujeitos que tinham “menos caráter”, isto é, menos superego. As crianças eram pequenos perversos, egoístas, apenas não podiam ser ainda responsabilizados por essa falta moral. O mais impressionante é que Freud repetidamente comparou o adulto perverso ao caráter infantil, declarando que quem mantiver o caráter infantil na vida adulta é perverso. As mulheres também fazem uso da formação reativa, que é o principal mecanismo formador do caráter, embora o façam em menor proporção do que o homem. Na verdade, é só com a saída do complexo de Édipo que sobrevém a consciência moral, e como as mulheres não chegam realmente a sair do Édipo, elas não chegam a desenvolver plenamente um caráter. O caráter delas está diretamente vinculado à inveja do pênis, que é uma espécie de sentimento inconsciente feminino universal. Já os homossexuais em geral compensam sua perversão – que é o fato de manterem um prazer de órgão, o anal, sem submetê-lo à formação reativa ou à sublimação –, com uma grande capacidade sublimatória. Há ainda os realmente perversos, que de fato não têm caráter. O que demarca a posição destes três – mulheres, crianças e homossexuais – em relação ao protótipo do caráter, que é o modelo do neurótico obsessivo, é um maior ou menor afastamento da consciência moral. O superego é o ponto de medida, porque quanto mais se está afastado dele, menos caráter se tem. É claro que Freud também aponta para os perigos desse mecanismo de defesa característico da neurose obsessiva. Porém, Freud demonstra que essa enorme culpa de que sofre o obsessivo é a base da civilização. O neurótico obsessivo desenvolve o superego mais do que qualquer outra modalidade clínica. Ele padece de seu sentimento inconsciente de culpa e sofre de uma eterna procrastinação. O neurótico obsessivo é também o protótipo da satisfação adiada.


O que Freud chama a atenção nas mulheres, nas crianças e nos invertidos? Eles mantêm uma satisfação mais direta preservada; há neles algo do infantil que não se submeteu à castração ou à ordem fálica. A satisfação imediata é inimiga do caráter. Podemos concordar com Sennett e pensar que em uma sociedade como a nossa, de capitalismo flexível, em que os vínculos são necessariamente mais frágeis e o eixo sólido da tradição vem se esvaziando, o caráter estaria sendo corroído também. Deste ponto de vista, ao declínio da função paterna estaria coordenado um declínio generalizado do caráter.


Sintoma e caráter


Dada a importância das transformações do sujeito e do laço social na civilização atual, não podemos nos satisfazer com um conceito de caráter que privilegia o sujeito da modernidade. É preciso atualizar esse conceito de acordo com um tempo de declínio da função paterna, tal como se dá nos dias de hoje a constituição subjetiva. Diferentemente do sintoma, o caráter não se oferece como um corpo estranho, algo a ser decifrado. O caráter é muito mais um modo de ser e de viver. Desde Freud sabemos que não é interpretável. A título de hipótese, podemos pensar que a distinção entre o campo do caráter e o do sintoma hoje talvez já não esteja tão nítida. O caráter é um sintoma integrado à personalidade (Miller, 1998-99, p. 60).


Freud situa o sintoma como algo a ser decifrado, do lado do inconsciente recalcado. Esse sintoma não é integrado à personalidade; pelo contrário, é daquele tipo que o sujeito leva ao analista solicitando que algo possa ser feito com ele, algo que parte da ignorância do analisando e deposita no analista a suposição de que ele possa resolver isso. O caráter, ao contrário, aparece do lado do real, daquilo que não se submete à interpretação – ao menos não à interpretação que se baseia no sentido recalcado. De acordo com Miller, no último ensino de Lacan, com a valorização do gozo o sintoma passa a comportar tanto a vertente de sentido – bedeutung – como a vertente de gozo – befriedigung. A essa nova conceituação do sintoma Lacan chamava o sinthome. Este, segundo Miller, comportaria tanto o sintoma quanto o caráter. Em seu Seminário Le Sinthome, Lacan apoia-se na obra escrita de Joyce para desenvolver a ideia de que o sinthome não é o efeito da metáfora paterna e sim uma espécie de suplência, justamente, à falha da função paterna.


Devemos abordar a clínica contemporânea com esse outro conceito de caráter. A vantagem que ele tem é a de não privilegiar o sujeito moderno, organizado segundo a hegemonia da função fálica, e sim o que o sujeito psicótico ensina sobre os limites da função edipiana do pai. O caráter é aquilo que não se oferece à interpretação. Em sua leitura do Seminário Le Sinthome de Jacques Lacan, Miller aproxima o caráter da pulsão. Trata-se da vertente de satisfação pulsional, de criação a partir do significante que revela o outro lado do sintoma. O caráter, assim como o fantasma fundamental, tem relação com um gozo que se alcança justamente em detrimento do ideal, ou até mesmo graças à impotência do ideal.


Não há travessia da pulsão, não há mais além da pulsão. (…) Certamente, há o estabelecimento de outra relação subjetiva com a pulsão e com a transferência, por exemplo, uma relação menos contaminada pelo ideal. Se nos fiarmos à oposição entre o I [Ideal] e o a do gozo, o sujeito no fim da análise se encontrará mais próximo da pulsão (Miller, 2000, p. 199).


Essas proposições precisam ser contextualizadas. Foram desenvolvidas no âmbito de uma discussão sobre o que se pode alcançar depois de uma análise. Elucidam qual é o modo de relação do sujeito analisado com a pulsão e com o ideal; contudo, não nos ajudam a saber qual a diferença entre um sujeito que ultrapassou o plano da identificação ao ideal e que se aproximou da pulsão devido à análise, daqueles que estão aderidos às novas formas de satisfação pulsional fora da organização genital da libido. Como se pode perceber, é preciso ainda um esforço a mais para saber em que uma psicanálise pode oferecer ao sujeito uma aproximação da pulsão diferente daquela aproximação que é fruto do capitalismo e da globalização. O sujeito, com a corrosão dos ideais tal como se vê hoje, ficou mais exposto a um outro tipo de superego, diferente daquele freudiano que demandava que os sujeitos, em nome de uma moral tradicional, renunciassem ao gozo:


O direito ao gozo substituiu os antigos imperativos superegóicos de renúncia. Os direitos tornaram-se deveres mais exigentes e mais imperativos do que todas as renúncias vitorianas que marcaram o advento do capitalismo industrial. Os laços sociais tornaram-se frouxos e precários. O indivíduo tornou­-se um valor mais forte em oposição ao interesse social (Coelho dos Santos, 2001b, p. 301).


O sujeito hoje ficou mais exposto à deriva pulsional, é um sujeito que não pode mais contar com esse representante paterno como polo de identificação e sentido para o sujeito:


Sem o anteparo do Nome-do-Pai, isto é, dos hábitos, da rotina e da tradição, os efeitos do Outro universalizante da ciência podem ser devastadores. É imensa, sem limite, a demanda do Outro contemporâneo. Ele requer a divisão do sujeito muito além do que o próprio corpo ou o aparelho psíquico podem suportar e subjetivar. O Outro contemporâneo é radicalmente liberal. Sua voz é um eco da palavra de ordem “é proibido proibir”. A oferta desmesurada de liberdade faz proliferar uma nova sujeição, ao imperativo do gozo. Quando todos têm direito a tudo, não há mais ninguém que possa, legitimamente, dizer não. Ninguém pode legitimamente, dizer o que se deve querer. O que é que serve então de referência para a constituição do sujeito? (Coelho dos Santos, 2001b, p. 302).


Contemporaneamente, já não se pode mais atribuir ao pai a causa do sofrimento. O Nome-do-Pai, antes concentrado no representante paterno onipotente, perde sua consistência e dá lugar a uma série de parceiros possíveis. O tipo das exceções exemplifica isso, que o Outro pode ter falhado, que é um Outro “furado”, que pode até ser cobrado. O sujeito vê o Outro, quer dizer, o pai, as leis e as normas como um Outro “furado”. Vimos que o tipo das exceções trata o Outro como um parceiro, um igual que não o impede de gozar. O Outro cai desse lugar alteritário e se torna um entre outros. Essa tese da autonomia do sujeito, como já expusemos por meio de alguns autores, não é antinômica com a tese de que o sujeito agora está exposto a um Outro mais feroz que o anterior. Sennett (2000), por exemplo, mostra como esse Outro é menos evidente e pode dar a ilusão de uma liberdade maior, de uma ausência de um Outro constrangedor.


Esse Outro, na medida em que é um parceiro, um igual, não requer mais a renúncia pulsional; ao contrário, exige que os sujeitos obedeçam a um imperativo de gozo. Então o superego não se apresenta mais como a lei paterna internalizada, isso que se adquiria na saída do complexo de Édipo. Também o caráter não se reduz a um efeito da renúncia pulsional, pois o imperativo superegóico na era dos direitos nos determina a gozar. Hoje, o fracasso da metáfora paterna, a denegação maciça de seu valore impõe a cada indivíduo uma exigência muito mais árdua – a de construir um sintoma que lhe sirva de defesa contra o excesso e a deriva pulsional.


Nesse esforço de construir seu ideal, o sujeito contemporâneo aproxima-­se mais do movimento de deriva próprio à pulsão. Na contemporaneidade também não há mais uma incitação à renúncia pulsional; pelo contrário, o imperativo atual é: “Goze!”. O superego em Freud implica em uma renúncia à satisfação pulsional. De fato, mesmo nas defesas como nos sintomas e no caráter, há sempre satisfação. Para Lacan, a pulsão alimenta-se justamente disso que não serve para nada. E essa posição teórica permite avançar que:


De fato, Freud descobre o inconsciente e a neurose como efeito das renúncias ao gozo impostas pela moral sexual civilizada. Para Lacan, por sua vez, o inconsciente e a neurose são índices de um mais-de-gozar ou de uma perda de gozo cujo efeito é de desperdício, de produção de lixo. O lixo, porque não serve para nada, pode revirar-se em luxo, em gozo a mais. Eis porque, de Freud a Lacan, o inconsciente é um resto inútil do grande esforço civilizatório do Ocidente moderno, e é com isso que se goza (Coelho dos Santos, 2001b, p. 185).


Podemos ver que de Freud a Lacan há um passo no sentido de valorizar isso que era tomado como pura inutilidade. A pulsão alimenta-se do inútil, há um mais-de-gozar justamente com aquilo que não serve para nada, aquilo que não é produtivo, uma tendência a reciclar o lixo. Nesse ponto o moderno e o contemporâneo distinguem-se nitidamente. O capitalismo triunfante que acompanhou a fundação do estado moderno requeria uma sociedade de renunciantes à satisfação imediata, de produtores e acumuladores. Contemporaneamente, o crescimento da indústria do lazer comanda uma sociedade de consumidores. Assim podemos deduzir que o modelo da acumulação de capital do início do capitalismo ainda era baseado nos traços de caráter do neurótico obsessivo: obstinação, avareza e ordem. O que não servia para a produção era inútil. Uma sociedade de consumidores requer muito menos que saiba guardar, acumular em proveito do dia de amanhã ou das futuras gerações, e muito mais que saiba gastar. A capacidade de despender, gastar, viver cada momento, usufruir sempre e o mais possível, e sobretudo não adiar para amanhã o que se possa aproveitar hoje parece ser a relação dominante ao gozo nos dias de hoje.


O paradigma inverteu-se. No lugar da renúncia e da acumulação do gozo em benefício da utilidade, busca-se a satisfação pulsional mais direta e com menos consideração pela segurança ou utilidade. Foi por isso que apostamos que o tipo de caráter das exceções é hoje hegemônico na cultura – afinal, trata-se de uma inversão de paradigma assegurada em lei e sem retorno. Com o declínio de um ideal universalizante, o sujeito fica com a tarefa de encontrar, em si mesmo ou em algum parceiro, um Outro, um ideal. De todo modo, o ideal nesse caso passa a funcionar segundo uma lógica que não é mais a da oposição ao gozo e sim a de promover o mais-de-gozar.


O caráter pode trazer alguma luz para o modo como esses sujeitos contemporâneos lidam com os ideais e com a pulsão. O caráter exemplifica essa descrença no inconsciente recalcado que se apresentará em muitos pacientes, talvez mais e mais. Uma leitura que não desqualifique esses sujeitos a partir de um ideal edípico é a condição necessária para a sobrevivência da psicanálise. Necessária, mas não suficiente, podemos acrescentar. Não basta dizer que a psicanálise aproxima os sujeitos da pulsão, pois é justamente isso que se tornou o modo hegemônico de viver em nossa sociedade, seja no campo dos direitos do cidadão, seja na relação com o consumo que o capitalismo promove. Nesse sentido, o direito ao gozo pode converter-se em um “dever gozar”. Os sujeitos que não estão mais submetidos ao imperativo da renúncia ao gozo estão agora submetidos a um superego ainda mais feroz, que impõe o gozo como dever.


Para concluir:


A redução do ideal ao objeto do gozo, como efeito da corrosão dos sistemas coletivos de ideais, mostra que o preço da liberdade é o aprofundamento da servidão. O imperativo do Outro contemporâneo tornou o direito ao gozo um dever ético mais pesado. Quando desejo e gozo coincidem, responsabilizar-se pelo seu gozo e não abrir mão do seu desejo são tarefas que exigem do sujeito inventar parceiros, sintomas e laços sociais. O lugar ocupado pelo analista precisa estar à altura dessa mesma exigência (2001b, p. 333).


Por “estar à altura dessa exigência”, entendemos que o analista deve saber se servir dessa nova modalidade de laço social. Muitas vezes o sujeito que nos procura não quer saber, não associa livremente e não pede que seu sintoma seja decifrado. Ele não se endereça talvez a um sujeito suposto saber, e muito mais a alguém que sirva de meio de gozo. É talvez aceitando algo dessa posição de parceria em que um analisando hoje nos coloca que possamos repensar o lugar do analista e o papel da psicanálise.


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IN: PSYCHÊ, 

versão impressa ISSN 1415-1138

 

 


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