sábado, julho 20, 2024

SEXUALIDADE NA PSICANÁLISE E ONTOLOGIA





                   

             Sexualidade e ontologia

 

Alenka Zupancic

Tradução: Ariana Lucero

 

O lugar central da sexualidade na psicanálise foi, frequentemente, e continua a ser, uma questão controversa. Especialmente quando, com Jacques Lacan, a psicanálise entrou na cena da filosofia contemporânea e, desde então, se tornou um importante ponto de referência nessa cena, essa questão é frequentemente levantada nos debates concernentes à relação entre a filosofia e a psicanálise. Muitas noções psicanalíticas (e especialmente as lacanianas) parecem perfeitamente aceitáveis para a filosofia, mas, então, existem aquelas ‘noções sexuais’ que parecem ser bem mais problemáticas.

Sugeriu-se, por exemplo, que a insistência no sexual ‘particulariza’ a psicanálise e, por conseguinte, a priva de um alcance mais universal, o qual a filosofia possui. Isso é realmente assim? 

A questão da sexualidade deveria ser, de fato, enfaticamente debatida em qualquer tentativa séria de associar filosofia e psicanálise. Não apenas porque ela geralmente constitui o ‘núcleo duro’ [hard core] de sua dissociação, mas também porque não desistir do problema da sexualidade constitui o sine qua non de qualquer postura verdadeiramente psicanalítica, o que parece fazer essa dissociação ainda mais absoluta ou intransponível [insurmountable]. 

Este último ponto (a ênfase na sexualidade como sine qua non de qualquer postura verdadeiramente psicanalítica) é massivamente sustentado pela história da psicanálise que, obviamente, teve suas próprias tentativas de relativizar e minimizar o papel do sexual, transpondo-o para uma ‘questão importante’ que tem seu lugar ao lado de outras questões importantes que representam a totalidade da condição humana. Enquanto essas tentativas parecem, por vezes, trazer a psicanálise para mais perto da filosofia, elas constituem, acredito, o pior tipo de ‘false friends’. Elas produzem uma ‘filosofia psicologizada’, uma certa Weltanschauung, que poderia ser, talvez, melhor descrita como uma ‘filosofia do interesse humano’, uma filosofia que põe em seu centro a investigação do animal humano e de sua alma. 

É por isso que, não é de modo algum um acidente, que os dois psicanalistas que tiveram, de longe, a mais produtiva e importante influência na filosofia contemporânea, Freud e Lacan, foram ambos absolutamente inabaláveis em se tratando do papel central da sexualidade na psicanálise. Os exemplos de suas influências na filosofia são abundantes, mas deixem-me tomar apenas o proeminente exemplo contemporâneo de Alain Badiou: enquanto totalmente inflexível em sua postura no que diz respeito a recusar a associar a subjetividade, em sua emergência, com qualquer coisa como ‘sexuação’, o trabalho de Badiou é profundamente engajado e em muitos níveis com Freud e Lacan. Não se pode de modo algum imaginar Badiou em paralelo, por exemplo, com a abordagem junguiana, enquanto uma abordagem na qual a sexualidade está felizmente posta no seu apropriado lugar secundário.

A situação é, de fato, muito interessante. É quase como se a psicanálise e a filosofia tivessem seus encontros mais atraentes, produtivos e poderosos quando esta questão central de discussão permanece não resolvida. Poderíamos também dizer: é como se a filosofia sempre se livrasse da psicanálise que permaneceu inflexível quanto à questão da sexualidade, embora tendesse a deixar essa questão em suspenso [at the door]. Ou: é como se aquilo que gera o que faz a psicanálise verdadeiramente interessante para a filosofia é aquilo mesmo que a filosofia não pode aceitar. A sexualidade parece assim constituir um ponto singular de ‘desencontro’, que apenas permite um mínimo encontro verdadeiro entre filosofia e psicanálise (em sua heterogeneidade). 

No que se segue, tentarei lançar alguma luz na questão do porquê isso é assim, e começarei examinando mais de perto qual é exatamente o estatuto da sexualidade na psicanálise. Irei então esboçar as linhas fundamentais de um argumento que poderia ser feito no que diz respeito às possíveis consequências ontológicas dessa postura psicanalítica.

Freud e os Três Ensaios 

Comecemos por um ponto que é tão óbvio que fico quase envergonhada de desenvolvê- lo, mas que é também tão crucial que, talvez, nunca se deveria cansar-se de repeti-lo. 

Freud descobriu a sexualidade humana como um problema (que precisava de explicação), e não como algo com o qual se poderia, eventualmente, explicar todo (e qualquer) problema. Ele ‘descobriu’ a sexualidade como intrinsecamente sem sentido, e não como o horizonte final de todo sentido produzido pelo homem. Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) continuam a ser um texto de grande importância a esse respeito. Se se precisasse resumir seu argumento em uma única frase, a seguinte chegaria suficientemente perto das expectativas: a sexualidade (humana) é um desvio enigmático-paradoxal [paradox-ridden] de uma norma que não existe.

Freud começa com a discussão das ‘aberrações sexuais’, que foram identificadas como tais no corpus existente do conhecimento médico: homossexualidade, sodomia, pedofilia, fetichismo, voyeurismo, sadismo, masoquismo e assim por diante. Discutindo essas perversões e os mecanismos nelas envolvidos (basicamente, os desvios em relação ao objeto sexual, supostamente um adulto do sexo oposto; e os desvios em relação ao alvo sexual – supostamente a reprodução) o argumento de Freud move-se simultaneamente em duas direções. Por um lado, ele demonstra extensivamente como os mecanismos ‘aberrantes’ envolvidos nessas práticas estão muito presentes no que é considerado o comportamento sexual ‘normal’ ou ‘natural’. Na medida em que eles estão bem integrados no que é considerado a sexualidade ‘normal’, eles não são vistos como perversões. Eles são apenas considerados como aberrações perversas se eles se tornarem completamente independentes do objeto sexual ‘adequado’ e do suposto alvo sexual, se eles se tornarem autônomos em seus alvos fragmentados, parciais, que não servem a nenhum propósito significativo. Freud faria objeção, entretanto, à palavra ‘torna-se’ – e isso constitui a segunda linha crucial de seu argumento. As pulsões são fragmentadas, parciais, sem alvo e independentes de seu objeto desde o início. Elas não se tornam tais devido a algum desvio ulterior. O desvio das pulsões é um desvio constitutivo. Freud escreve que “é provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos encantos deste” (FREUD, 1905/1969, p. 140). É por isso que “no sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não é uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química” (Ibid., p. 138). 

Este é um ponto crucial quando se trata de compreender outra ênfase importante da conceitualização de Freud da sexualidade: ‘sexual’ não deve ser confundido com ‘genital’ (Ibid., p. 170). A ‘organização sexual genital’ está longe de ser primordial ou ‘natural’: ela é um resultado, um produto de diversos estágios de desenvolvimento, envolvendo tanto a maturação fisiológica dos órgãos reprodutivos quanto os parâmetros simbólico-culturais. Ela envolve uma unificação da originalmente heterogênea, dispersa, sempre-já [always-alreadycomposta pulsão sexual, formada de diferentes pulsões parciais tais como olhar, tocar, lamber, e assim por diante. Essa unificação comporta duas características principais. Primeiramente, é sempre uma unificação forçada e artificial (ela não pode ser vista simplesmente como o resultado natural, teleológico da maturação reprodutiva). E, em segundo lugar, ela nunca é completamente alcançada ou realizada, quer dizer, ela nunca transforma a pulsão sexual em uma unidade orgânica, com todos os seus componentes servindo, finalmente, a um único e mesmo propósito. A sexualidade humana ‘normal’, ‘saudável’ é, assim, uma naturalização artificial e paradoxal das pulsões originalmente desnaturalizadas (desnaturalizadas no sentido de que partiriam de alvos ‘naturais’ de auto-preservação e/ou da lógica de uma pura necessidade não afetada por outra satisfação suplementar). Poder-se-ia mesmo dizer que a sexualidade humana é ‘sexual’ (e não simplesmente ‘reprodutiva’), precisamente na medida em que a unificação em jogo, a amarração de todas as pulsões a um único propósito nunca dá certo, mas permite que as diferentes pulsões parciais continuem suas atividades auto perpetuadoras e circulares. 

É com relação a essa postura freudiana que se pode medir o significado do que estava em jogo em seu rompimento com Jung, assim como as genuínas implicações filosóficas da radical mudança conceitual de Freud. Jung adotou a noção freudiana de libido e, com uma modificação aparentemente pequena, deu-lhe um sentido inteiramente diferente. Com Jung, a libido torna-se uma expressão psíquica de uma ‘energia vital’, cuja origem não é unicamente sexual. Nesta perspectiva, a libido é um nome genérico para a energia psíquica, que é sexual apenas em determinados segmentos. Freud imediatamente viu como seguir esta mudança junguiana envolveria sacrificar “tudo o que foi ganho até agora com a observação psicanalítica” (Ibid., p. 206). Com o termo ‘libido’, Freud designa um desequilíbrio original e irredutível da natureza humana. Toda satisfação de uma necessidade traz consigo a possibilidade de uma satisfação suplementar, desviada do objeto e do alvo de uma dada demanda, ao perseguir seu próprio objetivo, assim constituindo um desvio aparentemente disfuncional. É este desvio, ou o espaço que ele abre, que constitui não apenas o campo das catalogadas ‘aberrações sexuais’, mas também o solo, bem como a fonte de energia, para o que é geralmente referido como a cultura humana em suas mais elevadas realizações. A fonte geradora da cultura é sexual, neste sentido preciso de pertencer a uma satisfação suplementar que não serve a nenhuma função imediata e não satisfaz a nenhuma necessidade imediata. A imagem da natureza humana que se segue a essas conceitualizações freudianas é aquela de uma natureza cindida (e conflituosa), na qual o ‘sexual’ se refere a essa própria cisão. Se Freud usa o termo ‘libido’ para referir-se a um determinado campo de ‘energia’, é para referir-se a ela como uma energia excedente [surplus], e não como algum tipo de nível energético geral envolvido em nossas vidas. Ela não pode designar a totalidade da energia (como Jung sugeriu), uma vez que ela é precisamente o que faz deste todo ‘não-todo’. 

A ‘energia’ sexual não é um elemento que tem seu lugar dentro da totalidade da vida humana; o ponto central da descoberta de Freud foi, precisamente, que não existe nenhum lugar ‘natural’ ou pré-estabelecido para a sexualidade humana, que a última é constitutivamente fora-de-seu-lugar, fragmentada e dispersa, que ela só existe se desviando ‘dela mesma’ ou de seu suposto objeto natural, e que a sexualidade não é nada além que esse ‘fora-de-lugar’ de sua satisfação constitutiva. Em outras palavras, o passo fundamental de Freud foi desubstancializar a sexualidade: o sexual não é uma substância a ser propriamente descrita e circunscrita, ele é a própria impossibilidade de sua circunscrição ou delimitação. Nem ele pode ser completamente separado das funções e necessidades orgânicas, biológicas (uma vez que ele se origina de seu terreno, começa por habitá-lo), nem pode simplesmente ser reduzido a elas. O sexual não é um domínio separado da atividade ou da vida humana, e é por isso mesmo que ele pode habitar todos os domínios da vida humana. 

O que era, e ainda é, realmente perturbador na descoberta freudiana não é simplesmente a ênfase na sexualidade – esse tipo de resistência, indignada com a ‘obsessão por problemas sujos’ da psicanálise, nunca foi a mais forte e foi logo marginalizada pelo progressivo liberalismo da moralidade. Bem mais perturbadora foi a tese concernente ao caráter sempre problemático e incerto da própria sexualidade. Assim, uma resistência ainda mais poderosa (e uma forma mais perigosa de revisionismo) veio do próprio liberalismo, promovendo a sexualidade como uma ‘atividade natural’, como alguma coisa equilibrada, harmônica em si mesma, mas tirada de seu equilíbrio por um ato de repressão ‘necessário’ ou ‘desnecessário’ (dependendo de quão liberal se pretenda ser). Na verdade, essa imagem da sexualidade como alguma coisa óbvia e não problemática em si mesma é diretamente oposta à lição fundamental de Freud, a qual, posta em termos lacanianos, poderia ser formulada como se segue: o Sexual não existe. Há somente o sexual que insiste/persiste como desequilíbrio constitutivo do ser humano. Permitam-me encerrar com uma última citação de Freud: “Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza da própria pulsão sexual é desfavorável à realização da satisfação completa” (FREUD, 1912/1969, p. 171). 

Lacan e a ‘lâmina’ [‘lamella’]

Os argumentos apresentados acima devem ser suficientes para apoiar a seguinte tese, que gostaria agora de propor em relação à pergunta inicial: qual é exatamente o estatuto do sexual em psicanálise e como isso se relaciona à filosofia? A psicanálise, naturalmente, parte das vicissitudes dos seres humanos, nas quais ela focaliza suas investigações. O que a impede de se tornar um tipo de filosofia do interesse humano [human-interest] ‘psicologizada’, entretanto, é precisamente sua descoberta e insistência no sexual como um fator de desorientação radical, um fator que permanece colocando em questão todas as nossas representações da entidade chamada ‘ser humano’. Na teoria freudiana, o sexual (no sentido das pulsões parciais constitutivamente desviantes, também chamadas ‘libido’) não é o horizonte final do animal chamado ‘humano’, não é o ponto-de-ancoragem da irredutível humanidade da teoria psicanalítica, pelo contrário, ele é o operador do inumano, o operador de desumanização ou ‘desantropomorfização’. É isso que prepara o terreno para uma possível teoria do sujeito como alguma outra coisa que não simplesmente um outro nome para o individuo ou ‘pessoa’, quer dizer, para uma teoria universal do sujeito que não é uma abstração neutra de todas as particularidades do humano, mas um ponto singular, concretamente-universal, de sua inerente contradição. Em outras palavras, é precisamente o sexual como operador do inumano que abre o caminho do universal, do qual a psicanálise é frequentemente acusada de perder por causa de sua insistência no sexual. 

O que Freud chama de sexual não é, portanto, aquilo que nos faz humanos, em qualquer sentido que esse termo possa ter, ele é antes aquilo que nos faz sujeitos, ou talvez, mais precisamente, ele é coextensivo da emergência do sujeito. Embora seja verdade que o sexual tal como conceitualizado por Freud é especificamente humano (e neste sentido ele é o que nos faz humano), isso é verdade precisamente na medida em que a sexualidade faz os seres humanos gravitarem em torno de alguma coisa radicalmente não-antropomórfica, poderíamos mesmo dizer, alguma coisa a-morfa

E esse aspecto inumano é precisamente o que Lacan enfatiza mais fortemente com sua própria contribuição ‘mitológica’ à questão da sexualidade humana: sua invenção da ‘lâmina’ [‘lamella’]. Em seu Seminário XI, ao discutir o conceito de pulsão como um dos ‘quatro conceitos fundamentais da psicanálise’, Lacan introduz seu famoso mito da lâmina no intuito de ilustrar o que está em jogo na noção de libido. A concepção da última em termos de ‘energia’ é tão enganadora e largamente mistificadora, que se deveria inclusive pensá-la, ele sugere, em termos de um órgão. 

Mais precisamente, em termos de um ‘órgão irreal’ (organe irréel). Permitam-me recordar a famosa descrição de Lacan: 

A lâmina é algo de extrachato que se desloca como a ameba. Simplesmente, é um pouco mais complicado. Mas isso passa por toda parte. E como é algo (...) que tem relação com o que o ser sexuado perde na sexualidade, é, como o é a ameba em relação aos seres sexuados, imortal. Porque sobrevive a qualquer divisão, porque sobrevive a qualquer intervenção cissípara. E corre. (...) Essa lâmina, esse órgão, que tem por característica não existir, mas que não é por isso menos um órgão – eu lhes poderia dar maior desenvolvimento sobre esse lugar zoológico – é a libido (LACAN, 1964/1979, p. 186). 

Lacan propõe esse mito como sua alternativa ao mito de Aristófanes do Banquete de Platão, ao qual Freud ocasionalmente se referiu: no início, os seres humanos eram Unidades arredondadas compostas ou fusionadas a partir de duas metades; eram seres ‘inteiros’, auto satisfeitos e autossuficientes, e isso os conduziu à arrogância e insolência, que os deuses desaprovaram. Então, eles decidiram dividir os seres humanos ao meio. Desde essa época, cada metade anseia por sua outra metade. O Amor, que emerge quando encontramos nossa outra metade, não é senão esse anseio de mais uma vez nos tornar Um com nossa outra metade. A diferença crucial que Lacan quer enfatizar em relação a esse mito é essa: o que o ser humano perde por causa da reprodução sexual não é sua outra metade sexuada, mas uma parte de seu próprio ser. E, na verdade, é essa parte – e não seu complemento sexual – que ele procura (no ‘amor’). 

Na história de Lacan, no início não existiam entidades arredondadas de completude, fundidas a partir de duas metades; no início existiam alguma sorte de criaturas amebóides, criaturas que se mantinham e se multiplicavam sem reprodução sexual. Essa é a imagem de uma vida que se preserva e se expande por meio da divisão, uma vida que não é individualizada, ou seja, na qual não há nenhuma diferença entre o individuo e a espécie. Cada criatura desse tipo é diretamente a vida de sua espécie. E, naturalmente, os deuses não poderiam punir a eventual arrogância e insolência dessas criaturas cortando-as ao meio – isso não levaria a duas metades (sexuais) deficientes, mas a seres mais autossuficientes. A verdadeira mudança ocorre não com a divisão ou cisão, mas – e aqui a imagem que Lacan evoca em seus desenvolvimentos é bem concreta – com a ocorrência da reprodução sexual, na qual a continuação da vida pela combinação de dois conjuntos (diferentes) de cromossomos envolve uma perda ou redução constitutiva. Diferente da replicação genética, a reprodução sexual envolve a mesma lógica de uma perda irreversível que está em jogo no que a lógica simbólica chama de operação de união, em que Lacan modela sua teoria do sujeito como emergindo a partir de uma alienação constitutiva. Unir é algo diferente de adicionar: se temos duas coleções de cinco elementos, e se dois dos elementos aparecerem em ambas as coleções, o resultado da união das duas coleções não será́ dez, mas oito. 

Além disso, a reprodução sexual implica a individuação e a vincula com a morte: a espécie continua, sobrevive, pela morte dos espécimes individuais. 

No mito lacaniano, a libido é, assim, esta perda constitutiva da sexualidade, que encontra seu caminho de volta (pelo “desfile do significante”) e assombra o sujeito em forma de pulsão. Ela fragmenta o sujeito de dentro. Os objetos parciais da pulsão são todos seres dessa perda/falta. 

Poderia ser interessante indicar isso na bem conhecida passagem de Além do princípio de prazer, na qual Freud se refere ao mito de Aristófanes. Ele o compreende ou o ‘traduz’ de uma maneira que também não é aquela de um ser sexuado desesperadamente buscando sua outra metade, mas de uma maneira que sugere a própria versão de Freud da lâmina:

Devemos seguir a indicação do filósofo-poeta e ousar supor que a substância viva, ao ser vivificada, foi rompida em pequenas partículas que desde então anseiam por reunir-se novamente através das pulsões sexuais? (...) E que essas partículas dispersas de substância viva atingiriam assim o estado multicelular (...)? Creio que é chegado o momento de interromper esta especulação (FREUD, 1920/2006, p. 178 – grifos nossos).

Muitas imagens cinematográficas já foram propostas em relação à lâmina de Lacan, e em relação a essa passagem de Freud, não se pode deixar de pensar no Exterminador do Futuro 2 – a cena na qual o exterminador explode em pedaços, formando pequenas poças de substância tipo-mercúrio [quicksilver-like] no chão, que, em seguida, começam lentamente a se reunir, atraindo-se umas às outras. 

Olhando mais de perto a questão da sexualidade na psicanálise (freudiana e lacaniana) chegamos, assim, a uma situação bastante estranha. Por um lado, há um certo nível de ‘desapontamento’ (deslocado) que Lacan explicitamente sublinha em diversas ocasiões, notadamente n’Os quatro conceitos fundamentais e em Televisão – a psicanálise não nos ensinou praticamente nada sobre o sexo. Eis um bom exemplo: 

[Psicanálise] nada nos ensina de novo quanto ao operatório sexual. Dela não saiu nem um pouquinho da técnica erotológica (...) A psicanálise só toca a sexualidade no que, na forma de pulsão, ela se manifesta no desfile do significante, onde se constitui a dialética do sujeito no duplo tempo da alienação e da separação. A análise não cumpriu, no campo da sexualidade, o que se teria podido, a se enganar, esperar dela de promessas, ela não cumpriu isto porque não tem que cumprir. Não é seu terreno (LACAN, 1964/1979, p. 252). 

Por outro lado, os ‘restos da sexualidade’ na psicanálise, que estão, ao mesmo tempo, situados em seu centro, não são senão essas formações ‘sem pé́ nem cabeça’, bizarras, tais como a ‘lâmina’ lacaniana ou a realidade originalmente fragmentária das pulsões parciais freudianas. 

Um conceito de impasse ontológico 

De fato, a questão que estamos debatendo aqui, aquela da critica filosófica do conceito psicanalítico de sexualidade, poderia também ser dita, começar apenas aqui. E se a sexualidade é posta (pela psicanálise) como inerentemente problemática, não- substancial, como um ‘múltiplo inconsistente’ – para usar o termo de Badiou para ser puro, como um múltiplo que é sempre um múltiplo de múltiplos (de múltiplos, de múltiplos...), de modo que o eventual ‘ponto de parada’ não pode ser em absoluto um ‘um’, mas apenas um vazio? Na verdade, no nível da descrição formal pode-se encontrar paralelos bastante notáveis entre a teoria de Badiou do ser puro como múltiplo puro que é, de início, inconsistente, que ‘consiste’ no vazio, e é um “excesso puro além de si mesmo”, e a consideração freudiana do ser como sexual. Contudo, isso é precisamente onde a psicanálise parece mais vulnerável ao ataque da filosofia: se estamos no nível do ser puro, por que deveríamos pintar este ser puro com colorido sexual? 

Não devemos esquecer, entretanto, que a pergunta/objeção acima apenas faz sentido se já tivermos aceitado o esquema de acordo com o qual o sexual é uma das características do ser (enquanto humano). Contudo, este não é precisamente o argumento que Freud defende. O que Freud diz não é que o sexual é uma característica do ser (humano), mas que é algo que põe em questão o próprio caroço [kernel] do ser. 

Com a terminologia lacaniana poderíamos também dizer que ele é a barra (la barre) do ser. Uma outra maneira de se colocar isso seria em termos do ‘ser dentro do ser’ (no mesmo sentido em que falamos, por exemplo, a propósito da peça em Hamlet, de uma ‘peça dentro da peça’). Freud desenvolve um conceito do ‘sexual’ como o nome (psicanalítico) para a inconsistência do ser. Até mesmo ao formular as coisas desta maneira, pode-se ainda ter a impressão de que não fizemos nada além de humanizar o ser enquanto tal (e sua não-consistência), que apenas o colocamos como especificamente ser humano, ou tomamos os ‘humanos’ (com sua sempre problemática sexualidade) como paradigma do ser e de sua inconsistência enquanto tal. Então, o que insiste neste termo? Por que não dizer simplesmente ‘inconsistência’ ao invés de ‘sexualidade’? 

A resposta pode ser esboçada em dois passos: 1) como indicado acima, o procedimento da psicanálise é realmente oposto ao procedimento de humanização, pois o que está em jogo é – para colocá-lo brevemente – que tomamos o ser humano em sua especificidade e então o levamos, via insistência no sexual enquanto questão, para o seu núcleo mais íntimo como algo objetivo, externo, ‘êxtimo’, anônimo, não-humano, estrangeiro; 2) o sexual como a perspectiva que conduziu a isso não é como uma escada que nos trouxe à inconsistência do ser e poderia ser deixada de lado e esquecida assim que chegamos lá, mas é essencial para a própria coisa. Posto de maneira simples: se chegamos à inconsistência do ser pelo caminho do sexual, esta inconsistência teve que ser estruturada de uma maneira que tornasse esse caminho possível. Em outras palavras: não devemos cometer o erro de pressupor que o ser como múltiplo inconsistente é algo simplesmente dado, que apenas precisamos descobrir e descrever tal como ele é. A inconsistência não ‘é’ precisamente nesse sentido (não é um ser). Freud não é simplesmente alguém que descreveu corretamente algo dado, seu principal gesto foi descobrir a inconsistência do ser como dada no sexual. 

Antes de retornar a este ponto, vamos dar uma olhada em Lacan que estava mais do que disposto em incluir em sua teoria precisamente o seguinte: o sexual como o conceito de um impasse ontológico radical. 

Quando, por exemplo, ele enfaticamente propõe, no Seminário XI, que “a realidade do inconsciente é a realidade sexual” (LACAN, 1964/1979, p. 143), isso deve ser lido estritamente junto com outra tese que ele repete neste seminário, a saber, que o inconsciente está essencialmente relacionado a algo que pertence à ordem do ‘não- realizado’ ou do ‘não-nascido’ (Ibid., p. 28 e 34). Essa afirmação não implica, de modo algum, que pela análise este algo vá́ finalmente ‘nascer’ e se tornar ‘plenamente realizado’. Isso não significa que o inconsciente é uma distorção subjetiva da realidade objetiva (uma distorção que poderia ser ‘endireitada’ pelo trabalho de análise), ele se refere, ao contrário, a uma ‘falha’ fundamental da própria realidade, a algo como uma constituição ontológica incompleta da realidade. É bem sabido quão firme era Lacan em sua insistência de que não há nada ‘puramente subjetivo’ (no sentido de alguma profundidade psicológica) sobre o inconsciente, que ele definiu como o “discurso do Outro”. 

Isso poderia ser dito como uma postura propriamente materialista da psicanálise: o inconsciente não é uma distorção subjetiva do mundo objetivo, ele é primeiro e principalmente uma indicação de uma inconsistência fundamental do próprio mundo objetivo que – como tal, ou seja, como inconsistente – permite e gera suas próprias distorções (subjetivas). A tese aqui é, de fato, muito forte: se a realidade ‘objetiva’ fosse plenamente, ontologicamente constituída, não haveria nenhum inconsciente. O inconsciente é testemunha de um caráter problemático da ‘realidade objetiva’, e não simplesmente do fato de que um sujeito ‘tem um problema’. O sujeito e ‘seu problema’ são melhor vistos por Lacan como o modo mesmo no qual algum impasse ontológico da realidade objetiva existe dentro dessa mesma realidade (como uma de suas figuras subjetivas). Deveria estar imediatamente claro como essa perspectiva difere radicalmente da manobra ideológica contemporânea popular que consiste no reconhecimento massivo de nossos problemas subjetivos. Reconhecendo a singularidade, a profundidade subjetiva, e a importância de nossos problemas eficientemente rouba-se deles toda a validade objetiva. O imperativo aqui é reconhecer os direitos do subjetivo como subjetivo, e não como um possível indicador de algo objetivo, de algum mau funcionamento objetivo, de algo na realidade objetiva que não é

Outro bem conhecido axioma lacaniano, a saber, que o “inconsciente está fora” [“unconscious is outside”], também pode ser compreendido neste sentido mais forte. Ou seja, não apenas no sentido de que o inconsciente sempre pega o material com que trabalha de ‘fora’, mas também no sentido de que o inconsciente designa uma zona de realidade objetiva onde a última não é completamente constituída e apenas existe como um excesso sobre si mesma. Essa hiância constitutiva no Outro deveria ser, assim, a própria condição de possibilidade dos ‘próprios’ recalcamentos do sujeito. Lacan, ele mesmo, diz isso quando distingue entre a estrutura do inconsciente como a estrutura de uma hiância (béance), e todos os possíveis conteúdos do recalcado: “O inconsciente, primeiro, se manifesta para nós como algo que fica em espera na área, eu diria algo de não-nascido. Que o recalque derrame ali alguma coisa, isto não é de se estranhar” (Ibid., p. 28). A imagem aqui é bem eloquente, e, ao mesmo tempo, muito precisa: o recalque preenche as hiância da realidade (objetiva). Nesse contexto, é válido lembrar de uma outra passagem que radicalmente destrói uma percepção comum do que é a perspectiva analítica, uma percepção de acordo com a qual o inconsciente é o que determina a neurose: 

... o inconsciente freudiano, é nesse ponto que eu tento fazer vocês visarem por aproximação que ele se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação. O importante não é que o inconsciente determina a neurose – quanto a isso, Freud fez de bom grado o gesto pilático de lavar as mãos. Mais dia menos dia, vão achar talvez alguma coisa, determinantes humorais, pouco importa – para ele dá na mesma. Pois o inconsciente nos mostra a hiância por onde a neurose se conforma a um real – real que bem pode, ele sim, não ser determinado (Ibid., p. 27). 

Algumas linhas a frente, Lacan relaciona essa alguma coisa indeterminada ao que ele chama da “ordem do não-realizado”. Estamos lidando aqui, dessa maneira, mais explicitamente, com a ideia de inconsciente como um curto-circuito entre a (neurose) ‘subjetiva’ e alguma coisa (indeterminada) na ‘realidade objetiva’. 

A hiância do inconsciente é um outro nome para a realidade do Outro inconsistente. Esse Outro inconsistente não é uma causa direta, imediata dos recalques (subjetivos), ele é sua causa indireta. As distorções subjetivas não são distorções de alguma coisa que é objetivamente outra, são distorções no lugar de alguma coisa que não é. É precisamente por isso que – como Freud foi cedo levado a descobrir – a decifração exclusiva do sentido coerente por trás das distorções do inconsciente não é suficiente para fazer o sintoma desaparecer. Para o núcleo do problema, não é algum fragmento da realidade bruta que foi distorcida e deve agora ser reconhecida tal como ela ‘realmente é’. O problema – e isso é precisamente o que é chamado o inconsciente – é que essa suposta linha reta da representação (verdadeira ou falsa) é constitutivamente fraturada, jogada ‘fora do conjunto’: enquanto as distorções usam fragmentos da realidade, elas correspondem ao (e são dirigidas pelo) vazio inerente, ou hiância, desta realidade. 

Agora, o que quer dizer que o sexual é o conceito psicanalítico desse impasse ontológico fundamental? Ao tentar compreender isso, é crucial perceber que o que está em jogo aqui não é precisamente a proliferação de sentidos sexuais ‘inconscientes’ (que podem muito bem ser aquilo com o qual o dito impasse ontológico é preenchido, ou obstruído). Novamente, para ver isso, é suficiente ter em mente como Freud foi conduzido à sua teoria do sexual como relacionada às constitutivamente desviantes pulsões parciais. Ele não foi conduzido a isso simplesmente descobrindo e decifrando o sentido sexual ‘por trás’ dos sintomas e das diferentes formações do inconsciente, muito pelo contrário, ele foi conduzido a isso tropeçando no ‘fracasso terapêutico’ da revelação definitiva do sentido sexual. Os sentidos sexuais foram revelados, as conexões que conduziram a eles foram estabelecidas e reconstruídas; não obstante, o problema/sintoma persistiu. 

É como se o sentido sexual, tão generosamente produzido pelo inconsciente, estivesse lá para mascarar a realidade das pulsões, para separá-las dele por uma tela que extrai sua eficiência do fato de que ela mesma é um meio de satisfação – satisfação através do sentido, satisfação na produção do sentido sexual, e (como o outro lado disso) na produção do sentido do sexual. 

O sentido sexual é o outro lado da pulsão. O que eu chamo aqui ‘o sexual’ (como uma referência fundamental da psicanálise) é, na verdade, ambos; são os dois porque estão constantemente deslizando de um lado para o outro. O sentido sexual e a pulsão estão irredutivelmente conectados (em um ponto genérico comum), mas eles também são radicalmente heterogêneos, irredutíveis um ao outro, ‘incompatíveis’. Um tem seu aliado no inconsciente, e encontra sua satisfação ‘fazendo sentido’ (como fundamentalmente fazendo sentido sexual), e o outro, a realidade das pulsões, é um ser silencioso, paradoxal, externo a qualquer sentido. Contudo, este último ponto não deve induzir a uma imagem de uma realidade das pulsões substancial, completa, o que está em jogo é antes alguma coisa como um ‘positivo’ (no sentido fotográfico) da hiância do inconsciente como pré-ontológico, i. e., como a marca da zona do não-nascido. O que eu quero dizer com isso? A oposição real de uma substancialidade completa não é simplesmente um vazio, mas objetos parciais não relacionados, ilógicos, tipo-fantasmas, multiplicidade de ‘impossíveis’. Referindo-se a eles, Lacan evoca a “função do limbo”, bem como o que a tradição da Gnose chama “seres intermediários” (Ibid., p. 34). 

O desenvolvimento das possibilidades de clonagem tem recentemente incitado uma vívida fantasmagoria de tais ‘seres intermediários’. É suficiente recordar o início de Alien 4, quando Ripley entra na galeria de suas próprias versões não-realizadas, incompletas, clones abortados. Essa cena literalmente representa o encontro do sujeito com seu sempre limitado ser parcial no real. No real da pulsão, somos precisamente o que Ripley vê nessa cena – criaturas fragmentadas, bizarras, com alguns dos órgãos e superfícies (libidinalmente) multiplicados, e os outros faltando... Não obstante, a cena é profundamente fantasmática. Por quê? Porque sugere um olhar neutro, objetivo, que pode ver Ripley assistindo essas criaturas, esses não-seres, e, assim, situar os últimos na cena da realidade objetiva, expondo-os como suas próprias degenerações. Contrário a isso, a posição de Lacan é de que essa sorte de não-seres é uma parte integral da realidade objetiva, precisamente na medida em que, como um, não se pode ver ambos ao mesmo tempo. Isso é para dizer que a realidade em si é inerentemente enigmática para qualquer um dos dois/ou o que está em questão no caso da anamorfose: ou vemos uma realidade consistente, com uma mancha opaca aqui e lá, ou, então, essa mancha mesma transforma-se em algo como um ser consistente, enquanto o resto da realidade se dissolve em um borrão indistinguível... Não podemos ver as duas coisas ao mesmo tempo, mesmo se estamos lidando com a mesma realidade. (E o que eu chamei previamente de um ‘ser dentro do ser’ é precisamente tal mancha na realidade do ser). 

Agora, já podemos especificar mais precisamente o que é a inconsistência do ser descoberta pela psicanálise. Ela não é simplesmente uma multiplicidade caótica de objetos parciais, ela se refere antes precisamente a esse qualquer um dos dois/ou a essa ‘paralaxe’ da realidade, sua cisão constitutiva. 

Em um de seus importantes ensaios, “Marx e Freud”, Louis Althusser sugeriu algo que nos ajudará a formular alguma espécie de conclusão, bem como um determinado fio político, para essas reflexões. De acordo com Althusser, as teorias marxiana e freudiana têm (pelo menos) duas coisas fundamentais em comum. Elas são ambas ciências conflituosas, e seu pior inimigo não é uma oposição direta, mas revisionista. Desde o início, a teoria freudiana deparou-se não apenas com ataques e críticas ferozes, mas também com tentativas de anexação e revisão. Isso atesta, de acordo com Althusser, o fato de que ela tocou em algo de verdadeiro e de perigoso: esse algo precisa ser revisto, para ser neutralizado. Por conseguinte, o incessante sionismo interior característico da história da teoria freudiana: a teoria tem que defender ela mesma de dentro, contra essas tentativas de revisionismo. Antes da teoria freudiana, a teoria marxista já tinha nos dado um exemplo de uma ciência provocadora- de-cismas [schism-provoking] e necessariamente conflituosa. Em ambos os casos, isso está intrinsecamente conectado ao próprio objeto das ciências que Marx e Freud fundaram. 

Ambos, marxismo e psicanálise, estão situados dentro do conflito que eles teorizaram, eles mesmos são parte da própria realidade que reconhecem como conflituosa e antagônica. Em tal caso o critério de objetividade científica não é uma suposta neutralidade, que não é outra coisa senão uma dissimulação (e, por conseguinte, a perpetuação) do dado antagonismo, ou do ponto de real exploração. Em todo conflito social, uma posição ‘neutra’ é sempre e necessariamente a posição da classe dominante: ela parece ‘neutra’ porque alcançou o status da ‘ideologia dominante’, que sempre nos atinge como auto evidente. O critério de objetividade em tal caso não é, dessa maneira, a neutralidade, mas a capacidade da teoria de ocupar um ponto de vista especifico, singular, dentro da situação. Nesse sentido, a objetividade está ligada aqui à própria capacidade de ser ‘parcial’ ou ‘partidário’. Como Althusser o coloca: quando lidamos com uma realidade conflituosa (que é o caso de ambos, marxismo e psicanálise) não se pode ver tudo a partir de todas as partes (on ne peut pas tout voir de partout); algumas posições dissimulam esse conflito, e algumas o revelam. Pode-se apenas descobrir a essência dessa realidade conflituosa ocupando determinadas posições, e não outras, nesse próprio conflito (ALTHUSSER, 1991, p. 81). 

O que eu gostaria de sugerir é que o sexual é precisamente uma tal ‘posição’ em psicanálise. O sexual é aquilo no qual o conflito, o antagonismo do ‘ser’ e do ‘sentido’ está constantemente vivo. O sexual é sua interseção como um conjunto vazio que, não obstante, os prende juntos, conecta-os. Ele é isso porque é impossível dizer ser sem deslizar pelo sentido, enquanto, por outro lado, é impossível ‘fazer sentido’ sem algum ser inesperadamente emergindo das bordas do significante. É por isso que o sexual é o que torna possível ver, discernir, pensar, essa dualidade impossível, essa paralaxe da constituição ontológica da realidade, esse qualquer um dos dois/ou, o que é a inconsistência do ser precisamente, porque não podemos simplesmente escolher um ou outro (e, assim, chegar a um ser consistente, ou à realidade como plenamente ontologicamente constituída). 

Como eu já indiquei mais de uma vez, Freud descobriu essa cisão como a divergência entre o fato de que uma determinada representação inconsciente se tornou consciente, e o fato de que o recalque, no entanto, persiste. Ele o formulou em termos de uma cisão entre o conteúdo (intelectual) de uma representação e o processo ou o componente afetivo. Propôs, então, diferentes conceitualizações de suas relações. Essa dualidade e sua articulação é algo a que ele retornou por diferentes caminhos, como se ele nunca tivesse encontrado uma resposta completamente satisfatória. E existe, de fato, um perigo aqui, um perigo de que uma ‘resposta completamente satisfatória’ resolveria essa tensão fundamental perdendo simultaneamente a própria dimensão que é mais produtiva nisso. De um modo geral – e apesar de algumas soluções que podem ser vistas como um passo nessa direção problemática (por exemplo, a ‘divisão do trabalho’ entre as ‘pulsões de vida’ e a ‘pulsão de morte’) – Freud consegue preservar o fio dessa tensão. Para evitar um possível mal-entendido: admirando isso não estou de modo algum glorificando algo do tipo não-perfeito, frouxo, ‘abertura’ indeterminada do pensamento. O conflito e a tensão em jogo são mantidos vivos em Freud precisamente por causa de sua perfeição, perseverança, persistência inflexível ao retornar aos pontos que parecem ‘já estabelecidos’. E é aqui que se pode encontrar uma dimensão política inerente ao pensamento de Freud, bem como aquilo que faz dele um autor tão irresistível para o qual é muito válido retornar – mesmo ao lidar com a pergunta da ontologia. 


Referências Bibliográficas:

ALTHUSSER, L. (1993) “Sur Marx et Freud”, in Écrits sur la psychanalyse. Paris: STOCK/IMEC.
BADIOU, A. (1988) L’être et l’événement. Paris: Seuil.
FREUD, S. (1905/1977) “Three Essays on the Theory of Sexuality”, in On Sexuality, The Pelican Freud Library, vol. 7. Harmondsworth: Penguin Books.

_________. (1905/1977) “On the Universal Tendency to Debasement in the Sphere of Love”, in On Sexuality, The Pelican Freud Library, vol. 7. Harmondsworth: Penguin Books. 

_________. (1920/1984) “Beyond the Pleasure Principle”, in On Metapsychology, The Pelican Freud Library, vol. 11. Harmondsworth: Penguin Books.
LACAN, J. (1964/1979) The Four Fundamental Concepts of Psycho-Analysis. Harmondsworth: Penguin Books. 

_________. (1990) Television. New York and London: W. W. Norton & Company. ŽIŽEK, S. (2007) “K materialistični teologiji”, in Filozofski vestnik, Stevilka 1, Letnik XXVIII.
ZUP ANCIC, A. (2007) “Psychoanalysis”, in BOUNDAS, C. V . The Edinburgh Companion to Twentieth-century Philosophies
Edinburgh: Edinburgh University Press. 

In: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rel/v1n2/v1n2a10.pdf

 

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