segunda-feira, junho 18, 2012

Sobre o discurso biográfico


Um amigo poeta costuma dizer que as únicas grandes biografias que ele conhece são as de Ulisses por Homero, de Sócrates por Platão, de Dom Quixote por Cervantes, de Ahab por Melville, e assim por diante. Os verdadeiros biógrafos são os escritores. Grifo a palavra porque ela está empregada em sentido rigoroso: afinal, o que significa escrever a vida?

Blanchot argumenta que Kafka sentiu pela primeira vez “a fecundidade da literatura (…) desde o dia em que soube que a literatura era esta passagem do Ich ao Er, do Eu ao Ele”. “Não basta escrever: Eu sou infeliz”, prossegue. “Enquanto não escrever nada além disso, estou perto demais de mim, perto demais de minha infelicidade para que esta infelicidade se torne realmente a minha no modo da linguagem: ainda não estou realmente infeliz. Somente a partir do momento em que chego a essa substituição estranha: Ele é infeliz, é que a linguagem começa a se constituir em linguagem infeliz para mim, a esboçar e a projetar lentamente o modo de infelicidade tal como se realiza nela”.

Peço licença ao leitor para continuar citando algumas passagens, pois são as pistas (senão as provas) de que necessito para conduzir meu argumento. Assim, Lukács observa o seguinte. “Paramos em frente a um retrato de Velázquez e dizemos: ‘Que maravilhosa semelhança’, e sentimos que dissemos efetivamente alguma coisa sobre a pintura. Semelhança? Com quem? Com ninguém, é claro. Não fazemos ideia de quem ela representa, talvez nunca venhamos a saber; e se soubéssemos, pouco ligaríamos. E no entanto sentimos que há uma semelhança”.

No mesmo sentido, Deleuze e Guattari denunciam o “equívoco com o vivido” que ocorre em certos gêneros de escrita: “Muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepções e suas afecções, suas lembranças ou seus arquivos, suas viagens e seus fantasmas, seus filhos e seus pais, os personagens interessantes que pôde encontrar e, sobretudo, o personagem interessante que é forçosamente ele mesmo (quem não o é?), enfim suas opiniões para soldar o todo”. Mas obras de arte não são feitas de percepções e afecções, e sim de perceptos e afectos: “O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações”. Isto é, para a arte, trata-se de transportar, para um meio qualquer (a linguagem verbal na literatura, a tinta na pintura a óleo etc.), o imediato, de modo que o imediato viva, no meio, enquanto o meio se conservar. Trata-se de transportar a chama do imediato para o frio do meio, onde ela sobreviverá a si mesma. Numa palavra, trata-se de congelar o fogo – a arte já inventara a crônica muito antes de os homens sonharem congelar os próprios corpos para sobreviverem a si mesmos.

Em suma, todas as citações acima – às quais se poderia juntar muitas outras – convergem no sentido de uma passagem do pessoal ao impessoal, de um apagamento das origens, da sobrevivência de um ser relativamente a quem o criou. Kafka só começa a escrever quando a sua dor não é mais sua, quando ela passa à linguagem, sobrevivendo a suas afecções e transformando-se em afectos (para usar os termos de Deleuze e Guattari). O retrato de Velázquez é uma cópia perfeita, não de alguém particular, mas de ninguém, isto é, da vida impessoal e comum a todas as vidas particulares. Como disse um poeta, trata-se de capturar não o pássaro, mas seu voo.

Ponto cego

Decorre daí a fraqueza constitutiva do discurso biográfico. Para o gênero biográfico, em sua quase totalidade, escrever a vida consiste em escrever a vida de alguém, e não a vida de ninguém. Ora, a vida de alguém nunca interessa; é a vida de ninguém que interessa. O biógrafo é aquele sujeito que, preocupado em relatar, minuciosamente, a vida de alguém, deixa escapar a vida de ninguém. Quase sempre, o discurso biográfico é um modo de perder a vida.

Não digo que a biografia é um gênero totalmente inútil ou desinteressante. Mas é, no meu entender, na melhor das hipóteses, um gênero ancilar. Serve como matéria-prima para outros modos de escrita capazes, esses sim, de escrever a vida. Tome-se, como exemplo, alguns excelentes biógrafos brasileiros. Ruy Castro é um pesquisador notoriamente obsessivo, cujo trabalho produziu obras de referência sobre grandes artistas, como Nelson Rodrigues e Carmem Miranda. João Máximo e Carlos Didier realizaram uma pesquisa rigorosa e abrangente sobre a vida de Noel Rosa, descrevendo desde as notas de seu histórico escolar até as muitas composições que ele criou mas não assinou. São contribuições – mas limitadas pelas limitações do próprio gênero. Pois a escrita da vida de um artista jamais nos revela a razão pela qual esse artista é grande, seja ele quem for. Afinal, que alcance tem saber que Noel Rosa era um adolescente irreverente e zombeteiro, ou que Carmem Miranda findou seus dias completamente viciada em remédios para dormir e acordar? Quaisquer características pessoais, por si sós, não revelam aquilo que torna um grande artista o que ele é.

Uma vida agitada, repleta de lances aventureiros, não garante a existência de um artista (do contrário, todo traficante de drogas ou todo surfista de ondas gigantes seria um grande escritor). Mas não. Um grande artista é um grande artista por ser capaz de transformar sua vida pessoal, suas percepções pessoais, em arte, ou seja, em um ser de vida independente, que conseguiu capturar a vida e a oferece a quem quer que o visite (e tenha por sua vez a grandeza de abri-lo).

Ora, essa transformação se dá num ponto cego, necessariamente irrecuperável, incompreensível, insondável mesmo. Se fosse possível penetrar nos domínios dessa passagem, descobrir-se-ia uma fórmula científica da arte, e não haveria mais grandes artistas. No discurso biográfico permanece aberto um fosso entre a vida de alguém e a vida de ninguém, entre a vida do sujeito civil que se relata e a vida impessoal que ele foi capaz de capturar e oferecer à humanidade como espelho de si mesma. Esse fosso se converte em gênero propriamente ridículo nas obras que se propõem relatar, como uma confissão privada, a um incauto leitor, em que circunstâncias se deu a gênese de tais e tais canções de um astro da música, ou de tais e tais livros de um escritor consagrado. Oferecem-se, então, explicações banais no lugar do que é uma transcendência por definição incognoscível. Os discursos que ignoram deliberadamente a dimensão biográfica são sempre os que mais se aproximam de revelar o que um artista pôde fazer com a vida: compreende-se muito melhor um grande autor lendo seus melhores críticos do que lendo seus biógrafos.

Falsas biografias
Posso, então, retomar a observação de meu amigo, com que iniciei esse percurso, e, mantendo-me fiel a seu espírito, afirmar que as únicas verdadeiras biografias que conheço são as falsas biografias, aquelas que contêm, explícita ou implicitamente, uma crítica ao discurso biográfico (crítica que costuma faltar nos biógrafos mais rigorosos sob a perspectiva factual: ocorre que, do fato à sua interpretação, vai um salto qualitativo, e é esse salto, objeto necessariamente de uma reflexão teórica, que deveria ser pensado por todos os biógrafos).

A biografia de Genet por Sartre, por exemplo, é verdadeiramente uma biografia. Isso porque ela é dotada de força conceitual, e o conceito se caracteriza, tal como os perceptos e afectos, por um movimento de transcendência: trata-se de haurir, de uma multiplicidade concreta, a abstração que a define e elucida. O conceito também é uma passagem do imediato concreto ao meio que o eterniza. Mas para tanto, para haver uma biografia como essa, é preciso antes haver um filósofo como Sartre.

Barthes, ao ser convidado a escrever um livro autobiográfico, Roland Barthes por Roland Barthes, aceitou com a condição de escrevê-lo sob a perspectiva de uma cláusula ficcional: “Tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de romance”. E referiu-se a si mesmo em terceira pessoa. “Si mesmo”, no caso, são no livro quase sempre os seus escritos, e não aspectos de sua vida pessoal (que ele apresenta apenas para questionar a validade dessa apresentação). Com isso, Barthes esquivou-se da ilusão de proferir o que seria uma espécie de última palavra, de verdade final sobre si mesmo. Sua autobiografia nada mais é que um novo elo na cadeia de seus escritos. Já o discurso biográfico, a meu ver, é sustentado por uma esperança, ilusória, de verdade, de decifração de um enigma: agora compreenderei por que fulano é um grande artista, a sua vida o revelará. Mas não há chave, apenas o olhar interdito de Orfeu para Eurídice – e toda obra de arte é o eco ou o reflexo do que esse olhar pôde ver.

Devo ainda indicar, para concluir, que a obsessão pela vida privada que caracteriza boa parte do mundo contemporâneo serve ao menos para confirmar a tese central do que foi dito até aqui: a crítica fundamental que deve ser feita ao programa Big Brother não é ao fato de ele ser invasivo (nele dá-se antes evasão de privacidade), nem sexualmente apelativo (e daí?), mas de ele, inversamente ao que acredita, não ser capaz de mostrar a vida de ninguém.

 Francisco Bosco
FONTE: Revista CULT

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