segunda-feira, novembro 12, 2012

O músico revolucionário



No dia 5 de setembro, John Cage fez cem anos. Provavelmente, esta data passará em silêncio. Um dos maiores compositores do século 20 continua sendo um estranho para a sensibilidade contemporânea. Alguém cujas questões permanecem sob a forma de desafios abertos.

Não é complicado entender a razão deste estranhamento. Dificilmente encontraremos alguém que foi tão longe da negação sistemática dos parâmetros que normalmente definem a racionalidade da forma musical quanto John Cage. O que explica por que sua obra continua sendo, em larga medida, desconhecida e de difícil abordagem.

No entanto, aqueles que quiserem entrar a partir de uma porta que se abre mais facilmente podem começar com a audição do CD Music for Non Prepared Piano, gravado pelo grande pianista Jay Gottlieb. Neste CD, que apresenta vários momentos da produção de Cage a partir de suas peças para piano, é possível encontrar algumas das obras mais líricas e contemplativas do compositor, como “In a Landscape” e “Dream”, assim como obras que expõem claramente a inventividade de sua música, como “Ophelia” e o belo ciclo “Metamorphosis”.

Mas, se voltarmos à negação cageana dos parâmetros tradicionais da racionalidade musical e da própria noção de forma, veremos como ela respondeu a um impulso fundamental para a crítica modernista. Se Schoenberg representa a crítica a uma linguagem estética arruinada feita através da possibilidade de apresentar novos processos construtivos (no caso, o dodecafonismo), Cage será aquele que irá desenvolver uma crítica totalizante da razão musical através de um certo retorno à origem, ao arcaico. Como se a música tivesse a força de liberar uma origem há muito recalcada pelos processos de racionalização. Uma origem que atende por seu nome clássico, a saber, a natureza. Não por outra razão, Cage escreverá, de maneira explícita: “Arte = imitação da natureza em seus modos de operação”.

A princípio, não deixa de ser irônico que um dos mais radicais músicos de vanguarda pareça endossar a proposição tradicional da arte como mimesis da natureza. Contra a pretensa autonomia do fato musical, Cage estaria insistindo na necessidade da música conformar-se ao que é extramusical e assegurado no solo estático da natureza.

No entanto, tudo muda se nos perguntarmos: qual é esta natureza que parece garantir a Cage a realização do programa modernista de ruptura e renovação?

Esta é uma pergunta fundamental, já que Cage sabe que a imagem da natureza socialmente construída em nada se assemelha a esta natureza cujos modos de operação a arte deve ser capaz de imitar. Na verdade, tal natureza só aparece quando somos capazes de destruir todos os padrões de ordenamento e estabilidade que tendem a se passar por naturais. Nunca a crítica à reificação da linguagem musical foi tão longe.

Na verdade, a natureza em Cage será o espaço da contingência radical, do acaso sem télos, dos fenômenos que não se submetem à direção de uma intenção ou à valoração de um interesse. Uma natureza que desconhece regularidades, que não funciona mais como a imagem de um sistema de causalidade fechada.

Só aceitando uma natureza tal como esta seria possível, ao menos aos olhos de Cage, “fazer algo que escape à dominação do Eu”. Uma natureza que só se manifestaria quando a música se transformasse no espaço de acontecimentos que não poderiam ser previstos nem pelo compositor, nem pelo interprete e nem pelo ouvinte.

Neste sentido, é digno de nota que um dos setores mais avançados do modernismo musical precise reconstruir profundamente o conceito de natureza para abrir o espaço a uma linguagem que não teme flertar com a indiferença, com a indeterminação e com a inexpressão para voltar a ter inventividade. Prova maior de que, quando a linguagem parece mortificada, nossos melhores artistas não temem sequer em flertar com sua própria autodissolução simbólica.

by: VLADIMIR SAFATLE 
FONTE– Revista CULT

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