quarta-feira, março 04, 2015

Pascal Bruckner por Jurandir Freire Costa






Amores Expressos

Jurandir Freire Costa

O Paradoxo Amoroso – Ensaio sobre as Metamorfoses da Experiência Amorosa, de Pascal Bruckner, é mais um trabalho sobre o amor. O autor aborda o tema em modo de ensaio, ou seja, sem sistematizar a armadura conceitual histórica, filosófica, psicológica, semântica etc. da leitura escolhida. Nesse sentido, o livro tem o perfil de uma meditação moralista à la Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld ou outros do gênero. A pretensão é absolutamente legítima, mas paga o preço da escolha do método.
Primeiramente, os pontos fortes. Bruckner observa a distância o panorama amoroso contemporâneo, revelando suas linhas de força. A tese é, grosso modo, a seguinte: somos filhos inconscientes do Maio de 1968. A revolução amoroso-sexual daquele período triunfou.
Não, porém, como previam os protagonistas do acontecimento. As astúcias da história transformaram a fantasiada liberação sexual em pesadelo amoroso. Somos livres para amar como nunca fomos, mas jamais fomos tão solitários, infelizes, tristes e queixosos em matéria de amor. A liberdade conquistada descambou num ideal amoroso tirânico: prazer perene, à prova do desgaste do tempo e do hábito.
O resultado é a insatisfação crônica; a busca masoquista pelo “defeito” em si ou no outro, responsável pela obsolescência precoce de tantos sonhos de amor.
Bruckner não se deixa iludir pelo catastrofismo do “tudo está perdido”. Tampouco endossa a açucarada receita dos manuais de autoajuda sobre o “verdadeiro amor” ou o jacobinismo militante de certas minorias sexuais. De forma cortante, diz em certo trecho: “Não somos nem heróis nem santos, somos simples humanos com capacidade de dedicação limitada”.
Até aí, tudo corre macio. Num segundo momento, entretanto, surge a tentativa de entender as razões do imbróglio amoroso, e começam os tropeços do estudo. A desenvoltura histórica, filosófica ou psicológica assumida impede o autor de ver o fosso entre a descrição e a explicação do “paradoxo amoroso”.
Bruckner afirma que a infelicidade amorosa de hoje se deve a uma “idealização do sentimento”, cuja fonte é a despropositada injunção cristã do “amai-vos uns aos outros”. A religião, às caladas, continuaria a orientar as expectativas amorosas.

Idealização
Fazer da tradição judaico-cristã bode expiatório das mazelas ocidentais não é novidade no pensamento crítico. Bruckner, sob esse aspecto, apenas engrossa a fileira dos que sempre têm à mão um “cristianismo” apropriado às suas necessidades ideológicas.
Por exemplo, ao falar sobre o despotismo do ideal amoroso, ele diz que cristianismo e stalinismo mataram e oprimiram milhões de seres humanos “em nome do amor”.
E, prossegue, não é por acaso que “os últimos intelectuais comunistas na Europa, Alain Badiou e Slavoj Žižek, entre outros, tenham todos eles evocado São Paulo, o cristianismo e o poder transfigurador do amor”.
Em suma, o rígido ideal do amor cristão e do amor à humanidade socialista resultou em brutalidades inomináveis. O que engasga nessa explicação? Antes de tudo, o equívoco entre esperança messiânica e amor. É verdade, cristianismo e socialismo, de formas diferentes, pregam a ideia de redenção futura da humanidade.
Bruckner considera-se livre desse vírus cultural, que, a seu ver, corrompe a realização amorosa. Mas parece ignorar a natureza messiânica contida em suas demandas democráticas de progresso e pluralidade morais. O respeito ao próximo, que ele propõe como substituto do nefasto “amor ao próximo” cristão ou marxista, é tão cristão como tudo que ele rejeita.
O moralista não é obrigado a se curvar ao rigor da análise sistemática dos termos que utiliza, mas deve oferecer a seu público algo além do lugar-comum sobre ética cristã e ideais de amor. Bruckner toma como equivalentes o “amor romântico” e os mandamentos judaico-cristãos do “amor ao próximo”.
Por isso, explica as desditas do amor ora pela idealização míope da credulidade cristã, ora pela própria natureza da emoção amorosa. Num certo trecho, ele diz: “Quanto ao sofrimento amoroso, ele é indissociável da felicidade, nosso desgosto nos agrada e nos faria falta se desaparecesse… Talvez a paixão esteja fadada ao infortúnio, mas é um infortúnio muito maior nunca ter se apaixonado”.
A mistura de conceitos logicamente diversos – o amor romântico e o amor cristão à dignidade do outro – redunda em incongruência. Pois, se o sofrimento amoroso é inevitável, por que imputar à suposta obtusidade cristã a responsabilidade pela idealização martirizante do amor? Se levarmos a sério o que é dito, com ou sem cristianismo, estaremos destinados a sofrer por amor e gozar com esse sofrimento. Enfim, o que vale é a explicação psicológica sobre os riscos de amar
ou a explicação histórica sobre o ideal religioso humanamente inatingível?
O valor do ensaio moralista está na exposição às claras da perspectiva do autor. Bruckner, no entanto, quer fundar teoricamente uma asserção baseada na autoridade pessoal de quem a enuncia. Deixemos de lado esse propósito ambivalente. Guardemos do autor o que ele tem de melhor, em especial a frase com que termina o livro: “Amamos tanto quando podem os homens amar, ou seja, imperfeitamente”.
Lido nessa chave, o trabalho de Bruckner é um belo trabalho.

In: Revista Cult


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