Freud e a arte
João A. Frayze-Pereira
“Não sou um
conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo (…). Sou incapaz de apreciar
corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte (…).
Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito,
especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura.
Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à
minha maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não
consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter
qualquer prazer.” É com tais palavras que Freud (1914) se dirige aos seus
leitores, tentando assegurar indulgência para o resultado de suas incursões no
campo das artes. Na posição de espectador, confessa seus limites e suas
afinidades estéticas, sugerindo uma diferença de estatuto entre as artes que
constituem os pólos de referência da Psicanálise – literatura e artes plásticas.
Tragédia e pintura
Nascida entre a medicina
e a literatura, a Psicanálise tem lugar garantido no campo da construção ficcional,
encontrando na tragédia uma chave para o trabalho de interpretação, uma vez que
ela já oferece uma representação privilegiada do que é posto em jogo em uma
Psicanálise: a relação do desejo com a castração (Lyotard). É diferente a
situação da pintura. No pensamento de Freud, a questão principal é a seguinte:
a tela, assim como uma cena onírica, representa um objeto ou uma situação
ausentes que, censurados, só se dão a ver por meio de seus representantes
simbólicos.
Como o sonho, o objeto
plástico é pensado segundo a função de representação alucinatória e de
ludíbrio. Aproximar-se desse objeto com palavras que permitem a apreensão de
seu sentido significa dissipá-lo, assim como a conversão da imagem onírica em
discurso conduz a significação para o espaço da racionalidade, rasgando o véu
das representações sob o qual essa significação se ocultava. O objeto plástico,
enquanto construção muda e visível, situa-se no espaço de realização imaginária
do desejo. E é nisto que reside a função da arte, conforme aparece no ensaio
Escritores Criativos e Devaneio (1908), quando Freud distingue dois componentes
do prazer estético: um prazer propriamente libidinal que provém do conteúdo da
obra à medida que esta nos permite realizar nosso desejo (o que fazemos por identificação
com o personagem ou com algum elemento do assunto tratado na obra) e um prazer
proporcionado pela forma ou posição da obra que se oferece à percepção não como
um objeto real, mas como uma espécie de brinquedo, de objeto intermediário, a
propósito do qual são permitidos pensamentos e condutas com os quais o
espectador pode se deleitar sem auto-acusações nem vergonha.
Essa função de desvio com
relação à realidade e à censura é uma característica das obras de arte. E,
considerando que o interesse de Freud pela arte relaciona-se à leitura dos
significados reprimidos e inconscientes, o trabalho artístico é entendido como
uma atividade de expressão sublimada de desejos proibidos. E o artista, nessa
medida, é concebido como um ser talentoso o bastante para transformar os
impulsos primitivos, sexuais e agressivos, em formas simbólicas, isto é,
culturais. Como os sonhos e os jogos de linguagem, o trabalho artístico facilita
a expressão, o reconhecimento e a elaboração de sentimentos reprimidos, tanto
para os artistas quanto para os espectadores que, por sua vez,
compartilham com os primeiros a mesma insatisfação com as renúncias exigidas
pela realidade e, por intermédio da obra, a experiência estética. Assim, o
vínculo entre psiquismo e arte pode chegar a ser concebido de um modo tão
direto ou imediato que a singularidade da obra é perdida de vista, ao mesmo
tempo em que o psiquismo passa a ser simplesmente ilustrado pela obra.
A partir dessa concepção
de arte, duas são as perspectivas analíticas possíveis: privilegia-se o
conteúdo, isto é, o motivo na pintura, e compreende-se o enquadramento
plástico, conforme a função representativa, como um suporte atrás do qual se
desenvolve uma cena inacessível; ou, então, busca-se, escondido sob o objeto
representado, uma forma supostamente determinante do imaginário do pintor.
Entretanto, através dessas análises, corre-se o risco de identificar efeito
estético e efeito narcótico. Se a forma estética é uma espécie de véu destinado
a subornar as defesas do destinatário, somos obrigados a admitir,
paradoxalmente, que o efeito estético é anestésico (Thévoz).
E, nesse sentido, no tocante à ordem social, tal visão da arte é conservadora.
Psicanálise e arte moderna
Não é um exagero pensar
que tudo o que importa em matéria de pintura, pelo menos após Cézanne
(1839-1906) – ao contrário da facilitação do adormecimento da consciência e da
realização do desejo inconsciente do espectador –, é produzir no suporte uma
espécie de análogo do próprio inconsciente, suscitando inquietude, revolta,
perplexidade, interrogação. Desde o começo do século 20, a situação das obras
parece não mais satisfazer as condições propostas por uma estética derivada de
Freud. E isto porque o sinistro e o vazio descaradamente assaltam as formas.
Se, ao ser comparada à arte clássica, a arte moderna mostra-se diferente é
porque a angústia a perfura, subvertendo a sua função: a obra desublima as
formas culturais, abrindo-as às forças disruptivas. E talvez seja esta uma
razão pela qual Freud suspeitava da arte de seu tempo, contrária às suas
convicções. Porém, se a análise freudiana parece inadequada à pintura é que não
só a pintura diferenciou-se, mas no próprio tempo dos escritos freudianos
(1895-1938), a arte já mudara de maneira e de temática.
Principalmente com as
vanguardas, o espaço pictórico construído no Quattrocento decai e com ele a
função da representação que ocupava o centro da concepção freudiana da arte.
Assim, compreender a arte moderna com a noção de representação e sua correlata
– a sublimação – é ignorar a modernidade das artes. Ora, desde a primeira
década do século 20, a Psicanálise coexiste com o modernismo. As obras de
Klimt, Schiele, Moser e Kokoschka convulsionaram a Viena moderna de Freud,
embora este nunca tenha se referido a tais artistas e nem mesmo a algum outro
seu contemporâneo.
E, no entanto, é possível
visualizar algumas aproximações entre arte moderna e Psicanálise: o fascínio
pela origem e o valor atribuído aos sonhos, às fantasias e à sexualidade; a
sensibilidade à mulher, à criança e ao louco; a reflexão sobre o estranho, a
alteridade e a intersubjetividade. Além disso, os surrealistas inspiraram-se na
Psicanálise para elaborar suas ideias no campo visual e muitos outros
incorporaram termos psicanalíticos em seus próprios discursos críticos como,
por exemplo, repressão, sublimação, fetichismo… E, mesmo que a compreensão da
arte tenha se diferenciado com os chamados pós-freudianos, a tese da leitura
simbólica permanece, como se a obra de arte fosse sempre análoga ao sonho a ser
decifrado, como se ela fosse a codificação de um enigma ou a representação de
complexos estados mentais a serem decodificados. Trata-se de um modo de
interpretar a arte que curiosamente pode se aproximar da crítica moderna da
arte.
Psicanálise como perspectiva crítica
Diferentemente da crítica
moderna, entretanto, na vertente inaugurada por Baudelaire que põe o crítico
como intérprete entre público e artistas, a crítica da arte contemporânea não
se aproxima das obras sabendo o que elas são, pois tais obras resistem à
crítica armada de valores estéticos pré-estabelecidos para interpretá-las e
legitimá-las como arte. Nesse sentido, um aspecto importante da crítica
contemporânea é a abertura a outras perspectivas com origens diversas – na
Filosofia, nas ciências humanas e até nas ciências naturais. E muitos dos
estudiosos que contribuem para esse campo não se consideram especialistas em
estética, mas, antes, filósofos, antropólogos, teóricos da linguagem e,
evidentemente, psicanalistas. No caso da Psicanálise a questão é
particularmente interessante porque, no século 20, constatamos a emergência de
um sentir definido no âmbito da afetividade e da emoção que não se deixa
reconduzir com facilidade às referências clássicas da estética, desenvolvidas
na passagem do século 18 para o 19. Nessa medida, Freud é considerado um autor
importante pela crítica de arte contemporânea.
Com efeito, considerando
que o discurso psicanalítico não é normativo e que a Psicanálise compatível com
a arte não pode ser “aplicada”, mas implicada – isto é, derivada da arte ou
engastada nela, pois não é uma forma pré-moldada a se aplicar à matéria
exterior, não é um modelo que ajusta abstratamente o objeto artístico às suas
exigências teórico-conceituais –, a Psicanálise reivindicada pelas artes não é método
de investigação da cultura, mas um modo de pensar que busca escapar da
repetição ao infinito daquilo que teoricamente já se sabe. É a esse modo de
pensar inventado por Freud que os analistas são obrigados a se referir, se
pretendem estar fazendo Psicanálise e se pretendem expressar os sentidos de uma
obra – clássica, moderna ou contemporânea.
A obra no lugar do analista
São basicamente dois os
estudos de Freud que abordam as artes plásticas – Leonardo da Vinci e
uma lembrança de sua infância (1910) e Moisés de Michelangelo (1913).
Se, no primeiro, Freud já tentava operar a partir do cruzamento entre dois
pontos de vista, o endopoiético e o exopoiético – isto é, o que considera os
constituintes internos à obra e o que considera os fatores provenientes do
contexto que a sustenta –, na leitura do Moisés, a primeira perspectiva fica
mais clara, aprofundando o campo compreendido pelas estruturas subjetivas do
artista que não se confundem com os dados biográficos do criador. As estruturas
subjetivas não são da ordem dos acontecimentos, mas resultam da transformação
das relações entre exterior e interior. Nesse sentido, o crítico que toma o
partido das estruturas subjetivas não pode excluir de sua pesquisa sua própria
estrutura subjetiva (André Green). E, devido à implicação do sujeito no objeto,
a interpretação será sempre arriscada, pois o intérprete está livre de um lado
exatamente porque está ligado ao outro, podendo acontecer que as descobertas
afetem sua relação com seu próprio inconsciente. E talvez seja este o tributo a
ser pago por esta transgressão epistemológica mediada por um outro – o universo
oculto do artista implicado na obra.
Quando se trabalha com
obras de arte, é preciso reconhecer este risco e aceitá-lo. No entanto, não é
fácil manter-se aberto à alteridade que nos interroga, uma vez que as obras
estão sempre a exigir de nós criação para delas termos experiência. É uma
experiência propriamente estética que Freud elabora na relação com a peça de
Michelangelo. Livre de todo jogo de projeções teórico-conceituais, Freud se
deixa guiar pela obra ao analisar os seus detalhes plásticos e a sua fortuna
crítica, dispondo-se a uma percepção nova: a obra como momento de uma história
invisível a reconstruir. E, a partir da hermenêutica formada no campo entre seu
olhar e a obra, rompe com a ideologia artística da verdade universal, fixada
anacronicamente. Diferente foi seu trabalho com Leonardo da Vinci. Embora a
estética da criação esteja pressuposta, o artista não é tratado como “divino”, mas
como um homem comum. Nesse caso, não é a estética a questão principal, mas a
temática da vida.
O que Freud faz é apontar
para a troca contínua entre passado e futuro, mostrando que cada vida sonha
enigmas cujo sentido final não está fixado em parte alguma, e exige liberdade
criativa para a fiel retomada de si mesma. É, portanto, um equívoco eleger o
Leonardo como modelo da aproximação psicanalítica das artes plásticas. Ao
contrário, é a análise do Moisés que legitima essa relação, levando o analista
a repensar noções constituídas no campo da interpretação: o contato com a obra
suscita no espectador questões a analisar. Mas, apesar de diferentes, os dois
ensaios contestam o falado conservadorismo de Freud. Ao tratar um gênio
clássico como homem comum, nosso autor reafirma a vocação da Psicanálise para a
subversão do instituído.
E, com o ensaio sobre a
escultura, quase meio século antes de a crítica ser sacudida com a tese de
Duchamp – “são os espectadores que realizam as obras” –, Freud dá seus próprios
passos na linha da estética da recepção. Com isso, a Psicanálise, talvez à
revelia de seu inventor, entra dignamente no campo da crítica contemporânea,
oferecendo às obras um modo de pensar que, como a arte, busca transcender a
familiaridade das formas culturais.
Referências bibliográficas
FREUD, S. Escritores criativos e devaneio
(1908). Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago,1970,
vol. IX, ps. 135-143.
FREUD, S. O Moisés de Michelangelo (1914). op.cit., vol. XIII, ps.
249-280.
FREUD, S. Leonardo Da Vinci e uma lembrança de
sua infância (1910).
op.cit., vol. XI, ps. 55-124.
GREEN, A. Revelações do inacabado.
Rio de Janeiro, Imago Ed. Ltda, 1994.
LYOTARD, J.-F. Freud selon Cézanne. Des dispositifs
pulsionnels. Paris, Christian Bourgois,1980, ps.67-88.
THÉVOZ, M. Art, folie, graffiti,LSD,etc.
Suisse, Editions de l’Aire, s/d.
João A. Frayze-Pereira
é professor, livre docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP). Psicanalista do Instituto de Psicanálise da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Membro da
Association Internationale des Critiques d’Art (AICA). Publicou, entre outros, Olho d’Água. Arte e Loucura em Exposição (Escuta / Fapesp, 1995).
Association Internationale des Critiques d’Art (AICA). Publicou, entre outros, Olho d’Água. Arte e Loucura em Exposição (Escuta / Fapesp, 1995).
Fonte: Revista Cult - online
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