LAÇOS
E DESENLACES NA CONTEMPORANEIDADE
Joel Birman
Estrutura familiar e
formas de subjetivação
A
intenção primordial deste ensaio é a de procurar tecer algumas articulações
possíveis entre certas características psíquicas, que se evidenciam nas
subjetividades contemporâneas, com as transformações apresentadas pela
estrutura familiar na atualidade. Se estas transformações foram fundamentais,
revirando a família e as formas de conjugalidade de ponta-cabeça, sem dúvida, é
preciso que se afirme e se reconheça isso logo de início. Desta maneira, é
necessário delinear as mudanças ocorridas no campo da família hoje, sem as
quais a leitura das especificidades psíquicas a que me referi acima e que se
disseminam na atualidade perde não apenas qualquer densidade, mas também
qualquer significação. Este é o meu ponto de partida aqui e a minha aposta
metodológica fundamental ao longo deste ensaio.
Não
se pode perder de vista, no que concerne a isso, aliás, que certas modalidades
de experiência subjetiva, descritas pelo discurso psicanalítico desde o
percurso freudiano inaugural, assim como as formas de dor e de sofrimento que
lhes são correlatas, têm uma relação crucial com a estrutura moderna da
família, como ainda veremos aqui posteriormente. O discurso freudiano reconhece
a legitimidade teórica deste enunciado e suas teses são inseparáveis de um
certo modelo de família.
Com
efeito, no seu ensaio de 1908, intitulado “A moral sexual ‘civilizada’ e a
doença nervosa dos tempos modernos”, Freud realizou uma brilhante genealogia da
civilidade ocidental e sua inflexão decisiva na modernidade, destacando os
efeitos catastróficos produzidos nas individualidades pelo imperativo então
instituído da moral monogâmica (Freud, 1908/ 1973a). Com isso, a inserção do
erotismo no campo da família monogâmica produziu as ditas “doenças nervosas” na
modernidade que, ao lado da agressividade, da violência e da criminalidade que
disso também seriam decorrentes, constituíram aquilo que Freud denominou
malestar no final dos
anos 20 (Freud, 1930). A impossibilidade de circulação e de expressão da
sexualidade perverso-polimorfa, no campo desta estrutura de família, teria
então provocado múltiplos efeitos nefastos sobre o psiquismo (Freud, 1908/
1973a).
Portanto,
para evidenciar as linhas de força que se esboçam nas ditas transformações da
atualidade, é preciso descrever a estrutura familiar na sua complexidade social
e histórica, destacando os processos político e econômico que nela se
condensam. Para isso, é preciso diferenciar devidamente as estruturas da
família na modernidade e na atualidade, para que as linhas de força e as
valências presentes na construção subjetiva possam ser bem evidenciadas. Esta
leitura contrastiva é fundamental para a genealogia que me proponho a realizar
aqui das formas de subjetivação (Foucault, 1976), nestes diferentes contextos e
tempos históricos.
Esta
modalidade teórica de leitura aqui proposta se justifica em decorrência das
mudanças psíquicas evidenciadas na atualidade, pelas quais uma transformação
significativa se mostra patente. Esta transformação se inscreve então no
registro eminentemente clínico, onde uma mudança no campo da demanda se torna
evidente.
Assim,
as neuroses clássicas se tornam hoje cada vez mais rarefeitas na demanda de cuidados,
à medida que a conflitualidade psíquica se dilui de forma progressiva e
significativa. A conflitualidade interior é cada vez mais substituída pelos
embates que se estabelecem entre os indivíduos e destes com as instâncias
exteriores, no campo social e interpessoal. Em decorrência disso, as
performances e a apresentação das imagens de si de cada um se superpõem cada
vez mais à interlocução e ao discurso entre os indivíduos.
Consequentemente, a
agressividade e a violência se disseminam como um rastilho explosivo, de
maneira que a irritabilidade crescente toma totalmente aqueles de fio a pavio.
Por isso mesmo, o corpo se transformou num lugar crucial onde o mal-estar se
enuncia como queixa, pelo qual o indivíduo indica de maneira ostensiva que algo
não está bem com ele. A sensibilidade excessiva dos indivíduos em relação à
auto-imagem é transbordante, de forma que a depressão passa a dominar a cena
contemporânea, assumindo o lugar privilegiado que era ocupado anteriormente
pela angústia.
Não
pretendo retomar esta descrição no presente ensaio, já que foi por mim
desenvolvida em outros contextos, a que remeto o leitor (Birman, 2006a; 2006b).
Porém, é evidente que esta problemática se relaciona com o que está em pauta no
presente ensaio, no qual vou permanecer especificamente na relação entre estas
mudanças psíquicas e a nova configuração da ordem familiar.
De
qualquer maneira, a pertinência teórica desta problemática para a psicanálise é
que as novas modalidades de subjetivação colocam em questão o dispositivo
clínico da cura-tipo, configurado pelo discurso freudiano, como se evidencia
claramente nas publicações psicanalíticas dos últimos anos. Estaria justamente
aqui a atualidade desta problemática eminentemente contemporânea.
II. Da família extensa
à família nuclear
A
família moderna se iniciou na passagem do século XVIII para o século XIX,
identificando-se assim com o incremento do poder social assumido pela burguesia
na tradição ocidental. Daí por que essa configuração de família foi denominada
seja nuclear seja burguesa, indicando então com isso a sua ruptura com a
família pré-moderna.
Quais
foram as mudanças cruciais que então ocorreram? A família pré-moderna foi
denominada extensa pelos historiadores e cientistas sociais. O que isso quer
dizer, afinal de contas? Nada mais nada menos que conviviam no mesmo espaço
diferentes gerações, além do casal parental, acompanhado dos filhos e dos
agregados. A autoridade do pai era quase absoluta e incontestável, como a
figura do rei no espaço público, aliás, condensando então o pater potestas
(Ariès & Chartier, 1991) o poder soberano que estava aqui no seu auge
(Foucault, 1974). A figura da mulher seria aqui um mero apêndice nesta
estrutura, corpo que se presta para a mera reprodução da prole, não obstante
certos avanços face à mulher realizados pelo Cristianismo.
Ao
longo do século XVIII algumas transformações importantes começaram a se
evidenciar, no sentido da constituição de espaços de privacidade no campo da
família. Assim, os pais começaram a possuir um espaço privado no interior da
casa, no qual a intimidade seria preservada. Os filhos, que viviam
anteriormente numa misturada promíscua com os pais, passam a ter também um
quarto privado. Na dependência dos recursos econômicos da família, os meninos e
as meninas seriam também separados em espaços distintos, para impedir qualquer
promiscuidade sexual entre aqueles. As relações sexuais entre os pais, enfim,
passaram a acontecer no espaço exclusivo da intimidade do casal, inscrevendo-se
então nos registros do secreto e do segredo (Ariès, 1973).
Este
conjunto de transformações convergiu para a constituição da família nuclear, na
qual se inseriam agora tão somente as figuras dos pais e dos filhos. O poder
paterno foi então relativizado, mantendo-se ainda no espaço privado; mas tendo
no espaço público os seus signos mais ostensivos. Porém, a figura do pai foi
permanentemente evocada e aludida pela figura da mãe, quando a criança
ultrapassava os limites esperados e a possibilidade do castigo se fazia
presente. Seria o pai então o agente da punição face à falta da criança,
evocada que era permanentemente pela mãe nestas situações de transgressão. O
discurso freudiano alude a isso o tempo todo, de maneira literal, referindo-se
assim ao castigo e à castração.
Neste
contexto, a figura da mulher foi reduzida à condição de mãe, de forma que a
gestão do espaço privado da família ficou inteira ao seu encargo. Estava aqui
incluída não apenas a administração doméstica da casa, mas também a gestão da
saúde e da educação das crianças. Vale dizer, a figura da mulher-mãe se
incumbia do espaço privado da família e das bordas dessa, nas suas articulações
com as instituições médica e pedagógica. É evidente que ocorreu aqui um
incremento do poder social da mulher, enquanto mãe, que se contrapunha ao poder
paterno. No entanto, a relação entre estes poderes era ainda assimétrica,
pendendo para o pólo do pai. De que maneira interpretar estas transformações
radicais, num sentido mais abrangente?
III. Biopolítica
Para
compreender devidamente essas mudanças é preciso inscrevê-las no campo da
biopolítica, que seria constituinte da modernidade ocidental. Pela mediação da
biopolítica ocorreu uma medicalização do espaço social, pela qual a medicina
passou a regular os corpos no registro individual e coletivo. Pretendia-se
assim engendrar a qualidade de vida da população (Foucault, 1976), como signo
maior da riqueza das nações.
Foi
assim que a população se transformou em objeto e alvo do poder, o que não
ocorria anteriormente. O biopoder foi então uma das modalidades específicas
assumidas pelo poder neste contexto. Com isso, uma outra forma de história foi
também engendrada, denominada biohistória, mediante a qual a produção da
espécie passou também a se inscrever nos cálculos do poder. A categoria de corpo-espécie
foi então enunciada, com os seus dispositivos e discursos, à medida que a
reprodução sexual e a regulação das genealogias passaram a ser também
imperativos do poder, em nome sempre da produção de riqueza (Foucault, 1976)
Em
decorrência disso, a demografia foi constituída como saber, para regular as
variações e cortes da massa populacional. Do nascimento à morte, as diferentes
idades da vida passaram a ser objeto da vigilância biopolítica, submetidas que
foram à quantificação estatística. Ao lado disso, a epidemiologia foi também
constituída como saber, procurando regular quantitativamente a incidência e a
prevalência das enfermidades. A polícia médica se constituiu na segunda metade
do século XVIII, inicialmente na Alemanha e se disseminando em seguida para os
demais países europeus, visando esquadrinhar as cidades e o campo, nas suas
relações com a sujeira e a limpeza, isto é, com as diversas fontes de saúde e
de doença. A circulação do ar passou a ser objeto de controle médico estrito,
de maneira que as edificações passaram a ser programadas de acordo com a
produção das impurezas. Enfim, a limpeza urbana foi instituída como projeto do
controle das doenças e de prevenção da saúde das populações.
Estamos
lançados assim no campo da higiene social, que dominou o processo de
medicalização ao longo do século XIX. O espaço social foi então meticulosamente
esquadrinhado, de forma que as categorias do normal, do anormal e do patológico
passaram a definir as ações normativas dos dispositivos biopolíticos (Foucault,
1963). A periculosidade social se enunciou como uma problemática crucial neste
contexto, de maneira que o crime e a loucura foram inscritos neste projeto de
normalização infinita do espaço social (Foucault, 1997; 1999). Enfim, as
classes perigosas passaram a ser um dos alvos fundamentais da regulação
biopolítica. É preciso indicar agora como este dispositivo da biopolítica
incidiu sobre a ordem familiar, não apenas marcando os seus personagens e suas
práticas, mas também engendrando novas formas de subjetivação.
IV. A biopolítica no
discurso freudiano
Nesta
perspectiva, se a promoção da saúde era fundamental a mulher-mãe deveria ser
saudável, sendo condensada nela a figura da mãe-higiênica. Assim, para
constituir uma prole saudável exames pré-nupciais foram progressivamente
instituídos, para impedir desta maneira a conjunção de anomalias com o futuro
marido. Ao lado disso, as enfermidades genitais femininas deveriam ser
devidamente controladas, assim como a gesta- ção e o parto, em nome da qualidade
de vida da prole. Daí por que a ginecologia e a obstetrícia tenham sido
constituídas neste contexto histórico (Birman, 2001).
No
que concerne à figura do homem, como pai que seria de uma prole saudável,
necessário foi o controle social sistemático da prostituição pela medicina,
para impedir os efeitos nefastos das doenças venéreas. Com efeito, se os homens
poderiam dispor de uma ampla e complexa rede de bordéis, ao longo dos séculos
XIX e XX, as prostitutas deveriam ser submetidas a exames regulares, para que
fosse constatada a inexistência do “mal” venéreo como condição primordial do
exercício profissional. Os atestados médicos eram então conferidos a estas
mulheres, como garantia de que não transmitiriam doenças aos homens e à sua
prole (Birman, 2001).
No
que tange à prole, a discriminação das idades da vida foi então delineada. Os
níveis de maturidade intelectual e afetivo foram assim esboçados, numa relação
entre os potenciais evolutivos e involutivos daqueles momentos da vida. A
hierarquia presente no processo escolar e nas técnicas pedagógicas correlatas
se inscrevia neste modelo psicobiológico da vida, ao mesmo tempo evolutivo e
desenvolvimentista. A infância, a adolescência, a idade adulta e a velhice
foram assim destacadas nas suas especificidades biológicas e morais.
Sabe-se
que o que denominamos infância e adolescência foi uma invenção marcante do
Ocidente, que ocorreu apenas na passagem do século XVIII para o século XIX (Ariès,
2003). Isso porque a produção da qualidade de vida da população dependia agora
de um investimento massivo nestas idades da vida, nos registros da saúde e da
educação. O Capital econômico e simbólico das nações estaria aqui então
condensado. A qualificação vital dos adultos, enfim, estaria na dependência
estrita da qualificação dos jovens. Em decorrência disso, a pediatria e a
puericultura como especialidades médicas foram constituídas neste contexto
histórico. Ao lado disso, a universalização do ensino foi também instituída,
para constituir uma população bem-educada, e que não ficasse restrita às elites
e à aristocracia como no Antigo Regime. A totalidade da população passou a ir à
escola desde então, sendo isso transformado num preceito constitucional das
sociedades democrática e republicana na modernidade.
Quais
foram os efeitos de subjetivação desta problemática? Antes de mais nada, a
figura da mulher-mãe era o objeto de uma experiência sacrificial em nome do
investimento dos filhos. A libido feminina se condensava na gestão da ordem
familiar, nas conjunções dessa com as instituições médica e escolar. Os filhos
consumiam toda a libido feminina, considerando-se aqui inicialmente o
engendramento daqueles e os seus cuidados posteriores. A figura do homem-pai
ficava a salvo disso, protegido que era pela sua inserção no espaço público.
Por isso mesmo, o discurso freudiano pôde enunciar, em “A moral sexual
´civilizada´ e a doença nervosa dos tempos modernos”, que as mulheres pagaram
um preço muito maior pelo projeto da civilização do que os homens (Freud,
1908/1973a). É evidente, repito, que Freud se refere aqui à modernidade, bem
entendido.
Este
sacrifício feminino se evidenciava na
representação das mulheres nos discursos psiquiátrico e psicanalítico. Assim, a
figura da mulher era enunciada pela sua condição de ser nervosa inicial mente e de ser histérica em seguida,
no discurso psiquiátrico (Foucault, 2003). Com a psicanálise o nervosismo e a
histeria foram interpretados numa leitura libidinal, de forma que a
insatisfação feminina estava sempre em causa. Esta insatisfação se redobrou
numa leitura do masoquismo feminino, marca por excelência que seria da dita
experiência sacrificial. Posteriormente, o masoquismo sacrificial assumiu
francamente a forma da melancolia, como se pode depreender dos ensaios
freudianos sobre a sexualidade feminina (Freud, 1925/1973c; 1931/ 1973d;
1932/1936).
Aonde
isso nos conduz, afinal das contas? O masoquismo sacrificial conduziria as
mulheres a um total depauperamento de si, no qual aquelas perderiam qualquer
viço e brilho. O discurso freudiano nos mostrou isso com precisão pela figura
exemplar da mãe de Dora, pois esta não poderia desta maneira escolhê-la como
objeto de identificação, tendo que se servir para tal da Sra. K, objeto do
desejo do pai de Dora (Freud, 1905/1975). A ruptura entre as figuras da mãe e
da mulher, destacada por Freud na leitura do imaginário infantil, seria então a
resultante deste processo histórico e biopolítico, no qual a figura da mulher
foi reduzida à figura da mãe, com todos os desdobramentos que isso evidentemente
implica.
O
discurso freudiano retomou esta mesma problemática no ensaio sobre a jovem
homossexual, em 1919 (Freud, 1914/ 1933). Decepcionada com a figura da mãe,
pelo novo filho, a jovem se distancia daquela e transforma uma outra mulher em
objeto de desejo e de identificação (Freud, 1914/1973b), que não era possível
com a figura materna. Em 1917, num comentário inserido no ensaio inicial sobre
Dora, Freud nos disse que o laço homossexual das jovens mulheres se inscrevia
nesta mesma problemática (Freud, 1914/1973b), qual seja, pelo laço com uma
outra mulher a jovem buscava uma identificação com o feminino, que não se
encontrava na figura da mãe em função de sua impossibilidade. Vale dizer, as
jovens se voltariam e se dirigiam para outras mulheres para descobrir o que é
ser uma mulher, uma vez que, com a figura da mãe depauperada e esvaziada da
potência libidinal, isso não seria possível.
A
contrapartida disso, no registro do masculino, se evidencia no discurso
freudiano sobre a fantasia dos meninos, permeada que seria essa pela oposição
entre a maternidade e o erotismo. Com efeito, a figura da mãe-santa não poderia
ser marcada pelo erotismo, pois este a desqualificaria efetivamente como puta.
Daí a decepção e o nojo dos meninos, com a figura materna, ao descobrir nessa a
presença do erotismo (Freud, 1905/1962). Não obstante o fato de nesta leitura
de Freud este fantasma sexual masculino ser considerado universal, parece-me, que
ele se inscreve no campo historicamente delineado pela biopolítica. Isso porque
se a mãe representa o sacrifício libidinal face à devoção da prole, esse
sacrifício se faria às custas do seu erotismo.
Portanto,
aquilo que aparece no fantasma da menina no registro da identificação se
enuncia no fantasma do menino no registro do objeto do desejo. No entanto, o
que está em pauta nestas diferentes formas de subjetivação seria a oposição das
figuras da mãe e da mulher constituídas no campo da biopolítica, no qual a
segunda foi sacrificada em nome da primeira.
Em
decorrência deste sacrifício libidinal materno, os filhos acabavam por contrair
uma dívida com a figura da mãe. Isso implicava cobranças e culpabilizações
desta com aqueles pela vida toda, mas que se incrementavam bastante com a saída
dos filhos da casa dos pais. O mesmo não ocorria na relação dos filhos com a
figura do pai, justamente porque este não era destituído de sua potência
libidinal na experiência familiar.
Porém,
a totalidade deste processo de subjetivação se condensa na célebre passagem
enunciada pelo discurso freudiano em 1914, em “Introdução ao narcisismo”, de
que para os pais os filhos ocupam a posição de “sua majestade” (Freud,
1914/1973b). Enquanto ocupam a posição fantasmática de “sua majestade o bebê”,
pelo massivo investimento libidinal realizado pelas figuras parentais, os
filhos iriam idealmente realizar tudo aquilo que estes não puderam empreender
na existência, justamente porque se sacrificaram pelos filhos no campo
biopolítico da família moderna. Com efeito, enquanto condensação maior do
Capital econômico e simbólico da nação, a criança foi alçada à condição de
soberana, pois a qualidade de vida da população, como signo maior que seria da
riqueza do Estado, dependeria deste lugar onipotente conferido ao infante. Foi
apenas neste contexto histórico, marcado que foi pela biopolítica, enfim, que a
criança foi transformada no símbolo do futuro propriamente dito, que passou a
colorir e encantar os nossos fantasmas sobre o infantil e a criança.
Podemos
reconhecer assim como um conjunto de enunciados fundamentais do discurso
freudiano se inscreveu no horizonte histórico delineado pelo biopoder, que
configurou uma modalidade específica de família, de laços conjugais e de laços
entre pais e filhos, que foram cruciais para a constituição de certas formas de
subjetivação na modernidade.
A
indagação que se coloca agora é a seguinte: o que ocorre na atualidade, no que
concerne a isso? É o que veremos em seguida.
V. Desejo e reprodução
Nos
anos 50 e 60, do século XX, foi desencadeado um processo radical de
transformação da estrutura familiar moderna, que perdeu alguns de seus eixos
fundamentais, como indicamos acima. O movimento feminista foi o seu
desencadeador, à medida que as mulheres passaram a pleitear em outro lugar e
uma outra posição social, pois demandavam a igualdade das condições com os
homens. Pretendiam assim dispor das mesmas oportunidades sociais e de reconhecimento
simbólico, buscando então se inserir no mercado de trabalho.
Este
movimento teve a sua condição concreta de possibilidade, no entanto, na
invenção de procedimentos anticoncepcionais seguros. Desde então estes
procedimentos foram se multiplicando e se aprimorando do ponto de vista
técnico, de forma que a reprodução sexual pudesse ser bem controlada, pelas
mulheres e pelos homens.
Se
o controle de natalidade era já realizado desde o século XIX, por meios e
instrumentos biopolíticos que pretendiam produzir a população bem qualificada,
não obstante a oposição sistemática da Igreja Católica, os seus procedimentos
eram arcaicos e bastante incertos. Se a biopolítica enunciava, com Malthus, que
enquanto a população crescia em progressão geométrica as fontes de alimentação
cresciam em progressão aritmética, necessário seria restringir o tamanho da
população para evitar a catástrofe da escassez e da precariedade alimentares.
Ao lado disso, a demografia constatava, desde o final do século XVIII, que
ocorria uma baixa da taxa de mortalidade e que a de natalidade se incrementava,
invertendo então, pela primeira vez no Ocidente, esta relação. Com isso, o
terror do fim da sociedade, que perseguiu a nossa tradição desde sempre, pôde
ser finalmente apaziguado, pois a reprodução biológica sempre esteve atrelada à
reprodução social. Por isso mesmo, as proles foram bastante reduzidas se
comparadas às sociedades tradicionais e pré-modernas, até mesmo para que o
investimento na qualidade de vida da população pudesse efetivamente se fazer
com uma prole reduzida.
Não
obstante tudo isso, as gestações eram imprevisíveis e no limite incontroláveis,
de maneira que as mulheres ficavam à mercê de suas proles, que ocupavam quase
todo o seu tempo e nada mais lhes restava para que pudessem investir em
qualquer outra atividade. Portanto, o registro do desejo ficava regulado pelo
registro da reprodução biológica, em nome sempre da reprodução social.
Contudo,
com a invenção de meios anticoncepcionais seguros e múltiplos, as mulheres
puderam separar finalmente os registros do desejo e da reprodução biológica,
podendo então definir quando ter filhos e quantos filhos queriam ter. Com isso,
a liberdade feminina se instituiu em larga escala, podendo ser mulher e mãe ao
mesmo tempo, pois não estavam mais assujeitadas ao determinismo dos ciclos
hormonais que sempre aprisionaram os seus corpos. Como se sabe, isso provocou
uma importante revolução dos nossos costumes, provocando o exercício amplo,
geral e irrestrito do desejo na nossa tradição.
Assim,
as mulheres passaram a se capacitar intelectualmente para se inserir no mercado
de trabalho, em condição de igualdade com os homens. Foram então para a
Universidade, que anteriormente ficava restrita aos homens, não obstante as
raras exceções que também ocorreram. Passaram então a priorizar mais as suas
carreiras, colocando-as numa mesma posição que o casamento. Com isso, este
passou a se realizar mais tarde na existência das mulheres, pois essas queriam
constituir uma experiência importante, que as consolidasse no campo da
profissão, antes de se lançarem na aventura da maternidade.
Além
disso, como o ideal de constituição da família e da prole como seu correlato
não ficava mais de pé, como no século XIX e até os anos 50 do século XX, pois
as mulheres queriam se realizar como singularidades e não apenas como mães, as
separações também se disseminaram. Com efeito, o laço conjugal entre um homem e
uma mulher, assim como os laços homossexuais em seguida, somente seria possível
de se produzir e de se manter caso os parceiros pudessem manter a sua condição
desejante na conjugalidade. Caso contrário, cada qual saía em busca de outras
relações, para articular a demanda do desejo na relação conjugal. Por condição
desejante na conjugalidade é preciso entender aqui não apenas o exercício
prazeroso do erotismo entre os parceiros, mas também a possibilidade que cada
um ofereça ao outro para a expansão de sua potência de ser e de existir. Os
impasses conjugais poderiam se constituir nestes dois registros do desejo,
tornando assim possível ou impossível a continuidade dos laços conjugais.
VI. Nova ordem
familiar
Constituiu-se
assim uma outra configuração da ordem familiar, bastante diferente da família
nuclear moderna. Passou a se tornar comum que cada um dos parceiros tivesse já
uma prole anterior e que estas proles fossem conjugadas na nova cena conjugal,
independentemente de a nova relação possibilitar outros filhos. As crianças, em
contrapartida, passaram a se inscrever em dois cenários familiares, o que foi
constituído por cada uma das figuras parentais.
Ao lado disso, as famílias monoparentais se
incrementaram progressivamente, em escala internacional, de forma que os filhos
passaram a viver apenas com um dos pais. Além disso, a extensão da prole se
restringiu mais ainda, não sendo rara a existência de uma só criança numa
família. A diminuição da potência reprodutiva nos países europeus se
transformou num padrão demográfico ao mesmo tempo importante e apavorante para
os Estados atuais, que temem pelo seu futuro, pelo incremento da imigração dos
países pobres.
Tudo
isso coloca em cena as crianças e os jovens, que foram impactados de maneira
radical por tais transformações. As modalidades da socialização familiar e das
formas de subjetivação foram subvertidas, em relação à família nuclear moderna.
Assim,
as mulheres saíram de casa para ir em busca de um projeto identitário e
singularizante, mas, em contrapartida, os homens não voltaram para compensar e
equilibrar a ausência materna. Com isso, as crianças passaram a frequentar
desde muito cedo as creches e as escolas maternais, que passaram a suprir a
ausência das figuras parentais. Com o crescimento das crianças a ausência
destas se fazia ainda presente, de maneira que os empregados passaram a suprir
tais ausências, quando os recursos financeiros possibilitaram isso, ou o
excesso de atividades programadas.
Neste
contexto, o espaço do jogo infantil foi evidentemente restringido, tendo na
performance e na socialização compartilhada as suas contrapartidas. Parece-me
que a fantasmatização das crianças foi aqui atingida de maneira frontal, assim
como aquilo que é o seu correlato, qual seja, a potencialidade de simbolização
e de articulação linguageira.
Algumas
mães passaram a realizar a dupla jornada de trabalho neste contexto, para
suprir as suas ausências. Com isso, se desgastam excessivamente, de maneira a
perturbar as suas relações tanto com o parceiro quanto com os filhos.
Tudo
isso acabou por produzir uma crise importante na relação da família com a
escola, que está longe de ser resolvida. Assim, na ausência relativa das
figuras parentais essas passaram a exigir que a escola realizasse não apenas a
socialização primária mas também a secundária (Bourdieu & Passeran, 1970),
isto é, a constituição do ethos primário e não apenas o ensino como foi
instituído com a escola no século XIX. As escolas relutam em fazer isso, pois
modificaria inteiramente a sua estrutura, e a questão permanece em aberto. As
creches e as escolas maternais entraram já em parte na transmissão da
socialização primária, que outrora era atribuição exclusiva da família, na
ausência relativa dos pais nos primeiros anos de vida da criança. Parece-me, no
entanto, que um novo pacto social entre a família e a escola será instituído no
futuro, considerando as transformações que estão em curso.
VII. Formação de
subjetivação
Este
conjunto de transformações incidiu na economia do narcisismo das crianças
inicialmente e dos adolescentes em seguida, produzindo novas modalidades de
subjetivação e de transtornos psíquicos, que passaram a caracterizar a
subjetividade na contemporaneidade.
Antes de mais nada, o autismo. Esta forma de
perturbação psíquica foi apenas descrita nos anos 30, do século XX, pelo
psiquiatra norte-americano Leo Kanner. Desde então, o seu crescimento tem sido
vertiginoso, em escala internacional, de maneira a se destacar como uma
modalidade específica de perturbação psíquica, da contemporaneidade. A sua
emergência e ascensão irrefutável se articulam com as transformações familiares
a que me referi acima. No que concerne a isso, com efeito, a ausência relativa
das figuras parentais tais no campo familiar e o anonimato no cuidados das
crianças e sobretudo dos infantes (babás, creches, escolas maternais) têm uma
relação direta com a expansão do autismo. O desinvestimento narcísico daqueles
seria aqui a condição concreta de possibilidade desta modalidade de dor
psíquica.
Em
seguida, as perturbações psíquicas se condensam cada vez mais nos registros do
corpo, da ação e das intensidades (Birman, 2006b), nos quais a passagem ao ato
passa a dominar a regulação psíquica, com descargas sobre o corpo e a ação. Se
isso evidencia a pobreza dos processos de simbolização como afirmei acima, por
um lado, denota ainda a perda do investimento narcísico, pelo outro, com a
extensão daquilo que André Green denominava narcisismo de morte. Com efeito, da
síndrome do pânico às perturbações psicossomáticas, passando pelo incremento da
irritabilidade, da agressividade e da violência, e chegando às depressões, o
que está sempre em pauta é a desnarcisação e a fragilização dos processos de
simbolização (Birman, 2006b).
Por
isso mesmo, o que se passou a denominar fronteiriços
e estados-limite se incrementou nas estatísticas epidemiológicas,
constituindo entidades novas nas nosografias psiquiátrica e psicanalítica. Foi
neste contexto social e teórico, aliás, que Winnicott formulou o conceito de falso si-mesmo e destacou o lugar das
perturbações psíquicas articuladas com o desmame e a desnarcisação (Winnicott,
1975). Ao lado disso, Pontalis pontuou a presença da dita desnarcisação e da
fragilidade simbólica nos ditos estados-limite, nos quais a presença de uma boa
escolaridade e do bom domínio da língua não impediriam a constituição de
sujeitos com frágil potencial da metaforização (Pontalis, 1988).
Com
isso, o que Freud denominava neuroses atuais tende a predominar sobre as
psiconeuroses, numa inversão do que ocorria no final do século XIX e nos
primórdios do discurso freudiano (Freud & Breuer, 1895/1971). Porém, se as
neuroses atuais não são mais facilmente transformáveis em psiconeuroses, isso
se deve seja à narcisação frágil seja à pobreza dos processos de simbolização.
Não
se pode esquecer ainda a disseminação das compulsões
hoje, que como ações falhas dominam o horizonte das perturbações psíquicas.
Com efeito, das drogas à comida, passando ainda por outros objetos, as
compulsões representam na atualidade um contingente importante no campo das
perturbações psíquicas, no qual se pode evidenciar a conjunção de uma
negatividade narcísica com uma fragilidade dos processos de simbolização.
Este
narcisismo de morte se enuncia de forma eloquente nas depressões
contemporâneas, que se destacam cada vez mais como a prima donna das perturbações psíquicas na atualidade. O que se
apresenta aqui é a presença marcante do vazio no centro da experiência
psíquica, de forma que o dito narcisismo de morte se evidencia pela pregnância
assumida pelo masoquismo na
experiência psíquica contemporânea. Seria este o correlato do narcisismo de
morte nesta experiência, indicando assim o domínio da pulsão de morte sobre a
pulsão de vida no aparelho psíquico.
VIII. Estilo adolescente
de existência e a autoridade parental
Porém,
se lançarmos agora este conjunto de transformações em curso num plano mais
abrangente, podemos depreender ainda algumas decorrências cruciais do que
ocorre na contemporaneidade.
Assim,
se todos podem ser desejantes ao mesmo tempo e isso perdurar por toda a vida, a
diferença entre a condição da
adolescência e a que se faz presente no adulto e na velhice deixa de existir.
Com efeito, as fronteiras psíquicas entre a adolescência e os demais momentos
da existência tendem cada vez mais a se esfumaçar e até mesmo se apagar.
Pode-se ser pai, mãe, avó e avô na atualidade sem perder o fulgor da
adolescência, no qual a potência desejante se encontra ainda sempre presente. O
que se impõe como indagação hoje, nesta expansão do estilo adolescente de
existência, é se aquela separação destas idades da vida não foi um artefato
produzido pelo discurso biopolítico dominante nos últimos duzentos anos e se
este agora não tende a se transformar nas suas linhas fundamentais de força.
Uma
das consequências disso é a perda da autoridade
das figuras parentais aos olhos dos filhos, para os quais aquelas figuras se
diferenciam deles cada vez menos, pois exercem um mesmo estilo de existência.
Se este processo se iniciou lentamente nos anos 60, o seu incremento posterior
se acelerou de maneira incrível, mudando completamente os padrões costumeiros
de autoridade parental, na nossa tradição, de forma inequívoca.
Nesta
transformação radical que se opera em face da infância hoje algumas consequências
se avolumam e passam a nortear o nosso projeto de civilidade pós-moderna.
Assim, a ausência e a diminuição flagrante da prole denota um não-desejo de
crianças, na atualidade de nossa tradição, de maneira que um novo fantasma se
constituiu. Este fantasma pode ser enunciado como matemos as crianças. Isso não tem mais o sentido que lhe deu
Leclaire num ensaio brilhante dos anos 80, intitulado “Mata-se uma criança” —
que se fundava no limite a ser conferido à onipotência narcísica do infantil,
para que o sujeito pudesse se constituir, num campo definido pelo discurso da
biopolítica dos séculos XIX e XX —, mas o de não se querer ter mais filhos e
crianças, pois estes perturbam e impedem a nossa possibilidade desejante de
existir. Enfim, as crianças passariam a atrapalhar a nossa liberdade e
mobilidade, de existir e de desejar.
Portanto,
não devemos estranhar que a pedofilia
tenha se transformado em uma de nossas obsessões contemporâneas, pois se nos
empenhamos em matar as crianças como um fantasma fundamental hoje, as crianças
deixam de ser o signo por excelência do futuro, como eram no início do século
XIX, e se transformam no objeto para o gozo imediato dos adultos, no nosso
imaginário contemporâneo.
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