terça-feira, outubro 04, 2016

Questões de Gênero em Psicanálise


Possibilidade de uma ética não individualista da psicanálise

Colette Soler

Resumo: Em sua terceira conferência "Possibilidade de uma ética não individualista da psicanálise", Colette Soler levanta a questão de saber como uma ética não individualista é possível para os falasseres, definidos como unaridades, e também no contexto de um discurso capitalista, que não é o avesso da psicanálise, mas que comporta um homólogo "não há relação social".


Conferência de encerramento do XIV Encontro Nacional da EPFCL – Brasil Belo Horizonte 27/10/2013

Eu parti, ontem, das diferenças das posições éticas e evoquei a ética do discurso psicanalítico. Gostaria de voltar a falar disso para vocês. Depois de ter falado das posições éticas pessoais, vou falar, hoje, da ética psicanalítica, ponto sobre o qual Lacan jamais variou. Essa ética não é individualista. Com o que ele avançou no final do seu ensino, evidentemente, a questão da possibilidade de uma ética não individualista se coloca na medida em que, como vocês sabem, no fundo, Lacan deixou de colocar uma ênfase sobre o sujeito dividido para sublinhar a unaridade (unarité) – é o seu termo – do falasser. Eu formulei isso dizendo: cada sujeito é um nó borromeano, um Um borromeano. Lacan produziu essa famosa fórmula: "Só há os dispersos disparatados". E, no fundo, a ética do bem-dizer da análise produz o Um-dizer.

Como, a partir disso, desenvolver uma ética não individualista?    
          
Evidentemente, a proposição de fazer uma Escola, em Lacan – não apenas uma associação, mas uma Escola – responde a essa preocupação. A gente já poderia responder, antes de mais nada, antes de qualquer consideração, que os discursos que Lacan escreve são quatro tipos de laços sociais e nenhum deles pertence a uma ética individualista. O laço social exclui a ética individualista. É preciso observar que o laço social inclui uma disparidade. Num laço social há sempre dois termos: um que está no lugar do semblante, como vocês sabem, e que comanda o outro. Portanto, não há paridade entre os dois. Hoje em dia amamos a paridade. No mundo capitalista só juramos em nome da paridade. E isso é incompatível com o laço social tal como Lacan o define. É preciso desenvolver o fato de que no laço social, não se trata, simplesmente, de conexões; não são simplesmente relações com os outros, ou com a vizinhança. No capitalismo há muitas conexões, vizinhanças. Isso não faz laço social, no sentido de Lacan, para quem o laço social é uma ordem. Uma ordem que produz uma ordem de gozo. Nesse sentido, uma vez que há laço social nós saímos de uma ética individualista.

Retomo, então, a questão de saber como uma ética não individualista de um laço social pode se manter, em nosso tempo capitalista que destrói laços sociais enquanto multiplica as conexões. Eis, portanto, a questão que eu abordo. Isso leva a me interrogar sobre o real da psicanálise e o real do capitalismo. Eu evocava, ontem, dois tipos de real: o real que se demonstra como impossível e o real que se encontra. Hoje, eu falo de outra coisa: o real tal como ele pode ser situado no discurso capitalista e o real tal como pode ser situado na psicanálise.

Vou partir de uma frase que todos vocês conhecem e que está no texto A Terceira, em que Lacan (1974/2002, p. 51), falando do capitalismo e da psicanálise no capitalismo, diz: "Há um único sintoma social: cada indivíduo é um proletário. Não há nada que faça laço social". Esta frase diz, efetivamente, claramente, aquilo que falta a cada indivíduo. Falta a ele um semblante que faria laço social. E no fundo, quando Lacan profere o Seminário De um discurso que não fosse semblante (LACAN, 1970-71/2009), ele não fala do capitalismo, ele fala dos homens e das mulheres para desenvolver justamente o tema da não-relação sexual entre os homens e as mulheres. Portanto, não há laço social entre homens e mulheres – mulheres enquanto sexuadas, porque, evidentemente, enquanto sujeitos pode haver. Então, quando Lacan diz em A Terceira (LACAN, 1974/2002, p. 51), "Os indivíduos são proletários", isso quer dizer que os corpos individuais são proletários, não estão em laço; os sujeitos podem estar em laço, mas os corpos não.

Seria uma tese... Seria o capitalismo que produz isso ou não? Eu perguntava porque eu acho que não é culpa do capitalismo. A não-relação sexual em Lacan é uma consequência da estrutura de discurso e do fato de que os laços significantes não produzem laços de gozo. Então, a não-relação sexual, no fundo, na conceitualização de Lacan, é um universal. Sempre foi assim. Mas a gente não sabia. A gente não sabia antes do capitalismo. A gente não sabia durante todas as épocas em que os laços sociais comuns eram consistentes. E a gente não sabia por que os discursos ordenavam a relação entre os sexos, entre os homens e as mulheres, especialmente sobre o modelo do laço social desse discurso. Então, tínhamos o mestre e o escravo, um dominador e um dominado, referidos a homem e mulher. Eu o evocava ontem a respeito da metáfora paterna que, como metáfora sexual, não sai dessa configuração.

Sempre se soube que havia problemas do amor, mas sempre se tentou conter esses problemas pela ordem social. Evidentemente Freud, que aparece no final do século XIX, abre o caminho que conduz à mensagem que Lacan produziu – "Não existe relação sexual". Podemos demonstrar que é um dizer de Freud. A fórmula é de Lacan, a tese está implicada em tudo que Freud desenvolveu sobre a sexualidade. Eis aí, portanto, o que o século passado colocou a céu aberto, o real próprio do inconsciente: "Não existe relação sexual". Qual é o real do capitalismo? Eu creio que podemos forjar uma resposta, a partir de todos os desenvolvimentos de Lacan e daqueles que nós mesmos já fizemos. O real do capitalismo, para fazer uma fórmula homóloga, poderia se formular assim: "Não existe laço social". Não existe laço social instaurado pelo capitalismo. E, como sabemos, o capitalismo só instaura laços entre cada indivíduo e a produção do mercado.

No fundo, o capitalismo coloca na realidade a estrutura da fantasia – o laço de cada um, não com o objeto da sua fantasia, mas com os objetos da produção/ consumo. E daí, evidentemente, isso tem como consequência que o capitalismo realiza a solidão do sujeito da ciência. Sem dúvida, foi isso que permitiu a emergência da psicanálise. O capitalismo não é o avesso da psicanálise, ele é uma das condições de sua existência. Condição da aparição de Freud. É porque esse real do capitalismo de que não existe laço social, é porque ele destrói os semblantes que permitiam desconhecê-lo, que pudemos chegar ao "Não existe relação sexual". Então temos duas foraclusões conjugadas: aquela do laço social no capitalismo e a da relação sexual na psicanálise.

É claro que tudo é uma consequência do aparecimento da ciência que condiciona o capitalismo que, por sua vez, condiciona a psicanálise. Não esqueçamos que Lacan observou que é preciso se ocupar do que ele chamava correlação entre uma subversão sexual em escala social com os momentos incipientes da história da ciência. E nós vamos tocar essa correlação. Podemos nos perguntar se a psicanálise não exageraria sobre a má mensagem do capitalismo. Se a gente se volta para esses sujeitos que são instrumentalizados pelo mercado – a gente já declinou muitos afetos próprios ao momento capitalista na civilização: a solidão, a precariedade... e todos esses afetos, creio eu, se enraízam sobre os problemas de identidade produzidos pelo capitalismo. Portanto, é uma questão de saber como a psicanálise responde a isso.

O sentimento de identidade está ligado à estabilidade dos laços sociais porque, quando o laço social é consistente, todos que entram nesse laço social recebem o que eu chamo de marcadores identitários: o lugar que eles ocupam, a profissão, os títulos, a função etc. Então, a estabilidade identitária desse sujeito está ligada à estabilidade dos laços sociais. No mundo capitalista em movimento e em reconfiguração constantes, o sentimento de identidade é, evidentemente, ameaçado, na medida em que os lugares, as profissões, os laços, tudo se torna precário. Até o trabalho é cada vez mais ameaçado de uma mudança imposta.

Poderíamos estudar no mundo contemporâneo a busca de marcadores substitutivos. Como, justamente, na ética individualista do capitalismo, cada um tenta produzir marcadores identitários de sua própria escolha. A tatuagem, por exemplo, é um marcador identitário escolhido que o capitalismo não poderá apagar. Há muitos outros. Tentamos escolher a nossa própria imagem cirurgicamente, por exemplo. Alguém poderia fazer uma pesquisa mais metódica disso. Então, o que acontece é que os fenômenos que até então eram próprios da adolescência se generalizam. A adolescência é um período de espera da fixação identitária. E, por isso, é um período no qual o sujeito busca signos de ligação identitária. A forma de se vestir, as músicas que eles ouvem, todas as práticas próprias aos grupos dos quais eles fazem parte, são buscas de identidade grupal próprias de um período em que a identidade ainda não está assegurada. E na medida em que essas inseguranças identitárias se generalizam, também se generalizam os esforços de identidade grupal.

O que é que a psicanálise faz de tudo isso? Como se coloca a questão da identidade na psicanálise? Vou começar pelo seguinte: a entrada em análise se dá a partir de uma questão de identidade. Aquilo que chamamos de a histerização de entrada, o "Che vuoi?", é uma questão identitária. Qual é a sua identidade de desejo ou de sintoma? Portanto, a entrada se faz por uma suspensão da certeza identitária. E a tese de Lacan sempre foi, do começo ao fim, que o final de análise devia assegurar uma identidade. No começo a fórmula era: a análise conduz a um "Tu és isso", um "Tu és" estático. Esta é uma fórmula de identidade. E no final do seu ensino é a identidade pelo nome do sintoma. Portanto, começamos por um sujeito não identificado para ir em direção a uma identidade singular.

No que diz respeito à identidade sexual, nisso que eu acabo de lembrar, de um sujeito dividido em falta de identidade em direção a um sujeito que tem acesso à sua identidade, nem se falou em sexo – isso vale tanto para homens quanto para mulheres. Se a gente se volta para a questão da identidade sexual, a tese de Lacan foi, durante muito tempo, até 1972, precisamente: "Não há identidade sexual". Há claro, um significante, um semblante, o falo – tanto pode ser escrito em maiúscula quanto em minúscula – mas esse significante não fornece uma identidade sexual. Ao contrário, ele projeta todas as manifestações sexuais, como diz Lacan, ao nível do parecer, logo ao nível do teatro, especificamente da comédia. É verdade que há uma comédia da relação entre os sexos – fazer o homem, fazer a mulher – mesmo no campo homossexual. E isso foi a tese de Lacan durante tantos anos que ele até dizia que o próprio ato sexual, o coito, não dava prova de nenhuma identidade sexual.

Em 1972, ele vai introduzir, evidentemente, algo diferente, algo novo no Aturdito (LACAN, 1972/2003) – não é no Seminário Mais Ainda (LACAN, 1972-73/1985), é no Aturdito, logo antes – com o que nós chamamos agora as fórmulas da sexuação. As fórmulas da sexuação designam duas identidades sexuadas, duas identidades de gozo – a toda-fálica e a não-toda fálica. E com isso, pela primeira vez, Lacan introduziu um fator identitário no nível do real do gozo. A partir daí, então, um novo problema se produziu, para o qual Lacan não está isento de responsabilidade: todo-fálico é homem e não-todo fálico é mulher. Então, não estamos mais no teatro, não estamos mais no semblante, não estamos mais no fazer de conta que se é isso ou aquilo, estaríamos no "ou isso ou aquilo". E o próprio Lacan, quando introduz o seu todo-fálico, ele o introduz de modo a especificar a identidade do lado masculino. E em seguida, do outro lado da sexualidade... Mas logo depois ele se corrigiu – não sei se vocês conseguem seguir suas correções na prática – mas no Mais Ainda (Ibid.), ele se corrigiu dizendo, primeiro, que essa identidade de gozo é independente da anatomia. Ou seja, que há homens que podem se colocar do lado do não-todo e mulheres que podem se colocar do lado do todo. Esta é a tese do Seminário Mais Ainda (Ibid.). E há até mesmo místicos que não estão do lado do não-todo, que estão do lado do todo-fálico.

Portanto, isso complica as coisas. Porque temos uma identidade de gozo que não pode se identificar nem com a anatomia nem com o estado civil. E aí Lacan vai dar mais um passo, dizendo: os seres falantes têm escolha. Os seres sexuados se autorizam por eles mesmos. Esta é uma tese muito mais radical. É realmente uma forma de dizer: "O sexo não é o destino". Freud pôde retomar "A anatomia é o destino", e isso vai muito mais longe porque não somente a anatomia não é o destino, mas há liberdade de escolha. Acho absolutamente incrível, extraordinário, que Lacan tenha dito isso nos anos 1970, e hoje estamos em 2013 e escutamos por toda parte as vozes que dizem "Tenho o direito de escolher meu parceiro, o sexo dele, até mesmo o meu sexo". Então, Lacan realmente não estava atrasado diante do que estava para acontecer no mundo.

Todas as normas que presidiram a organização da relação entre os sexos, a psicanálise, hoje em dia, não pode mais sustentar nenhuma dessas normas, nenhuma... Por isso que eu estava tentando dizer que a metáfora paterna ainda estava numa forma de traçado da norma. Os sujeitos têm escolha, nada a retomar; é isso – essa escolha na psicanálise – é palavra final. Os sujeitos são livres para escolher. A gente sabe que tem muita gente, no mundo, que tenta rever isso, que faz revisões disso, a psicanálise é isso.

Então, finalmente, como vai ser a resposta identitária do final da análise para os sujeitos, para os quais nem mesmo o sexo é prescrito? Vocês conhecem a resposta: a única identidade não precária que se evidencia na psicanálise é a identidade sintoma ou sinthoma (a forma que ficou para Lacan para escrever sintoma a partir doSeminário O Sinthoma [LACAN, 1975-76/2007]). Então, é uma grande reviravolta em relação ao discurso comum, e essa fórmula torna difícil dialogar a psicanálise com o discurso da época, porque a psicanálise, com o ensino, o último ensino de Lacan, o que chamamos de sinthoma, justamente, não é o problema, é a solução, é solução. Agora, o problema geral do "não há relação sexual", o "não há" é compensado pelo "há sintoma" para cada um, então, é um sintoma-solução. O que torna difícil justamente o intercâmbio com outros discursos, nos quais sintoma é um treco que tem que eliminar; enquanto que a psicanálise diz que é a identidade verdadeira. Aí, bom, a gente encontra todos esses termos já conhecidos, cada um tem seu nome próprio, que não é seu patronímico, que é seu sintoma, o qual não tem homônimo; o patronímico tem homônimo, mas o sintoma, não. De forma que, o sentido do sintoma é o verdadeiro DNA do falasser, mas ele não se diagnostica da mesma maneira que o DNA.

Vejam aí, no fundo, a identidade não precária da separação, que não tem nada a ver com uma identificação, como nós já dissemos, e que introduz o problema da ética não individualista. Porque esses falasseres, cada um com sua unaridade sintomática, como eles se articulam no laço social? A questão poderia se colocar em dois níveis, mas tem uma que me interessa aqui. O primeiro nível, que eu não vou desenvolver, é como um analisado se coloca nos laços sociais de sua época, é uma questão. A outra, que é mais importante para a gente, é a da possibilidade de uma Escola na própria psicanálise, porque a Escola é pensada por Lacan como um laço social. É por isso que ele evoca, antes de mais nada, a transferência de trabalho, que faz laços entre uns e os outros. O que é preciso para levar um analisado à Escola? Vou dizer de uma forma bem tola. É preciso que ele tenha sentimento de que o que apreendeu e experimentou em sua análise valeu suficientemente a pena para que outros também possam experimentar. Não se trata de caridade, não tem nada que ver com caridade. É que o que pareceu tão importante, para mim, pode também levar outros a quererem, a desejarem seguir na mesma direção.

Referências
LACAN, J. (1970-71). O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
LACAN, J. (1972). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp.449- 497.
LACAN, J. (1974). A Terceira. In: Cadernos Lacan. Porto Alegre, vol. 2, pp. 39-71, 2002.
LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Tradução: Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

Fonte: Pepsi - Periódicos Eletrônicos em Psicologia


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