quinta-feira, janeiro 19, 2017

Psicanálise e Estética



Sobre as várias noções de estética em Freud

Ines Loureiro


Estética e teoria da arte
Os escritos sobre psicanálise e arte, ou sobre a estética deste ou daquele psicanalista pós-freudiano, não cessam de crescer. Parece um terreno em que as pessoas se sentem espacialmente à vontade para dispensar-se de maiores interrogações sobre os termos com os quais estão trabalhando. Pouco se discute sobre uma pergunta tão simples quanto fundamental para os estudos nesta área: “o que Freud entende por estética?”. Veremos que uma releitura atenta dos textos freudiano pode nos revelar, como de costume, várias e gratas surpresas.

O exame das concepções de estética presentes na obra de Freud mostra-se especialmente profícuo quando se tem em mente uma distinção entre estética e teoria da arte. Segundo as pistas sugeridas pelo filósofo Hubert Damisch, seria possível discernir duas vertentes no conjunto de proposições freudianas – as ideias referentes ao belo (estética) e as concepções referentes à arte (teoria da arte) –, distinção que abriria caminhos para uma série de novas reflexões sobre a teoria psicanalítica e também sobre suas relações com esses campos adjacentes.

Um rápido parêntese para situar a história do termo estética. Ele provém do grego aisthesis (“sensação, sentimento”) e foi reabilitado por Alexander Baumgarten, em 1750, com o intuito de unificar o tratamento dispensado a dois tipos de problemas em voga nos debates filosóficos da Alemanha oitocentista: os relativos à sensibilidade e ao conhecimento sensível, de um lado, e os referentes à esfera da arte, de outro.

Baumgarten ressuscitou o termo grego aisthesis a fim de remediar problemas nas áreas da sensibilidade e da arte, os quais tinham se tornado evidentes com o sistema de Wolff. O racionalismo de Wolff reduzira a sensibilidade à “confusa percepção de uma perfeição racional” e não deixara lugar para o tratamento filosófico da arte. Baumgarten tentou solucionar ambos os problemas ao mesmo tempo, afirmando que o conhecimento científico ou estético tinha sua própria dignidade e contribuía para o conhecimento racional, e que a arte exemplificou esse conhecimento ao oferecer uma imagem sensível da perfeição.
Em Kant, o termo é empregado em duas grandes acepções. Grosso modo, na “Estética transcendental” da Crítica da razão pura (1781), refere-se ao conhecimento sensível, sobretudo às formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo); já na Crítica da faculdade do juízo (1790) amplia-se o alcance do termo, uma vez que os juízos estéticos são aqui considerados como aqueles que “concernem ao belo e ao sublime da natureza ou da arte”.
Mas deixemos de lado as discussões subsequentes sobre a natureza e os limites da estética. De minha parte, subscrevo a posição de Wolfgang Iser, segundo a qual “o estético não possui uma essência própria. Ao contrário, está sempre relacionado a realidades contextuais que governam sua concepção”. A suposta “natureza” da estética identifica-se com a conceitualização de que ela é alvo nos diversos momentos históricos, e cada conceitualização produz certas feições, operações e relações contextuais. A estética teria passado por várias destas configurações a que Iser denomina “entrincheiramentos gerativos”, ao que eu acrescentaria que Freud bem poderia ser tomado como o núcleo de um importante “entrincheiramento gerativo” na história da estética.

Voltemos às proposições de Damisch, autor que insiste na necessidade de diferenciação entre pensamento sobre a arte e pensamento sobre a beleza, demonstrando o quanto ela pode ser proveitosa para uma nova leitura de Freud. 

Em Le jugement de Pâris, ele denuncia a existência de um automatismo grave e corriqueiro, qual seja, a tendência de reduzir estética às belas-artes, “tradição que nos faz sistematicamente ler ‘arte’ lá onde o texto – de Freud, de Kant, mesmo de Platão – diz ‘beleza’, e vice-versa” (Damisch, 1997, p. 15). Ou seja, parece haver um esquecimento generalizado de que a reflexão sobre o belo pode ser autônoma em relação à arte e vice-versa. Aliás, um dos poucos pontos consensuais nas leituras da Crítica da faculdade do juízo é, justamente, a constatação de que Kant não confunde as duas esferas, bem como a primazia que confere ao belo natural em detrimento do artístico. Como veremos, Freud também discrimina claramente os dois domínios.

Entre nós, Benedito Nunes é um dos autores que assinala a distinção:
Assim, na acepção ampla para a qual todas essas correntes confluem, a Estética é tanto filosofia do Belo como filosofia da Arte. Precisamos, no entanto, distinguir entre Estética e Filosofia da Arte. A rigor, o domínio dos fenômenos estéticos não está circunscrito pela Arte, embora encontre nesta a sua manifestação mais adequada (...). Mas, por outro lado, a Arte excede, de muito, os limites das avaliações estéticas. Modo de ação produtiva do homem, ela é fenômeno social e parte da cultura. (Nunes, 1989, p. 15)

Em suma: a linguagem corrente legitima o uso de “estética” como sinônimo de teoria da arte, uso também referendado por inúmeros especialistas (Huisman, 1984; Pareyson, 1989); porém, aqui seguiremos a pista dos estudiosos que enfatizam a diferença entre os dois campos.

E o que tem Freud a ver com isso?
O fato é que, conforme aponta Damisch, pode ser muito instigante assumir e explorar as consequências de tal distinção, no que se refere aos escritos freudianos. Vejamos o porquê.
Como se sabe, a obra de arte é aí concebida conforme o modelo das “formações de compromisso”, o que nos remete de imediato à presença de um conteúdo latente a ser interpretado. As fantasias pessoais do artista criador, os mecanismos de “disfarce” e atenuação destas fantasias, o papel secundário atribuído às características propriamente formais da obra, as frequentes comparações entre o artista e o neurótico (embora a obra, na maior parte das vezes, seja pensada como alternativa ao sintoma), tudo isso dificulta à teoria da arte freudiana dar conta das manifestações artísticas mais contemporâneas, bem como das discussões atuais em história/crítica de arte. Por isso, pretendo em outro trabalho retomar a teoria freudiana da arte a partir de algumas releituras a que foi submetida (principalmente por parte de Ernest Gombrich e Jean-François Lyotard), de modo a retraçar as etapas de uma transição fundamental: a passagem de uma postura em que a obra é tida como “decifrável” e “legível” para outra em que ela é concebida como meramente visível. Mas disto trataremos em outra ocasião.

No momento, eis a questão que se nos coloca: é possível distinguir, em Freud, um pensamento sobre o belo independente de suas teorizações sobre a arte? Se sim, onde nos levaria tal distinção? A meu ver, o mínimo que ganhamos com esse empreendimento seria a possibilidade de divisar na teoria freudiana algo mais do que uma (simples) psicologia da criação.

Em Le jugement de Pâris, Hubert Damisch exercita e demonstra os alcances de seu próprio projeto teórico, algo que ele denomina iconologia analítica: um “discurso de imagens”, que tem como ponto de partida as relações entre a beleza, o visível e o desejo; assume a hipótese do inconsciente e privilegia a questão da figurabilidade (todo pensamento deve aceder, de um modo ou de outro, à visibilidade). Como dizíamos, ele nota que, em Freud, a beleza não se restringe à arte ou à criação. Na lista de métodos para evitar infelicidade, que consta do segundo capítulo de O mal-estar na cultura, por exemplo, arte e beleza ocupam lugares diferentes. Freud apresenta separadamente a satisfação oferecida pelo usufruto da arte e aquela proporcionada pela contemplação do belo, referindo-se então à beleza das formas e dos gestos humanos, dos objetos naturais e das paisagens, das criações artísticas e mesmo científicas. Enfim, esboça-se uma distinção entre o gozo que proporcionam as obras de arte (não necessariamente belas) e o prazer suscitado pela beleza, mesmo quando situada fora do campo da arte.

É isto que autoriza Damisch a delinear dois campos: a) o da arte, da atividade criadora, da satisfação substitutiva que requer como mediação a presença do artista; e b) o do estético, relativo à beleza, que implica uma atividade judicatória acessível a qualquer sujeito, sem a mediação necessária do artista. Com base nesta bifurcação, o autor levanta questões interessantíssimas, dentre as quais eu destacaria a problematização das relações entre beleza e recalcamento; de fato, a mim parece que um ponto decisivo reside neste estatuto de “satisfação substitutiva” associado à arte, ao passo que a beleza não-artística pareceria capaz de acionar um prazer cuja natureza se faz necessário investigar, mas que talvez independa dos conteúdos recalcados e suas transformações.

Caberiam ainda muitas perguntas suscitadas sobretudo pelo belo não-artístico: até que ponto é um atributo “real” do objeto, em que medida é compartilhado socialmente, quais os mecanismos que articulam percepção/juízo do belo e, principalmente, a qualidade do prazer por ele suscitado; afinal, haveria alguma especificidade metapsicológica no prazer estético? (ou, ainda, haveria alguma diferença entre o prazer estético proporcionado pela obra de arte e pela beleza não-artística?). Em relação a esta última questão, Damisch observa que, também em O mal-estar na cultura, os prazeres oferecidos pela arte e pela beleza partilham algo em comum: produzem efeitos semelhantes aos da droga (embriagamento, narcose), metáfora ainda mais sugestiva, porque Freud ressalta que ninguém conhece os mecanismos em jogo na intoxicação química.

Penso que o núcleo organizador das reflexões freudianas sobre a arte e o belo – núcleo de onde provém e para o qual se encaminha grande parte das questões mencionadas até aqui – é o problema da experiência estética. Creio que tudo o que Freud chegou a formular sobre arte e beleza origina-se em uma preocupação com a experiência psíquico-corporal por elas provocada, e não em um interesse abstrato pela beleza ou pela arte em si mesmas. Impossível abordar aqui este problema tão complexo quanto mal delimitado, mas deixo esboçadas as seguintes indicações: a) seria preciso investigar as origens histórico-filosóficas da problematização da experiência estética; b) também seria necessário acompanhar certas tentativas de elucidar o campo da experiência estética, seus contornos e especificidades. Um dos mais interessantes esforços neste sentido é o de Jean-Marie Schaeffer, para quem a experiência estética é uma experiência de prazer (embora possa ser acompanhada de desprazer) que independe do objeto que a aciona; tem a ver, isso sim, com um certo tipo de relação que estabelecemos com os objetos, relação esta caracterizada por uma atividade representacional autossuficiente (que tende a se manter e não deriva para outra ação sobre o objeto). Ou seja, o prazer estético proviria da mera atividade representacional – “na experiência estética, a atividade representacional é uma fonte de prazer autônoma”. Claro que seria necessário discutir o que é esta atividade representacional, mas talvez seja possível reduzi-la à simples constituição/configuração mental de um objeto (não necessariamente oferecido pelos sentidos); e c) conviria, por fim, examinar com detalhes os vários patamares ou “momentos” (se é que se pode pensar em um processo temporal) do prazer estético, da percepção à formulação do juízo estético – para o estudo destes aspectos, as proposições de Guillaumin (1998) podem ser um bom ponto de partida.

Porém, antes de discutir o estatuto metapsicológico da experiência estética, ou ainda, de especular sobre as relações entre o belo e a sexualidade ou a sublimação, é preciso se deter sobre uma questão prévia: afinal de contas, o que Freud entende por estética? Aparentemente desimportante, tal indagação é um pré-requisito fundamental para a discussão de todas e de cada uma das indagações anteriores, e por isso constitui o foco deste trabalho. 

O uso do adjetivo
Sobre o emprego do adjetivo “estético” e seus correlatos, creio que se pode distinguir ao menos dois tipos de uso. A utilização mais frequente é num sentido lato, em expressões como “ideais éticos e estéticos” ou “padrões estéticos”, cujo significado geral remete a uma consideração aos ideais e padrões de beleza. Encontra-se implícita a ideia de que a beleza é um valor “elevado” e socialmente compartilhado. É também em trechos como esses que vemos justificada a hipótese de Hubert Damisch, para quem o belo está em íntima conexão com o recalque (mais particularmente, com o que incide sobre as pulsões parciais), como um dos diques que se elevam contra o desenvolvimento desses componentes. Em uma segunda acepção do adjetivo, ele é, inequivocamente, sinônimo de formal: “O poeta (...) nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos proporciona a exposição de suas fantasias” (Freud, 1908, p. 1.348). Penso que é neste mesmo sentido de prazer desencadeado exclusivamente pela forma que o adjetivo encontra-se associado aos ditos de espírito.

Pareceria, à primeira vista, que na primeira série o estético estaria alinhado com o recalcamento e, na outra, com o prazer. Na verdade, creio que só pode ser concebido nesta dupla vinculação, como se tivesse, necessariamente, duas faces. A justificativa desta dupla vinculação estaria no axioma freudiano de que a beleza se funda no sexual; resta saber como fica a relação prazer estético/recalcamento no caso de concepções psicanalíticas sobre a beleza que não a veem necessariamente como tributária da sexualidade (mas esta já seria uma outra e interessantíssima história...).

Por outro lado, e ainda em termos freudianos, o prazer estético (formal) é apresentado quase como sendo de “segunda classe”, pois que de segunda ordem (substitutivo) e de menor magnitude (na medida em que a forma possibilitaria apenas um prazer preliminar).
No entanto, cabe perguntar se tal prazer estético continuaria a ser considerado como de “segunda ordem” e “substitutivo” no caso de derivar da contemplação da beleza não-artística ou de obras de arte que prescindem de um conteúdo representacional. Um dos horizontes mais amplos para o qual apontam essas reflexões é, exatamente, o da possibilidade de pensar o prazer estético em sua positividade e em sua autonomia em relação a um suposto conteúdo ideativo a ele subjacente, sublinhando o relevante papel que pode exercer no funcionamento psíquico. E isto também em termos coletivos: a ornamentação floral nos espaços públicos ou privados, o respeito pela beleza natural, o embelezamento do mundo, apesar de “inúteis”, são dos principais índices de cultura de um povo (cf. Freud, 1929, p. 3.035). “Útil” ou nem tanto, a beleza nos é extremamente preciosa. Já a estética, bem, talvez não seja imprescindível, embora importante para a compreensão psicanalítica do humano; mas como outras criações teóricas, decerto pode ser bela – e este é um dos motivos pelos quais a estética de Freud merece ser revisitada.

Referências
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_____ (1908). O poeta e os sonhos diurnos. In: Op. cit. vol. II.
_____ (1913). Múltiplo interesse da psicanálise. In: Op. cit. vol. II.
_____ (1919). O sinistro. In: Op. cit. vol. III.
_____ (1929). O mal-estar na cultura. In: Op. cit. vol. III.
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IN: PULSIONAL Revista de Psicanálise, novembro/2003


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