sábado, julho 27, 2019

PSICANALISE E CINEMA


CISNE NEGRO: notas sobre o espelho




Luiz Felipe Monteiro

O que significa ver um filme sob as lentes do discurso analítico? O que um filme pode nos ensinar sobre algo da psicanálise. São perguntas que norteiam uma apreensão da obra cinematográfica para além do mero suporte de interpretações selvagens sobre os personagens e muitas vezes, sobre os próprios diretores e atores do filme. Trata-se de se valer de um outro discurso, para pensar algo do discurso da psicanálise. Slavoj Zizek, sintetiza bem essa operação ao mencionar a visão em paralaxe, onde atesta que enxergamos melhor quando vemos sob um olhar enviesado. Se concordamos com Lacan que a verdade tem estrutura de ficção isto confere uma pertinência de pensar a psicanálise sob as lentes do cinema. Afinal, o discurso cinematográfico é o própria estrutura de ficção posta em ato, um filme só é um filme por sua mise-em-scene, sua encenação e articulação de significantes que se justapõe entre os cortes, enquadramentos, cenários, trilha-sonora e diálogos de uma trama.
Em outras palavras, a linguagem cinematográfica possui um modo de operação  simbólica, onde não cabe os mesmos juízos de realidade, daquilo que consideramos a “realidade concreta dos fatos”. Assim como em um sonho, tudo o que se vê em um filme está articulado em uma cadeia simbólica que compõe a narrativa do filme. Nada que é visto é aleatório, fortuito; inclusive e especialmente aquilo que o diretor nos impede de ver. Aquilo que fica fora no enquadre também compõe a cena.
Não se trata da fórmula clássica “tudo tem um sentido” onde algum mentor sabe de todos os significados de antemão. Tanto em um filme, como nos sonhos, os elementos que estão à vista e aqueles que não são mostrados compõe uma linguagem simbólica onde os possíveis significados não estão previamente estabelecidos. O diretor de um filme e o “inconsciente” guiam o nosso olhar por meio dos seus recursos “técnicos” (condensação, deslocamento, corte, close, etc…). Desse modo, criam uma narrativa que sugere significações, sem encerrá-las em significados pré-estabelecidos. Esta lógica da linguagem simbólica comum aos sonhos e aos filmes depende do espectador\sonhador para realizar a sua significação. Um filme não visto, é apenas um pasta de arquivo digital perdido no HD de algum produtor, tal qual um sonho não elaborado, é apenas algo estranho que sobrevêm à noite.
Exatamente por haver uma sugestão de significação oferecida pelo modo como o nosso olhar é guiado, que um filme pode ser lido. Nesse sentido, uma boa maneira de nos servir de um filme é prestar atenção não à história contada, mas no modo como as cenas são ligadas uma à outra. Este é o trabalho do montador do filme e aí reside a estrutura de significação de um filme.
Enquanto estamos prestando atenção aos diálogos e ao drama do filme, não nos damos conta facilmente do tipo de articulação simbólica que o diretor realiza para guiar o nosso olhar. Essa articulação simbólica que não está no conteúdo dos diálogos, mas na forma como as imagens são montadas quadro a quadros, tem o nome de enunciação. Mesmo conceito que se aplica à fala de um discurso, inclusive um discurso sobre um sonho recordado. A sagacidade de Freud quando escreve a Interpretações dos Sonhos, reside exatamente na compreensão de que a significação dos sonhos está muito mais no modo como as imagens (visuais e acústicas) se articulam, do que necessariamente no conteúdo da fala do paciente.
Sobre o filme Cisne Negro, o primeiro ponto que podemos destacar é o posicionamento da câmera sob a personagem Nina. Desde as primeiras cenas do filme, a câmera segue os seus passos, mirando em suas costas e com o mesmo movimento do andar de Nina. Esse modo de enquadramento nos leva a crer que há alguém que está com Nina, mesmo que ela não perceba. O movimento da câmera seguindo o mesmo ritmo de seu andar sugere que esse alguém, se não é ela própria (seu duplo), é algo ou alguém que a concerne. De um modo muito simples, o diretor ao mesmo tempo sugere a presença de um duplo e a presença do espectador nesse lugar do duplo. Afinal, quem vê as costas de Nina e acompanha a sua chegada ao Balé somos nós, os espectadores.
A própria ideia inicial dada pela câmera sobre o duplo, ressoa o tempo todo no filme na presença constante dos espelhos. Quase todas as cenas há um espelho ao fundo; e em muitas cenas, a câmera mira seu olhar não sobre o personagem, mas sim na imagem refletida no espelho destes mesmos personagens. Em diversos planos, vemos Nina não diretamente, mas através da imagem especular. Onde esta encenação perpétua de espelhos que levar o espectador?
Mirar a câmera no espelho ao invés da personagem é a melhor maneira de dizer que é nessa dimensão especular que se concentra a questão dramática de Nina.
Do que se trata a imagem conferida por um espelho? O espelho nada mais é do que a nossa imagem devolvida por um suporte material. Ter a nossa imagem devolvida por um suporte material é outro nome dos tipos de cuidados e de olhar que os nossos cuidadores têm conosco desde os nossos primeiros segundos de vida. Sem a devolução do olhar do outro sobre nós, não temos como constituir a nossa própria imagem. O Estádio do Espelho tal como proposto por Jacques Lacan trata exatamente dessa questão. Sem o olhar de reconhecimento do Outro, não constituímos um ego.
Mas isso não é suficiente para a estruturação do sujeito no laço social. Isto porque caso a nossa subjetividade se apóia unicamente no plano imaginário (da imagem ideal que constituímos por meio do reconhecimento e identificação com o Outro), ficamos presos e paralisados na alienação com Outro. Em outras palavras, nossa existência passa a ficar apoiada unicamente naquela imagem específica que fomos reconhecidas pelo Outro.
No caso de Nina, vemos claramente por meio dos cenários de sua casa, de seu quarto e por meio da sua vida bailarina como o seu universo simbólico é tomado pela presença e pela identificação com a mãe. Até a entrada do personagem do diretor de Balé, o filme nos leva a crer que a vida de Nina resumia-se entre o balé e sua casa. Sua imagem egóica está apoiada, hegemonicamente, no ideal da bailarina perfeita e bela. Foi esse o olhar que ela recebeu e recebe da mãe; é esse o olhar que ela tem sobre si própria. Desde o lugar da bailarina perfeita, bela e filha da mãe, Nina está organizada psiquicamente. Não há conflito, não há erro, não há falta. Desde esse lugar Nina é o Cisne Branco. Resta a pergunta: o que fica de fora desse enquadramento ideal?
A própria trama do Balé Cisne Negro já deixa claro que muita coisa fica de fora dessa suposta perfeição idealizada de beleza e técnica. Será através da figura de um homem sedutor que esta dimensão não idealizada irá aparecer. Isto porque o modo como Thomás dirige o seu olhar para Nina está regido por tudo aquilo que a técnica e a disciplina visa extinguir. O olhar do diretor do balé (e do seu duplo – o diretor do filme) sobre Nina, quer vê-la perder o controle, perder a simetria perfeita, perder o compasso. Quer vê-la Cisne Negro. Este olhar passa necessariamente pela sexualidade, pois é nesta dimensão do desejo sexual que residem os nossos desencontros, nossos mal-entendidos, nossa incompreensão, nosso gozo não totalmente educado.
A cena em que Nina se dirige ao diretor para pedir o papel atesta claramente a ambiguidade que se coloca sobre a personagem. Ao mesmo tempo que esse olhar do diretor lhe tira do centro idealizado de perfeição; é também o mesmo olhar que a coloca no centro das atenções, no destaque como personagem principal da trama do balé. O paradoxo posto para Nina é que o papel com o qual ela alcançará o tão sonhado protagonismo no balé, é exatamente o papel que lhe demanda que abdique de sua suposta perfeição.
Nesse momento do filme uma outra questão importante é posta em cena: “a outra mulher”. Quando Nina passa a ser reconhecida para além da “bailarina”; como uma mulher que sente desejo e que pode ser desejada, o olhar de Nina passa a mirar a outra: o que será que ela tem que eu não tenho? Aqui duas personagens representam esta interrogação sobre o que é ser mulher. A personagem de Lily pela via da mulher desejante, descolada, atraente; e a personagem de Beth, bailarina que Nina substitui no balé e que, posteriormente no filme, sofre um grave acidente. Se Lily representa esta dimensão sexualizada do feminino, Beth representa a realização do ideal e o custo que tem esta realização. De algum modo Beth antecipa o destino de Nina, quando entrevê que a realização do ideal de perfeição e sucesso tem um preço caro, às vezes pago com a própria carne.
A cena onde Nina é apresentada como substituta de Beth é o que precipita uma das primeiras desagregações corporais experienciadas por Nina. Dali em diante, toda vez em que Nina está se aproxima da dimensão sexual ou é demanda a se descontrolar apareceram os sintomas corporais (coceira, sangramento, cortes em partes do corpo, até o aparecimento das penas). É claro que podemos ler esses sintomas como alucinações cinestésicas, ou mesmo como despersonalização; porém o que mais interessa aqui é olhar sobre o que antecede o aparecimento desses sintomas. Isto que nos leva a criar um raciocínio clínico sobre os casos, tal como sobre o discurso do filme. A compreensão de que os sintomas não são aleatórios, e sim, fazem parte de uma articulação simbólica particular ao sujeito, nos conduz a ler onde situam-se os pontos de impasse, os sinais de angústia.
No caso do filme a presença do olhar do diretor, desestabiliza a imagem idealizada de Nina. O olhar de Thomás surge como um terceiro na relação especular dual que Nina estabelece, especialmente com a sua mãe. A cena em que Nina se masturba em sua cama após a conversa com Thomás e de repente é mostrado o corpo da mãe, atesta bem o tipo de angústia vivida pela personagem. Nesta cena em particular o próprio modo em que a mãe aparece é bastante ambíguo, pois não fica claro que Nina a vê. Simplesmente aparece a imagem do corpo da mãe muito rapidamente, quase como uma alucinação ou como um pensamento de censura que lhe acomete. O mesmo tipo de ambiguidade é visto quando Lily vai até a casa de Nina e chama para sair e quando elas transam também na cama de Nina.
O que se vê no filme dali em diante é a crescente sensação em Nina de que ela está perdendo sua identidade. A perda de sua consistência egóica é correlata à perda da consistência da imagem idealizada conferida pela mãe. O espelho que dava suporte à imagem idealizada e clean de Nina, começa a rachar. O drama do filme está justamente na desagregação física e psicológica que esta dimensão estranha à imagem idealizada resvala sobre a personagem. É como se a relação especular idealizada de reconhecimento no olhar da mãe se rompesse e Nina então se partisse concretamente. Se partindo em Cisne Branco e Negro. Não houve para Nina algum tipo de mediação que conseguisse organizar a tensão psíquica posta pela presença da dimensão “cisne negro” no domínio materno/perfeito/belo do “cisne branco”. Nina se deixa tomar (o nome do diretor do balé no filme não é à tôa – Thomás) pelo Cisne Negro e, tal como no enredo do Balé se mata para conseguir a perfeição.
O que podemos entrever como a produção sintomática de Nina foi tomar o personagem do cisne negro no plano concreto, sem uma mediação simbólica que permitisse uma metáfora, uma atuação. Nina não usa o Cisne Negro como semblante, metáfora para o que se deflagrou com desestabilização do ideal. O drama do filme reside justamente aí. Se não há metáfora no plano do simbólico, resta o ato no corpo. Quem vacila não é o significante é o seu próprio corpo e ego. Não há uma fronteira, uma separação entre o seu ego e a imagem da cisne negro. Faltou a Nina uma mediação simbólica que estruturalmente separa o eu do outro, o corpo do filho do corpo da mãe, o gozo de um com o gozo do outro. Uma das linhas de investigação  seria a da foraclusão do Nome-do-Pai como função que instaura uma separação, uma falta, um erro, uma distância entre o ego da criança e o ego do outro cuidador, inclusive na dimensão concreta do corpo. É a inscrição do Nome do Pai que permite ao filho realizar uma metáfora do Desejo da mãe; em outras palavras, permite à criança sair da hegemonia da relação imaginária dual e especular, para fazer uso da dimensão simbólica que permite a possibilidade da presença e ausência, do erro, da falha, por extensão, do desejo.
Na cena final do filme antes de Nina se matar, aparece subitamente a imagem da mãe olhando Nina em seu espetáculo de transfiguração em Cisne Negro. O que se pode ver ali o último lance no espelho de Nina para a sua mãe? Um busca final de reconhecimento? Certamente, na atuação de Nina ela alcança o seu ideal, porém não no plano da simbólico, realiza em ato aquilo que na sua imagem de eu sempre buscou – o júbilo do olhar do outro. Sinal de que muitas vezes a busca imaginária deste júbilo no reconhecimento especular tem um custo que se paga com a própria carne. A perda da carne e da própria vida, revela a impossibilidade da personagem em realizar um atravessamento da dimensão especular por via do simbólico, da metáfora e metonímia. Não é precisamente esta impossibilidade que nos fascina na personagem? Se Nina chega à perfeição com o fim da vida, nós espectadores podemos chegar ao fim do filme são e salvos, precisamente porque de algum modo, de um modo particular, cada um pôde ceder à prisão especular com Outro, para se deixar furtar da linguagem e seus artifícios.
O encanto do cinema é prova disto, pois afinal, o espectador desejante sem saber ou não, pagou para se alienar na tela-Outro; e precisamente por que pagou o preço da separação (não com a carne, mas com recursos simbólicos) que se pode continuar desejando, desejando o próximo filme.
In: AGENTE - revista de psicanálise n. 7 - outubro\2011

Um comentário:

Fabio Correa disse...

Parabéns pelo seu blog!
Excelente post.
Ótimo texto!

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