terça-feira, julho 14, 2020

Arlington Park: as mulheres de Rachel Cusk





Arlington Park, de Rachel Cusk


Silvia Lazzaretti
Educadora Criativa
slazzaretti@gmail.com

O mundo precisa ler cada vez mais mulheres e nós precisamos escrever mais sobre nossas histórias, percepções e cotidianos. De forma experiente e cheia de referências, Rachel Cusk coloca-se como uma mulher escrevendo sobre mulheres, inseridas em um dia chuvoso. Assim como Virgínia Woolf em Mrs. Dalloway, Rachel Cusk em Arlington Park revela um dia na vida de cinco mulheres. O mundo feminino é repleto de palavras que adjetivam o cotidiano das mulheres, algumas são reflexos das diferentes escolhas feitas pelas mesmas acerca de sua própria vida, ou mesmo escolhas que tiveram o atravessador cultural sobre o que se esperava delas, assim é com a maternidade e o matrimônio. 

Em suma, o livro remete a histórias íntimas de mulheres dentro de suas bolhas. Nestas esferas, os pensamentos, ações e comportamentos são vistos por quem está de fora de suas vidas: os espaços e os objetos. Os lugares e as coisas tornam-se parte constante do cotidiano das personagens, tornando-se eles mesmos personagens que dialogam com os humanos e em outros momentos chegam a narrar as diferentes histórias.  Nesta neutralidade das coisas, as vidas das mulheres passam despercebidas, talvez até por elas mesmas. Os objetos aqui tomam posse de suas percepções, as coisas se apropriam de suas vidas, assim como os locais se tornam os narradores de suas histórias.

Os locais dialogam já nas primeiraspáginas, em que a chuva enxerga os diferentes ambientes durante a madrugada em Arlington Park. No primeiro capítulo, Rachel Cusk mostra o seu estilo, misturando metáforas com cenas em diferentes velocidades. E assim, o espaço conta e descreve a si mesmo, como personagem estável e o que se move é o tempo (seja ele cronológico ou climático). Em alguns momentos, a autora pausa o tempo e as ações tornam-se suspensas no ar, aumentando assim a tensão sobre os movimentos dos personagens humanos e não-humanos.

O segundo capítulo apresentaa personagem Juliet Randal, esposa de Benedict, ambos professores. A personagem Juliet traz uma reflexão importante para apresentar a si mesma: 

“Todos os homens são assassinos, pensou Juliet. Todos. Eles matam mulheres. Pegam uma mulher, e vão matando aos poucos”.

É muito interessante esta personagem ser a primeira, já que dentre o grupo de mulheres, é a única que reflete sobre as diferentes formas de opressões que elassofrem. Como se a percepção de Juliet acerca da própria bolha, criasse constante tensão entre o seu próprio cotidiano e o das outras mulheres. Neste sentido, as percepções feministas de Juliet percorrem os lares inconscientes das demais personagens. A palavra “assassino” ganha território toda vez que um personagem masculino está em cena. A trama entre Juliet, seu esposo, os filhos e as relações entre sua família e o jantar na casa dos Milfort criam uma narrativa de desilusões sobre a maternidade e o casamento: em diferentes momentos, Juliet questiona-se como seria sua vida se amasse o esposo. 

      Há possibilidade de amar quem assassina sua existência aos poucos?

Christine é outra personagem que chama atenção pelos comportamentos que têm com os filhos, amigas e marido. Seria, de repente, considerada a mulher “surtada” ou “histérica” em que as imoralidades do cotidiano tomam conta das suas palavras e pensamentos, ao mesmo tempo em que as mesmas atitudes são colocadas para “debaixo dos tapetes”. As coisas ao redor de Christine tornam-se donas de sua existência, sem que ela percebesse que perdeu a liberdade sobre os próprios pesares, pois enquanto prepara o jantar para os amigos, planeja o próprio corpo como se fosse o prato principal, assim como olha para os corpos e atitudes das outras mulheres, esperando que comportassem-se da mesma forma: vivendo sobre os objetos e depositando seus princípios sobre eles.

Ao subir as escadas, outra personagem, chamada Maisie, também esconde alguns gritos com os filhos em pensamentos. A cena dos gritos da mãe, estilhaçando a lancheira de uma das filhas, coloca-se em suspensão de tempo e neste momento, cria-se uma imagem da mulher gritando silenciada sobre a vida arruinada em que culpa as próprias filhas. Frustração esta, que ela esconde do marido, sob ruídos e respostas entreditas em perguntas retóricas e sarcásticas. Tudo é normalizado pelo cotidiano e ocultado pelas paredes que tudo sabem sobre Maisie.

A personagem Solly é a única dentre as mulheres do livro, que não se relaciona para além de seu lar. A história de Solly é solta dentro do livro e não é coincidência estar na metade da narrativa. Novamente a autora se remete a temática da maternidade, com uma personagem que se dedica única e exclusivamente ao cuidado dos três filhos, estando grávida. Mesmo colocando-se à disposição do lar, a narrativa que conduz o cotidiano de Solly é a única no livro que tem uma resolução. Ela e o esposo decidem alugar o quarto de hóspedes à estrangeiras, algo que Solly entende que será uma entrada de dinheiro além de estarem companhia para as atividades do dia-a-dia. As inquilinas despertam curiosidade em Solly sobre suas vidas, fato que a move a procurar vestígios de suas histórias dentro do quarto. Isto é, Solly encontra-se dentro do próprio lar, descobrindo e criando histórias sobre a vida destas mulheres, a partir do que encontra no quarto alugado. Esta pequena imoralidade de vasculhar a intimidade dentro do próprio lar a motiva a permanecer vivendo, talvez neste caso, uma vida que não é sua. Novamente, as coisas contam histórias verdadeiras ou não. A vida de Solly é tomada de eventos das vidas alheias, já que a sua está repleta de atividades permanentes sem reflexões.

O livro Arlington Park traz a trajetória cotidiana de mulheres comuns em meio a um dia chuvoso igualmente comum. As histórias das mulheres são contadas pelos objetos e lugares, o que é reflexo da própria estagnação e silenciamento de suas ações perante o mundo. Os objetos silenciosos contam sobre os pensamentos, desilusões, segredos e comportamentos imorais ou não. Rachel Cusk, por meio de metáforas, não é otimista quanto a vida das mulheres, mesmo assim, é extremamente prazeroso lê-la, reconhecer a si e outras mulheres em uma narrativa sem romantização das questões voltadas à vida feminina.




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