DO TRAUMA AO ACONTECIMENTO TRAUMÁTICO

 




Para o senso comum, trauma é um acontecimento violento que produz dor. No entanto, em seu texto, Heloisa Caldas nos lembra que Freud já via o trauma como um trabalho psíquico, algo que se desenrola no inconsciente. Ou seja, não é só o que aconteceu, mas como nossa mente lida com isso ao longo do tempo.
E tem mais: o trauma não é algo que dá para prevenir ou curar rapidamente. A psicanálise não busca eliminar o trauma, mas dar espaço para que ele seja elaborado. Diferente da abordagem psiquiátrica, que muitas vezes tenta "resolver" o trauma com diagnósticos como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), a psicanálise entende que o trauma faz parte da construção subjetiva de cada um.


TRAUMA E LINGUAGEM: ACORDA

Heloisa Caldas




Agradeço a oportunidade que os organizadores dessas jornadas me deram de falar nessa plenária. Agradeço também a Marie-Hélène Brousse pela atenção de ler e comentar minha intervenção. Trauma não é um termo específico da psicanálise. Provavelmente foi trazido por Freud da medicina, que descreve variados tipos de traumatismos. No entanto, será preciso distinguir aqui a forma totalmente diferenciada com que Freud importou esse termo. Trauma em grego quer dizer ‘ferida’ e metonimicamente veio a indicar o evento que causou a ferida. Em psicanálise, Freud situou o trauma no trabalho inconsciente sobre a ferida, sua impossível cicatrização, por assim dizer. 

É preciso esclarecer isso porque é comum confundir o acontecimento violento, suposto provocador do trauma, com o trauma como trabalho psíquico. Dessa confusão deriva a procura atual e frequente, inspirada em uma terapêutica de prevenção, que pretende evitar os eventos traumáticos ou tratá-los buscando fazer desaparecer seus efeitos o mais rapidamente possível. A isso a psicanálise se recusa. Nada a prevenir, tampouco a curar. O trabalho da psicanálise é, justamente, acolher o trauma em sua ‘elaboração’, que podemos aproximar aqui ao termo lacaniano ‘subjetivação’ referindo ao trabalho do sujeito sobre o ponto em que teria 
sido objeto de uma violência. A operação de sujeito depende 
da linguagem. Então, para pensar o trauma gostaria de tomá-lo segundo as dimensões do espaço e do tempo criados pela linguagem.

1. O espaço do trauma

O trabalho de Freud sobre o trauma remonta aos seus estudos de neurologista sobre as afasias. As afasias decorrem em geral de traumatismos, no sentido médico do termo, danos de tecidos cerebrais que provocam rupturas no seu funcionamento. Essa clínica tão neurológica levou Freud a se interessar, no entanto, mais por seus efeitos do que 
por suas causas. Em vez de privilegiar o tecido nervoso que se rompe, ele se voltou para a linguagem, que não deixa de ser também um tecido, embora não seja orgânico. Começa nessa mudança de perspectiva, a meu ver, a diferença crucial entre trauma, no sentido daquilo que fere, e trauma em psicanálise. Advém dessa mudança na pesquisa de Freud, a 
articulação fundamental entre trauma e linguagem.

Freud destaca assim, desde o início de seu trabalho, o trauma como aquilo que leva ao nascimento do Spracheapparat (aparelho de linguagem) e funda uma escrita corporal. Não se trata do corpo orgânico que independe da fala, mas do corpo que, para a psicanálise, só o é como falante. Corpo 
que nasce assim a partir de duas dimensões espaciais: a da carne e a da linguagem. Estes dois espaços, que Freud tratou no limite entre interno e externo, receberam de Lacan um tratamento topológico moebiano e resultaram na noção de extimidade: o íntimo afetado pelo externo. Se, 
para Freud, o trauma é mobilizado pelo encontro com das Ding – a Coisa externa ao corpo que o leva a falar – Lacan retira daí outro conceito, o de objeto a – resto inassimilável do encontro da carne com a linguagem. Assim, para Lacan, o trauma não causa a linguagem. Ao contrário, a 
linguagem causa o trauma.

Há uma sutileza teórica nessa torção feita por Lacan. Se das Ding mantinha uma exterioridade em relação à linguagem, o conceito de objeto a, ao contrário, só pode ser pensado a partir da linguagem. Essa torção implica também numa mudança do conceito de real. O real que chamamos de lacaniano não se encontra exterior à realidade discursiva. Ele se coloca como o avesso dessa realidade. Logo, não há sujeito pré-linguístico, assim como não há trauma extralinguístico.

Podemos fazer então um paralelo entre Freud e Lacan. Freud pensa através do aparelho de linguagem o advento do inconsciente; Lacan propõe o falasser como conceito lacaniano homólogo ao de inconsciente para Freud. Se o trauma funda o inconsciente, Lacan virá a dizer que o falasser seria um nó tecido de letra e gozo. Um nó sempre possui furos. A corda é bem expressiva dessa lógica. Podemos vê-la se romper brutalmente, como na imagem do cartaz deste evento, mas também podemos perceber os furos existentes entre as cerdas que se trançam. São, aliás, os furos inerentes ao trançar, o que constitui a corda. Certamente, o trauma aparece de forma mais visível e localizável na corda que se rompe. Vai dar trabalho para refazer o nó. A corda jamais será como antes. No entanto, a trança, que é a própria corda, também tem furos que seu trançado produz e organiza. A corda rompida perde essa organização - nisto reside seu maior perigo. Porém, mesmo no trançado, ainda que contido, o mal-estar do furo jamais desaparece. Localizar o trauma nos interstícios da própria corda como a não corda que ela mesma produz, ilustra melhor o real lacaniano do trauma. No trançado temos a corda, nos furos se aloja acorda. 

Podemos chamar a corda de linguagem, tecida com fios de simbólico e imaginário; podemos pensar os furos como o real, no sentido lacaniano do termo, pois eles restam do traçado singular de cada corda. Não é um real para todos. Cada corda tece o seu. É por conta de um trauma, traçado de 
forma tão singular, que algo jamais será bem-entendido, ainda que se busque na linguagem um sentido comum para o privado. A questão passa a ser como viver com isso, esticar ou afrouxar a corda respeitando seus furos e o mal-estar que deles decorre, estreitar ou alargar os furos que 
acessam o gozo através do objeto a.

Encontramos nisso uma diferença radical entre a concepção do trauma em psicanálise e a forma como ele é tratado no diagnóstico de Transtorno de estresse póstraumático (TEPT) do DSM. A descrição desse transtorno 
repousa na ideia de que o traumatismo é um evento externo, localizado fora do corpo, cujos efeitos no manejo da linguagem são concebidos como transtorno. São problemas, tais como: as ruminações, as lembranças intrusivas e recorrentes, as recordações que assaltam o paciente, fixas, 
espontâneas, involuntárias, difíceis de serem interrompidas, parecendo ter vida própria. Vejam que, no espaço criado pela linguagem, no qual um psicanalista encontra as formações do inconsciente, um psicólogo, 
baseado nesse tipo de diagnóstico, encontra um transtorno. Não reconhecem a razão, depois de Freud, das formações inconscientes.

Essa concepção de linguagem descrita no quadro do TEPT colabora para o ideal atual de transparência absoluta, que demanda que se possa dizer tudo e da melhor forma. A pouca psicologia que acompanha esse diagnóstico – feito, em parte, para colaborar com a medicalização psiquiátrica –propõe que o traumatizado precisa falar imediatamente. O 
tratamento consiste em forçá-lo a isto: falar para ultrapassar o trauma e se curar; organizar o mais rapidamente possível seu conhecimento sobre o que se passou, restabelecer seu eu cognitivo. Sustentado numa perspectiva neoliberal e capitalista da psicologia, o sujeito tratado deve ser feliz e produzir, rapidamente recolocado na engrenagem de consumo. Deriva dessa perspectiva, uma psicologia norte-americana chamada de 
positiva.1 Segundo ela, o trauma pode ser visto como necessário à mudança das pessoas. Apostando na resiliência, uma concepção de elasticidade do trabalho psíquico que faz com que se possa ultrapassar um modelo homeostático do psiquismo tirando partido das rupturas para seu 
crescimento, chegaram a criar uma nova sigla como orientação no tratamento do Estresse pós-traumático: PTG condensa post traumatic growth.2

Em que isso difere da psicanálise, que aponta à mutação subjetiva? Difere em dois aspectos capitais: primeiro, porque o trabalho subjetivo em psicanálise se dá pela via do inconsciente, ao passo que, nessa proposta,
temos um adestramento cognitivo do comportamento sustentado por sugestão; segundo, porque não se exige que a mutação subjetiva leve o sujeito à felicidade. A pretensão da psicologia que visa o PTG é a de que se possa, através da resiliência, tirar o melhor proveito do trauma, obedecendo ao imperativo de felicidade. Desconhece-se a força da pulsão de morte. O espaço da linguagem é usado, assim, para eliminar o trauma.

Freud demonstra o quanto falar é relevante para conter o desamparo e o horror radical vivido no trauma. Mas é preciso tomar a fala, justamente, pelos furos, e não pela clareza de comunicação. Seu aparelho de linguagem não trata da comunicação, nem tampouco da eliminação do trauma. Ao contrário, ele parte do pressuposto do impossível de dizer 
o real. Logo, falar do trauma é menos dizê-lo do que construir bordas em torno de um impossível dizer. Isso não pode ser confundido com um relato confessional que pretenda dizer tudo, como nos testemunhos jurídicos que esperam que crianças possam depor sobre abusos sofridos para corroborar provas de criminalização do abusador.3 Sobre o testemunho, no campo jurídico, Lacan aponta ao real: “o objetivo de que o gozo se confesse deve-se, justamente, ao fato de que ele seja inconfessável”.4

Vamos encontrar o trauma, assim, no que fixa a repetição em torno de um ponto, no qual algo “resta por executar”5 – os termos são de Freud. Lacan os retoma, de certa forma, ao apontar o inconsciente como o não 
realizado e o dispositivo analítico como o discurso que pode abrir ou fechar caminhos para o objeto a, propiciando, ou não, sua captura pelo esquema da nassa.7  Esses objetos são os “achados” inconscientes, dados de memória que em articulação com outros, criam novas associações relativas ao gozo em torno do qual gravitam. Posteriormente Lacan vai 
tratar dessas reminiscências como letras, peças avulsas imantadas de gozo que podem entrar no trabalho de rememoração, abrindo novas vias de circulação para o indizível, não tanto pelo que guardam de verdade, mas pelo gozo que escoam. 

É preciso então destacar que o trabalho analítico dá lugar a recordações sem lugar, mas também constata e preserva um não lugar em relação ao sentido. O coração do trauma consiste, a rigor, na dialética entre o localizável e o não localizável.

O trauma, então, não é facilmente localizável. Ele guarda, em relação à linguagem e ao corpo, a posição êxtima de uma experiência vivida fora de si. Podemos dizer que ele se dá na dimensão espacial do corpo, mas não o corpo que se pensa ter na ilusão do eu, composto pela boa forma, 
Gestalt, do estádio do espelho; tampouco é o corpo fálico que se ordena segundo o campo do simbólico. O corpo no trauma predomina como real, fora dos semblantes, fora do inteligível e calculável, fora de si. É um ponto de gozo sobre o qual Miller tem insistido muito nos últimos anos: o 
gozo no corpo como Outro. 

As neuroses de guerra provocadas pela Primeira Guerra Mundial trouxeram complicadores às concepções freudianas de trauma. Se a psicanálise “havia nascido com as questões do trauma postulando-o como a origem do sujeito”8, ela precisava passar a lidar com neuroses produzidas pela 
guerra. No entanto, Freud insiste em distinguir as neuroses traumáticas das neuroses espontâneas, opondo “a realidade psíquica à realidade material ou histórica do sujeito”9. O termo traumático fica reservado às contingências que abalam a organização psíquica, ao passo que o termo trauma é reservado ao que diz respeito à etiologia da neurose. 

Ainda assim, o trabalho de Freud não foi o de generalizar os traumatizados por esta ou aquela razão. O pouco que fez disso falhou. Refiro-me a seu comentário de que aqueles que não foram feridos, embora tenham chegado perto disso, tinham mais chances de se traumatizar do que 
os que efetivamente foram feridos. Segundo Laurent, esse palpite freudiano não se sustentou nas estatísticas produzidas a partir da Segunda Guerra Mundial.10

O mais relevante da pesquisa de Freud sobre as neuroses traumáticas foi destacar o trabalho subjetivo de retorno compulsivo às lembranças do trauma, o que colaborou muitíssimo para seus avanços na teoria pulsional, distinguindo as pulsões de vida e de morte, revendo os princípios do funcionamento mental. Assim, um episódio qualquer, vivido pela criança, pode ser traumático se seus efeitos vierem a demonstrá-lo. Ao contrário, uma tragédia não necessariamente produz um trauma. Isso não quer dizer que não se possa estar imerso em um ambiente cultural – por exemplo, as guerras e as tragédias naturais – que facilite a mobilização de excessos de gozo. No entanto, esses fatos ou episódios cairão para cada um de formas diferenciadas. Há cordas e cordas. Laurent, em um recente vídeo 
preparatório11 para o XX Encontro Brasileiro do Campo freudiano, lembra uma pontuação de Lacan: quando se tem “uma relação verídica com o real”,12 se pode responder melhor à guerra e suas vicissitudes. Isso não equivale, de forma alguma, à resiliência que a psicologia positiva pretende alcançar insuflando nas pessoas uma vontade de superação, a partir de um projeto que pretende controlar e produzir respostas generalistas ao trauma. O trauma, para a psicanálise, se desfia em vicissitudes sempre ímpares e, portanto, impossíveis de generalizar, calcular, prever a partir de condições genéticas ou esforços de vontade pessoais. Trata-se de poder responder, da forma mais singular e privada, a partir de seu sinthoma, aos novos desarranjos do real, que acontecimentos inesperados e violentos produzam.

2. O tempo do trauma

O fato de que o evento traumático não determine o trauma, faz com que só saibamos do trauma a posteriori. Consequentemente, não há prevenção contra o trauma. Apenas o efeito atesta a causa, o que desdobra o trauma em dois tempos: o segundo tempo decide sobre o primeiro. Essa lição 
foi dada por Freud a respeito de uma paciente, Emma Eckstein, curiosamente a mesma paciente em questão no sonho 
da injeção de Irma13. Vejam o quanto Freud conseguia extrair da sua clínica. Se contarmos a história no sentido cronológico, ela se tornaria um trauma no senso comum do termo. Será preciso retroceder na cronologia, como fez Freud, pelo vetor retroativo da narrativa em análise. Esse tempo retroativo deve-se, também, à linguagem, cujo desdobramento promove um afastamento do que conta, ao mesmo tempo em que o retoma como narrativa.

Emma fala em análise da impossibilidade de entrar desacompanhada em uma loja devido à ideia que lhe ocorre, de que os vendedores ririam de sua roupa. Coisa mais estranha e sem causa aparente alguma. A crença de que o inconsciente iria revelar o segredo disso sustenta a continuidade da análise. Uma lembrança da paciente responde ao desejo do analista pela causa de seu sintoma. Ela propõe, como uma suposição, que tudo teria começado quando, aos 12 anos, entrou numa loja de tecidos e se deparou com o riso de dois vendedores. Pensara que riam de seu vestido e saiu dali correndo. Evoca que se sentiu atraída por um deles. A lembrança não ajuda muito, pois não explicava, no atual sintoma, porque ela evitava entrar em lojas desacompanhada. Caso estivesse acompanhada de alguém, ela podia facilmente entrar. Por que eles não ririam de sua 
roupa, caso ela estivesse acompanhada? Há um dado que se oculta. Freud intitula essa lembrança de próton pseudos14: falsa conclusão devida a uma falsa premissa. Portanto, ainda é pouco - a análise continua. Ela vem a lembrar, então, de outra cena, anterior, por volta dos seus 8 anos: ao entrar numa confeitaria sozinha, ela havia sido assediada pelo dono do estabelecimento; ao tocar seus genitais, por cima da roupa, ele riu. Os dados corroboravam a teoria que Freud elaborava na época, de que na etiologia das neuroses havia um trauma devido a um abuso sexual.

Freud diz que o “perturbador num trauma sexual é, sem dúvida, a liberação do afeto”15, ou seja, a excitação sexual, esta sim abusiva, que se manifestara em ambas as cenas, mas que só a posteriori assustou Emma.16 Segundo Freud, ela já havia sido despertada na primeira cena sem significação alguma, apenas como excesso pulsional. O sintoma fóbico responde a isso. Ele gravita em torno de um riso e de roupas que, por deslocamento, se conectavam à excitação sexual. Emma não cessa de se afastar disso, para inexoravelmente encontrar isso que não cessa de não se escrever: o sexual. Vejam que os próton pseudos são as mentiras histéricas, cuja verdade consiste em apontar ao real.

Freud não nos conta a continuação dessa análise. Viemos a saber pelo sonho de Emma/Irma que sua análise se interrompeu. No sonho, Freud se culpava por isso e, de forma espetacular, conclui com a fórmula da trimetilamina, substância tão sexual que condensa suas dúvidas: Irma não abria facilmente a boca para contar seus segredos; quando Irma abria a boca, sua garganta era um horror. Dois aspectos do trauma sexual de Irma na transferência/resistência com Freud. O desejo do analista  de Freud talvez tenha aí recuado. Ainda assim é ele que movimenta esse sonho para concluir com uma fórmula que não diz nada, signo do real do sonho, do sexual e do gozo.

Na época, o caso Emma, assim como as várias histórias que suas pacientes lhe contavam, propiciava material para Freud afirmar que a etiologia das neuroses se assentava sobre um encontro prematuro com a sexualidade. Um abuso sexual. Mas as narrativas sempre mudam no curso de uma análise. O desejo do analista tem um forte papel nisso. Por fim, Freud verifica que eram narrativas que demonstravam mais o desejo sexual infantil de suas pacientes do que o fato de terem sido abusadas. O trauma passa, então, a ser visto como o encontro com o sexual e causa da constituição da fantasia. A fantasia seria, assim, uma resposta ao 
enigma do sexual.

Mas o problema temporal e espacial continua. O que havia antes? Quando o trauma sexual chega à criança se ele está lá desde sempre? Freud recua no tempo do trauma. Com a ajuda de colaboradores, o trauma original se perde nas brumas das primeiras experiências de desamparo, na eminência da perda amorosa da mãe, no nascimento. 


Lacan pôs um fim nessa busca pelo tempo perdido do trauma, ao situá-lo no encontro da criança com a linguagem. Entrar com sua carne, sem saber prévio algum, para inscrevê-la como corpo em um mundo povoado por desejos e demandas paradoxais, estabelecer uma separação do caldo 
cultural, de forma a poder se valer do material disponível e com isso estabelecer um campo de gozo, não pode acontecer sem mal-estar excessivo: eis o trauma. Ninguém precisa de tragédias. Ainda assim, elas acontecem. Basta ter linguagem para que tragédias aconteçam. O trauma é uma experiência de não saber, e seu aspecto mais crítico não se deve tanto à perda no campo do saber. Essa perda só é trágica na medida 
em que o saber administra o gozo. Ao se perder o saber se 
está à mercê de uma experiência de gozo ameaçadora. O trauma denuncia, de forma bem radical, o quanto a coalescência entre gozo e saber é um artifício, homólogo à tessitura da corda que pode se romper. 


Freud deixou de lado a teoria da sedução porque percebeu que não era no tempo atribuído às lembranças pela narrativa que localizava temporalmente o trauma. Podemos aventar que, caso Emma/Irma tivesse seguido sua análise, caso o umbigo do sonho se colocasse a cada vez que a paciente brindasse o analista com uma história, teríamos talvez uma versão que desalojaria o abuso até mesmo do episódio no qual ela foi tocada aos 8 anos. 

Afinal, quem não foi tocado de forma surpreendente pelo contato sexual? Para isso basta uma imagem, o ranger de uma cama, um gemido atrás da porta que desperte no corpo uma estranha excitação. A rigor, não é o abuso, que por ser qualificado de sexual, produz o trauma. Isso pode de fato até acontecer, as estatísticas têm denunciado seu crescimento que, assim como o de muitas outras formas de violência, podemos atribuir à mutação da ordem simbólica que passa da regulação do Nome-do-Pai à da cifra. O choque de horror do abuso sexual se deve, além de suas condições de violação, à invasão súbita e excessiva de gozo no corpo. Quanto a isso, podemos inverter o sintagma ‘abuso sexual’ para a frase ‘o sexual abusa’. Abusa como acontecimento de gozo no corpo, alheio ao já subjetivado; fura a corda da imagem e da ordenação simbólica de um corpo instituído; 
assusta, pois o corpo é Outro.

Essa perspectiva psicanalítica do sexual se descola do que hoje se fala tanto sobre o abuso sexual traumático, pois aborda o encontro com o sexo além e aquém das condições de violência em que ele possa se dar. Novamente, não se trata do evento, mas dos efeitos desse evento. O 
encontro com o sexo – na medida em que os humanos não dispõem de uma programação sexual a cumprir e precisam se valer dos semblantes de sua época – é um encontro necessário com a pulsão, no que ela traz de excesso. Além disso, sendo o trauma sexual universal, isso não o 
generaliza, pois cada trauma é único.

O encontro com o trauma se dá segundo dois aspectos: um deles é o reencontro com o mal-estar original de desamparo, o outro celebra, reiteradamente, o incomensurável gozo de um encontro surpreendente com um gozo sem nome. Na repetição se atualizam, a cada vez, as 
faces do direito (o simbólico que cinge o real) e do avesso do trauma (o real que fura o simbólico), para lembrar um desenvolvimento teórico de Laurent. É sempre um segundo tempo em relação ao primeiro. Os tempos se multiplicam, mas o trauma reitera sempre o segundo tempo, em busca do tempo perdido. De reiteração em reiteração, o trauma se dá na 
dimensão infinita do eterno entre dois tempos, um compasso 
de dois tempos, fora do tempo cronológico.  

Em um exercício hipotético, podemos propor que exista alguém não traumatizado. Mas não lhe peçam que fale de sua vida, como se faz em análise. Basta a linguagem para que se evoque, através dela mesma, o real que estar nela implica. O trauma inevitavelmente se coloca porque o dispositivo psicanalítico é apoiado na linguagem, na retroação do sentido, na transferência que lhe faz obstáculo, tornando presente um ponto cego, surdo e mudo. Por isso podemos dizer que, para a psicanálise, o trauma é de certa forma um conceito universal. Ou seja, não se faz outra coisa em 
análise senão falar do impossível de falar, contar o não contabilizável. Podemos fazer o exercício de colocar isso nas fórmulas lacanianas: por um lado, todos somos traumatizados. Seria outra forma de falar da castração. 
Pelo outro lado, porém, somos traumatizados de forma não toda, uma vez que não existe uma forma exemplar para lidar com o trauma, assim como não existe A mulher ou O Outro. A forma como cada um trata subjetivamente seu trauma faz acorda absolutamente singular. Quanto a isso, o trauma não é generalizável, mesmo quando temos tragédias de 
massa ou vivemos numa época de muita violência, como a 
atual. 


1. A psicologia positiva tem contado com a contribuição mais significativa do psicólogo norte-americano Martin Seligman, expresidente da APA e autor de A felicidade autêntica. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009
2.Crescimento pós-traumático. 
3. Cf. MIRANDA, L. (2014). “Do trauma não se fala por decreto”. Trabalho apresentado nas XXIII Jornadas Clínicas da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro, em uma das 
mesas simultâneas do eixo sobre Trauma e Linguagem. 
4. LACAN, J. (2008/1972-1973). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 98. 
5. FREUD, S. (1976/1916-1917). “Fixação e traumas – o inconsciente. “Conferência XVIII de Conferências introdutórias sobre a psicanálise”. In: Edição standard brasileira das obras 
psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVI. Rio de 
Janeiro: Imago Editora. 
6. LACAN, J. (1973/1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
7. IDEM. Ibidem. 
8. LA SAGNA, P. (2015, mar.). “Os mal entendidos do trauma”. In: 
Opção Lacaniana online nova série, n. 16, disponível em:
www.opcaolcaniana.com.br.
9.  IDEM. Ibidem. 
10.  LAURENT, É. (2014). “O trauma generalizado e singular”. Disponível em:
<http://www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/02/o-traumageneralizado-e-singular_9241.html>. Acesso em: 10/09/2014. 
11.  IDEM. [Video]. Disponível em <http://www.encontrocampofreudiano.org.br/2014_08_01_archive.htm
l>. Acesso em 10/09/2014. 
12. LACAN, J. (2003/1947). “A psiquiatria inglesa e a guerra”.
In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 106. 
13.  TEIXEIRA, A. (2010). “O sonho da dessuposição de Fliess”. In: Almanaque online, nº 6. Disponível em:<http://www.institutopsicanalisemg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque6.htm>. Acesso em 
05/09/2014.
14.  Cf. FREUD, S. (1976/1895). “Projeto para uma psicologia científica”. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. I. Op. cit., p. 
368.
16 IDEM. Ibid., p. 372


IN: Opção lacaniana online, Ano 6 • Número 16 • março 2015.



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