QUESTÕES DE GÊNERO E PSICANÁLISE





O que realmente define a diferença sexual? E, ainda: será que existe uma única resposta para esta questão? No texto a seguir, François Ansermet nos leva a uma jornada psicanalítica para compreender que a questão transcende a mera biologia. Ele explora as dimensões subjetivas e sociais da identidade de gênero, propondo uma perspectiva clínica que valoriza a singularidade de cada ser, recusando-se a impor normas universais. Uma leitura relevante para quem busca aprofundar o debate.


Eleger o próprio sexo: usos contemporâneos da diferença sexual


François Ansermet1

 

 

“Não se trata de uma eleição e sim de um fato”, afirmou há pouco tempo um paciente de 15 anos que veio me consultar por causa de seu projeto de mudar de sexo. De fato, sente-se capturado em um sexo que não lhe corresponde; disse experimentar-se desde sempre como uma menina presa em um corpo de menino e quer, então, mudar de sexo e espera o momento em que a cirurgia e a endocrinologia lhe permitirão realizar a metamorfose de seu corpo. 

Todo o enigma clínico da transexualidade gira, de fato, ao redor da certeza em jogo; é ela que determina que o conjunto das questões venha a se colocar, finalmente tomando outros pontos de referência do que aqueles próprios a uma problemática da eleição.

Uma estranha certeza 

Na perspectiva transexual - transexualidade, transgênero, transidentidade, as terminologias são, todavia, provisórias – as cartas estão lançadas. O sujeito rechaça definitivamente a anatomia que seu nascimento lhe impôs. Subjetivamente, não está alienado do lado da diferença. Sabe-se diferente e quer ir ao encontro dessa diferença na qual ele crê; já não aborda a diferença a partir da anatomia que determinaria seu destino, mas sim a partir de uma posição subjetiva. Decididamente, a diferença dos sexos é abordada mais além da diferença anatômica.

O que caracteriza o transexual é a certeza de haver nascido com uma falsa anatomia. Está convencido de não ser do sexo que sua anatomia lhe atribui. Essa certeza se apresenta como absoluta. Daí se deduz a eleição que aparece no registro da certeza. Trata-se de uma eleição inquebrável, sustentada nessa estranha certeza, uma certeza que se impõe, inexplicável, sem outra senão ela mesma, uma certeza sem exterioridade. 

Como pode uma eleição se colocar sem suscitar nenhuma dúvida? A questão toda reside nessa curiosa certeza. O que o sujeito diz através de seu projeto transexual é uma espécie de “eu não sou o que sou”, reforçado com um “não sou o que pretendem que eu seja”, de onde se desprende uma espécie de fórmula lógica que chega a ser inquebrável.

Essa certeza surpreende e intriga, precisamente, na medida em que não interroga o sujeito. De que se trata? De uma convicção? De uma crença? Uma crença no que será possível a partir de ter esse outro sexo que não é o seu? Às vezes, é possível perguntar se essa certeza não acaba funcionando como um tampão contra a angústia; seu estatuto, em todo caso, segue sendo um enigma. Paradoxalmente, poder-se-ia inclusive dizer, que é um enigma o fato de que essa certeza não seja uma interrogante para o sujeito, motivo pelo qual durante muito tempo foi situada do lado das psicoses2,  consideração suscitada depois de toda uma controvérsia a esse respeito. Se essa hipótese não é a boa, se efetivamente não é esse o caso, de onde provém a evidência dessa certeza?

Para dar prova dela, poderia tomar Salomé como testemunha, a quem conheço desde a infância e cujas convicções não variaram: ela é de outro sexo que o de sua anatomia e será preciso transformá-la. A partir do momento em que seja possível fazê-lo, tomará as medidas necessárias para ser operada. No que diz respeito à sua posição, Salomé não a modificou no decorrer do tempo. Não suportou sua menstruação no momento em que ela apareceu; vive sua chegada imprevista como uma tortura originada nas profundidades mesmas de seu corpo. O mesmo ocorre com seus seios, que trata de reduzir com fitas adesivas que machucam sua pele. Para ela, sua opção não admite dúvida alguma; sua convicção é que deve, a partir do momento em que seja possível, modificar esse corpo que é só um envoltório que não corresponde à sua identidade sexual. Decidida a alcançar esse objetivo, me disse, inclusive, que se propõe a mudar sua vez, de modo a coincidir com o dia em que completará seus 18 anos, assim eu posso, de imediato, redigir uma carta dirigida à equipe especializada nas mudanças de sexo. 

Aqueles que podem ser invadidos pela dúvida são, em todo caso, aqueles que se encontram frente à certeza transexual. É a única coisa que está clara, todo o resto exige ser revisado. O que é a diferença de sexos? Onde se põe em jogo? 

Tal como ensina outra clínica completamente diferente, aquela dos intersexos, consagrada a quem nasceu com uma anatomia ambígua, não é fácil situar a diferença: não é simplesmente cromossômica, genética, endócrina, morfológica ou cerebral, nem se inscreve, tampouco, nos gêneros definidos segundo as atribuições sociais. Há uma diferença, porém não é localizável. Com maior precisão, tratar-se-ia de uma diferença lógica, uma diferença de estrutura, uma oposição significante, como a das fórmulas ideais que figuram na parte superior das fórmulas da sexuação3  e é com relação a essa diferença que não admite a coisificação, que cada um se posiciona, fazendo jogar à sua maneira sua incerteza.

A eleição categórica dos transexuais introduz um corte que a separa nitidamente da busca dos intersexos ou de suas famílias que os têm sob sua responsabilidade e já não sabem em quais protocolos podem confiar e nem qual deles seria o mais apropriado. Minha posição em relação aos intersexos supõe referir-se ao caso a caso, próprio da clínica, ao invés de imaginar a possibilidade de contar com um protocolo válido para todos. 

Frente à diferença dos sexos, não localizável, cabe a cada um inventar sua solução, valer-se de seus recursos improvisados. Por conseguinte, a cada um suas dúvidas. A dúvida vem com a eleição. De que modo poderia ocorrer que uma eleição venha operar sem a sombra de uma dúvida, tal como parecem vivê-la os que se sentem habitados por uma problemática transexual?


O gênero fluído 

De maneira surpreendente - em contraponto com as certezas próprias do transexualismo ou as dúvidas dos intersexos - aparece hoje outro campo, uma problemática nova, a do “gênero fluído”. Esse campo, pelo contrário, dá prioridade à exploração e à dúvida no que diz respeito à maneira de se situar em relação à diferença dos sexos. A revista Marie Claire em seu número de novembro de 2012, por exemplo, dedica-se a colocar a dúvida e se interroga: Um menino pode usar um vestido?

Seguindo a tendência contemporânea ao relativismo, hoje tudo seria possível entre o masculino e o feminino. Seria necessário não fixar nada na educação dos meninos. Chegamos aos tempos do que se chama o gênero fluído, assim como existe o amor líquido4?  

Parece que se quer valorizar uma identidade flutuante em termos de gênero, não só nos meios de comunicação, mas também na relação entre os pais e os filhos. 

Eu poderia tomar o exemplo de uma mãe que encontrei com seu filho, em quem se manifesta uma perturbação específica - uma variação da diferenciação sexual, como é atualmente designada; trata-se de uma presença de resíduos, atribuível à permanência de hormônios müllerianos que prevalecem sobre um déficit de hormônios antimüllerianos ou a uma resistência dos receptores a esses hormônios. Essas estruturas müllerianas constituem na menina a base do desenvolvimento do útero, enquanto no menino se reduzem, geralmente, a partir da oitava semana de gestação, como resultado da ação desses hormônios antimüllerianos. Dessa forma, mesmo quando se trata em tudo mais de sujeitos 46XY normalmente desenvolvidos, a persistência dessas estruturas determina que fiquem alienados do lado das perturbações da diferenciação sexual e se fala deles em termos de homens com útero. Em certo momento, foi isso que se disse a essa mãe sobre seu filho. Provavelmente traumatizada pela ideia, mesmo que ela afirme o contrário, ficou fixada nisso e educa seu filho de 5 anos de idade no momento da consulta, pensando que ele poderia eleger, mais tarde, continuar sendo um menino ou transformar-se em menina. Em uma ocasião, ocorreu que seu irmão, alguns anos mais velho que ele, lhe perguntou no dia de seu aniversário, o que ele gostaria de fazer mais tarde com seu útero.

O menino perplexo, mesmo que ainda não capte do que se trata, escuta tudo isso como eventualidades. Porém a mãe, por sua parte, instalou-se na ideia da existência, sempre possível, de uma modificação do sexo; considera que não se trata de permanecer fixado a isso que está presente ali e que, no final das contas, caberá a cada um a possibilidade de eleger mudá-lo quando chegar à idade adulta. 

Essa convicção relativista, da qual o pai, pelo contrário, não compartilha, surgiu sem dúvida nela a partir do fato de ter tido antes dela a perturbação específica diagnosticada em seu filho; isso não elimina que na mãe se apresente como uma evidência que a identidade sexual é, no final das contas, completamente arbitrária, móvel, plástica. Nesse caso, essa evidência talvez seja o efeito de um dado médico de incerteza a respeito do sexo, a partir do qual se precipitou a cascata relativista. Porém, trata-se de algo que pode ocorrer também, certamente, sem obedecer a um disparador desse tipo. 

Assim, no caso de outro menino de cinco anos, cujos pais lhe trazem à consulta porque quer, sem cessar, vestir-se de menina e inclusive sair vestido assim na rua; ele o faz, em particular, acompanhado por seu pai que sofre por causa disso, apesar de dizerem, pai e mãe, que estão abertos à ideia de que seu filho mude de sexo quando chegar à idade adulta. Eles se perguntam também, se não se trata de um signo premonitório de que seu filho optará mais tarde pela homossexualidade, algo que da parte deles também admitiriam. Porém, o olhar dos demais lhes causa incômodo. Estão fazendo algo que se pode qualificar de “errôneo”?

Suas respectivas famílias de origem também aceitam a hesitação do menino em relação à sua identidade de gênero. Falam sobre isso na presença dele durante a consulta, enquanto o menino brinca com sua irmã de três anos. Trata-se, por acaso, de algo que surgiu com o nascimento dessa menina? É o resultado de alguma manifestação de ciúmes? Para eles nada tem sentido. E o menino confirma que ele, em todo caso, se sente mais menina que menino e que, mais tarde, quer ser uma menina. 

Em algumas ocasiões, a perturbação do menino com relação ao gênero “fluído” é um sintoma do pai, da mãe ou de ambos. Como é o caso de um menino de oito anos que passava suas férias de inverno vestido de menina. Era seu presente de Natal. Tomava o avião que o conduzia a outro hemisfério, mudava-se, chegava vestido de menina e assim permanecia até seu regresso. Seus pais lhe davam esta metamorfose. Era talvez demais. O menino me dirá, em algum momento, a que ponto a aceitação de seus pais lhe angustiava. Ficou revelado que, por suas próprias razões, essa era, de qualquer forma, a demanda de seus pais e não a sua.

Quaisquer que sejam as razões, essas situações indicam uma relação particular tanto com a diferença sexual quanto com a lei. A diferença sexual não é mais a consequência de uma lei, de um “é assim”, mas antes ela é vivida como algo que pode ser reacomodado, algo discutível, arbitrário. De onde provém essa diferença? Quem a definiu? Só há verdadeiramente dois sexos? Quem inventou isso, então? Não seria possível ver as coisas de outra maneira? É um menino, porém poderia ter sido uma menina... Ou o contrário e como cabe a eventualidade de que o resultado fosse outro, pode-se, então, mudar o que é. 

Esse é o tipo de raciocínio que é manifesto em quem entra, efetivamente, no jogo do relativismo. Trata-se de um jogo com a lei? Mais além da lei? Um jogo do desejo com a lei?

Pensamos, habitualmente, o desejo como articulado com a lei, porém as potencialidades do desejo podem ir mais além da lei? Seria necessário considerar que nessas situações a lei do desejo ocupa o lugar da lei da diferença sexual? Ou tudo isso é signo de que a lei não opera mais? 

Às vezes, de fato, já deixa de ser um jogo, tal como demonstram os projetos dos transexuais. 

A eleição transexual

Retomemos agora nossa pergunta inicial: a eleição transexual é uma decisão? Esta decisão fica colocada a respeito da diferença sexual. Poderíamos dizer que o transexual é aquele que crê mais do que ninguém no que se encarna de um lado e de outro da diferença sexual: sua crença a respeito é tão firme que ele está disposto a mudar de sexo. Com frequência descreve-se a si mesmo como tendo uma identidade sexual provisória e que sofre por causa dela, e a vive como situado erroneamente a respeito da diferença sexual, à espera do momento em que poderá, enfim, mudar de identidade sexual.

Seja ele qual for, cada caso deve ser pensado em sua singularidade. A psicanálise não diz o que é preciso fazer: só pode oferecer referências para entender a singularidade do que está em jogo para cada sujeito. Quanto à clínica do transexualismo, poderíamos propor quatro direções para nos orientarmos na abordagem caso a caso: identidade, sexualidade, reprodução e origem.

A identidade 

A identidade apresenta-se como a orientação mais evidente: querer mudá-la dá a ilusão de que ela pode ser definida. Você não quer a que recebeu, sabe que quer outra, tudo faz crer que foi captado o que está em jogo. Mas, verdadeiramente se trata disso? Talvez, a identidade exista mais quando se ela é rechaçada, o rechaço lhe dá consistência; inclusive se o rechaço de uma identidade é colocado com força, isto não diz o que é essa identidade rechaçada, nem aquela que se quer alcançar. Por outro lado, podemos dizer com certeza o que é um homem ou uma mulher?

A psicanálise nos mostra que não é tão fácil – inclusive que é completamente impossível5!  E talvez seja o motivo pelo qual se recorra aos ideais do sexo prêt-à-porter que vêm dissimular essa definição impossível. Não existe uma referência essencialista da identidade masculina ou feminina. Aí, talvez, se coloque um ponto de encontro entre os psicanalistas e os construtivistas6.  A identidade é uma construção, um processo identitário que culmina na construção de algo que é singular em cada caso: não visa tanto alcançar um gênero estandardizado, mas sim uma organização subjetiva do gênero. Não obstante, aquilo que se torna particular nessa organização é o fato de passar por uma modificação concreta do corpo, tanto hormonal quanto cirúrgica. 

Como já dizia Freud, não há pura masculinidade nem pura feminilidade7,  é um misto, porém há uma diferença, como dizíamos, não localizável, a respeito da qual cada um se situa ao seu modo de um lado ou de outro. A aposta é certamente a mesma quando se trata de escutar os transexuais: compreender que também eles são um misto, que também existe neles uma ambivalência, uma ambiguidade, que não está tudo tão claro para além da certeza que os caracteriza. Assim me disse recentemente um jovem de 15 anos, fascinado pela androginia, porém do lado feminino: embora esteja convencido de querer transformar-se em mulher, ele gostaria de seguir sendo andrógino, mas do lado feminino, isto é, em primeiro lugar não perder a ambiguidade, manter-se situado no incerto (algo que constitui, segundo minha experiência, uma posição completamente excepcional).

Trata-se também, a propósito da identidade, de abandonar a referência à natureza. De fato, é mais além da natureza que se joga a questão transexual, ainda que de maneira paradoxal, ela mesma leva a intervir concretamente no corpo com o fim de transformá-lo. 

Talvez haja um mal entendido fundamental: é verdadeiramente o corpo o que está em jogo ou, pelo contrário, um mais além das restrições que o corpo sexuado impõe? Tal como o formula Lacan, de uma maneira particularmente incisiva e pertinente:

Nessas condições, para ter acesso ao outro sexo, realmente é preciso pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o real por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão. Um órgão só é instrumento por meio disto em que todo instrumento se baseia: é que ele é um significante.8  

Talvez seja essa confusão entre o significante e o órgão o que determina que nesse tipo de iniciativa esses sujeitos não expressem nenhum temor a respeito da intervenção cirúrgica. E isso é assim e tem um peso nas operações mutilantes às quais eles planejam se submeter e que consideram, pelo contrário, uma liberação do órgão em benefício do significante. 

Esse benefício em harmonia com o significante poderia se dar através do travestismo ou da mudança de nome, porém os transexuais não querem se limitar a incidir no significante – mesmo quando é em termos de significante que não querem o órgão -, mas sim intervir diretamente sobre ele9

A esse respeito, coloca-se a pergunta acerca das metamorfoses que a puberdade põe em jogo. Alguns clínicos arriscaram explorar os procedimentos que apontam a um freezing da puberdade, quer dizer, a uma suspensão de seu processo. A puberdade é algo que se impõe, acontece no sujeito sem que sua decisão intervenha; alguns a vivem de maneira traumática, mais ainda quando um projeto transexual está em jogo. Recorrendo a tratamentos específicos, trata-se então, de suspender concretamente a puberdade para escapar de sua determinação fisiológica posta em marcha de maneira inexorável, assim como de seus efeitos no processo da sexuação. A menstruação é vivida muito dolorosamente e o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários é experimentado como uma agressão. Alguns têm o projeto de deter essas transformações desde o começo da puberdade, de suspendê-las em seu processo para não ter que corrigir suas consequências mais tarde.

Como escreve Norman Spack, de Boston10, “é preciso que a criança não seja refém de seu corpo”. A anatomia já não pode ser mais o destino.11  O destino é a eleição do sujeito, incluindo uma eleição feita antes da puberdade. A partir dessa abordagem, nos encontramos com um pré-adolescente de um ou outro sexo – em um momento de suspensão de uma identidade -, mantido artificialmente em um estado pré-puberal, a espera do que mais tarde terá que se realizar mediante uma nova atribuição de identidade, modelando esse corpo em função da posição de sujeito, ajustando da melhor maneira sua aparência ao seu projeto. 

A sexualidade 

Temos que distinguir a questão da sexualidade, por um lado, e aquela própria da identidade sexual. Talvez ocorra, além disso, que se assimile demasiadamente a transexualidade à questão da identidade. Temos, de um lado, uma vertente da sexualidade como tal que implica o desejo e a eleição sexual e, de outro, o processo de sexuação que implica a identidade. Inclusive, se ambos se cruzam, a identidade não aporta a solução para o que concerne à sexualidade. 

Também está em primeiro plano a questão do desejo. Qual seria o destino do desejo depois da metamorfose sexual?

Não há, tampouco, universais a respeito, nem solução cunhada; quanto ao uso da diferença sexual não há soluções universais, válidas para todos. Quanto ao que constitui essa diferença, os humanos chegam ao mundo sem instruções de uso. Como escreve Lacan a propósito do “O despertar da primavera de Wedekind12, a sexualidade faz “furo no real”, não há um saber disponível e na medida em que “nada se arranja bem com o assunto, depois, tampouco nos preocupamos mais com isso”. Se alguns, de fato, “não se preocupam mais”, outros, pelo contrário, se preocupam muito. É o caso, por exemplo, desses homens conhecidos como “homens lesbianos”13 , que buscam que pretendem se transformar em mulheres com o projeto específico de ter relações sexuais com mulheres. Transformar-se em mulher para deitar-se com uma mulher: para eles, o projeto de mudar de sexo é, em primeiro lugar, uma necessidade para atingir uma nova sexualidade. A mudança de sexo fica colocada como uma condição da relação sexual, de uma relação sexual que ao final existiria.

Assim, poderíamos formular como hipótese que o projeto de mudança de sexo seria uma maneira de crer na relação sexual que não existe, como se essa mudança tornasse possível a relação sexual. 

Porém, às vezes, os projetos são diferentes. Como o dessa adolescente que quer se transformar em homem, mas me disse estar enamorada; precisa que é de uma mulher, e acrescenta: “É evidente, já que sou heterossexual”. Nesse ponto segue bem Lacan, para quem todo sujeito que deseja uma mulher é fundamentalmente heterossexual, qualquer que seja o sexo. 

Mais além de toda eleição, quando a sexualidade está em jogo, a identidade entra inevitavelmente em crise, e também o desejo, revelando um gozo opaco, enigmático, desconhecido.14  Esse gozo transtorna todas as expectativas até então regidas pelos ideais do sexo: só resta ao sujeito encontrar seu próprio caminho entre identidade e desejo, entre eleição do sexo e eleição de gozo.

A procriação

Com a metamorfose transexual também se coloca, inevitavelmente, a questão da reprodução sexual. Como enuncia Lacan, por um lado, está a relação sexual - que não existe e que tampouco sabemos em que ela consiste – e, por outro lado, a reprodução da vida, resposta comum a essa relação que não há.15 Essa resposta sobre a procriação se impõe frente à questão sexual que, por sua parte, é insolúvel; não há uma fórmula inventada capaz de resolvê-la. Essa questão sexual reenvia a um furo no saber, a um real que se impõe sem que o sujeito saiba o que é e o que fazer dele. Mesmo quando essa resposta é, também, posta em jogo na transexualidade, frequentemente se mantém velada e até reprimida neles, quer se trate de sujeitos que almejam uma mudança de sexo ou daqueles que intervêm para torná-la possível.

No entanto, as diretrizes mais contemporâneas incluem em seus protocolos o tema da conservação dos gametas e a reserva de uma possibilidade de procriar. Nas mulheres transformadas em homens também se coloca a questão de conservar o útero, como foi o caso de Thomas Beatie, que transformado em homem pôde gestar os filhos do casal no lugar do seu cônjuge, uma mulher estéril. Dele se originaram as fotos desconcertantes de um homem carregando em seu ventre uma criatura – “the pregnant man” - amplamente difundidas pelas mídias: as de um homem que, enquanto se barbeava diante de um espelho, mostrava com orgulho sua barriga peluda de grávida.

O problema da reprodução se situa mais além da identidade, já que pode turvá-la, colocá-la literalmente de cabeça para baixo. O filho ou a filha de um casal transexual poderia, por exemplo, ter por genitor masculino uma das duas mulheres das quais provêm, enquanto a outra o teria carregado durante a gestação. Todo um espectro de variantes pode ser imaginado a partir do momento em que se conservam as possibilidades de reprodução, que não têm relação com os pontos de referência comuns de identidade. Além disso, o vínculo entre sexualidade e procriação fica quebrado, perturbando de uma maneira radical as marcas indicadoras de seu encadeamento biológico. A procriação, a reprodução da vida, a gestação, ficam assim separadas de toda congruência direta com a identidade e a sexualidade.

Perguntamo-nos como interpretar a tendência atual ao rechaço da esterilização imposta pela maior parte dos protocolos de mudança de sexo. Esses protocolos de fato condicionam a mudança de sexo à esterilização e muitos transexuais se opõem a que seja assim. Como interpretar esse rechaço? Trata-se do rechaço da própria ideia do que uma esterilização representa em termos de identidade ou tem a ver com a real manutenção de reserva de uma potencialidade reprodutiva?

Inclusive, se a questão da reprodução não se manifesta de maneira explícita, isso não impede que ela possa preocupar o sujeito sem que ele o saiba, mesmo que não tenha sido ele mesmo quem tomou a iniciativa de se transformar em alguém diferente do que era no momento de seu nascimento. 

A origem 

O projeto transexual na criança e no adolescente também coloca a questão da relação do sujeito com sua origem. A intervenção de um novo posicionamento frente à diferença sexual é também, finalmente, uma intervenção em relação à origem: não ficar submetido a uma origem que se precipita sobre o sujeito, que caiu em cima dele ao mesmo tempo em que ele caiu no mundo e avançar, pelo contrário, em direção a uma origem recriada, reinventada. Não sofrer a origem, e sim elegê-la.

Tudo isso dá prova de uma consciência, talvez excessiva, do arbitrário da origem, do fato de ser esse que alguém é e não outro, do fato de ser desse sexo e não de outro, de haver nascido com esse sexo, em um momento e um lugar determinado: o sujeito não tem possibilidade de modificar nenhuma dessas alternativas. E então, por que aceitá-la ao invés de rechaçá-la? Por que naturalizá-la? 

De onde venho? Onde estarei quando já tiver deixado de existir? Essas perguntas fundamentais sobre a origem e para as quais não há resposta alguma, têm pontos em comum com aquelas sobre a morte. Operar uma metamorfose na diferença sexual seria, então, uma intervenção tanto sobre a origem como sobre a morte. Antes de sofrer a morte, já em jogo no futuro, desde o momento do nascimento, por que não colocar as coisas de um modo diferente e intervir de maneira ativa mudando os dados básicos da diferença sexual. Trata-se de ir, através de uma origem refundada, para um novo modo de ser no mundo: a operação sobre a diferença sexual é, portanto, uma operação sobre a origem. 

Ao modo de conclusão 

Encontrar-se frente à demanda de um paciente que quer mudar de sexo pode deixar o clínico perplexo. Muito mais perplexo na medida em que hoje é cada vez mais possível intervir diretamente sobre a natureza. A demanda transexual se encontra assim, com o “desejo de afetar o real, agindo sobre a natureza: fazê-la obedecer, mobilizar e utilizar sua potência”.16  

Seja como for, não se pode submeter o que é formulado pelo paciente aos ideais estandardizados do sexo. Não se pode dizer o que está bem para um sujeito em seu lugar. É possível, na mudança, ajudá-lo para que ponha suas eleições à prova daquilo que, talvez, se jogue nelas sem que ele o saiba, introduzir um questionamento ali onde a certeza ocupa todo o lugar, descobrir com ele os aspectos desconhecidos de sua determinação, de sua crença nessa identidade que quer alcançar, em substituição daquela que o destino anatômico lhe atribuiu. 

A psicanálise vem da clínica do caso a caso; não promove opiniões supostamente válidas para todos. É, em primeiro lugar, uma clínica, quer dizer, reporta-se à experiência da singularidade como tal e por isso mesmo não corresponde recorrer a ela para estabelecer normas válidas para todos.

Não se trata de julgar, muito menos quando um bom número desses sujeitos sente-se muito melhor depois, cada um se arranja com isso que é e isso que quer ser. No entanto, como clínico, quando uma criança ou um adolescente se instala em um projeto desse tipo, não é possível deixar de lado a pergunta acerca do que não se pode captar daquilo que os precipita até essa opção, em que ponto não foi possível escutar a angústia que esse projeto vem recobrir e a certeza que o acompanha. 

A identidade, a sexualidade, a reprodução, a origem e a morte são as coordenadas para pensar o caso a caso dessas situações. Qualquer que seja a certeza em jogo é preciso dar-se conta do fato de que toda eleição implica um impensável. Algo de sua eleição escapa ao sujeito que elege ou acredita eleger. 

Para Lacan, “o impasse sexual secreta as ficções que racionalizam a impossibilidade da qual provém”.17  Não há solução universal para fazer frente a não relação sexual, só existe a solução que cada sujeito inventa. A cada um sua solução, à chacun son bricolagem,18  cada um é o artesão de sua ficção. Isso é o que colocam de uma maneira extrema os sujeitos transexuais. De fato, talvez haja soluções menos custosas.

Tradução: Patrícia Badari

 

 1.  Texto publicado originalmente em http://virtualia.eol.org.ar/ #29 Noviembre – 2014. Publicado neste número de Opção Lacaniana Online nova série com a amável autorização do autor.

2.  Sobre a certeza nas psicoses, no sentido estrito, ver em particular: LACAN. J. (1988/1955-56). “O fenômeno psicótico e seu mecanismo”. In: O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

3.IDEM. (1989/1975). “Letra de uma Carta de Almor”. In: O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

 4. BAUMAN, Z. (2003). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar. IDEM. (2005). Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar.

 5. “(...) no que tange a definir o que se dá com o homem ou a mulher, a psicanálise nos mostra que isso é impossível”. LACAN, J. (2011/1971-72). “Saber, ignorância, verdade e gozo”. In: Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Zahar, p.33.

 6. Essa observação obviamente exigiria um desenvolvimento mais amplo; citemos os trabalhos de Anne Fausto-Sterling, que ressalta muito bem o a priori essencialista da formulação binária da sexualidade na investigação biológica. De fato, esta coloca a existência de dois sexos sem questioná-la, determinando assim, a maneira de examinar a realidade genética. Ver a respeito em: BUTLER, J. (2005). Trouble dans le genre. La Découverte: Paris, p. 216-222.

7.   “(...) a maioria dos homens também está muito aquém do ideal masculino e que todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras seguem sendo construções teóricas de conteúdo incerto”. FREUD, S. (1976/1925). “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológica Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p.320. 

 8.  LACAN, J. (2012/1971-72). O seminário, livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 17.

 9.  “É como significante que o transexual não o quer mais, e não como órgão”. Lacan agrega: “Existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual (…)”. IDEM. Ibid., p. 17.

 10. REED, B. W. D.; COHEN-KETTENIS, P. T.; REEDA, T.; SPACK, N. (2008). “Medical care for gender variant young people: Dealing with the practical problems”. In: Sexologies, vol. 17, n° 4, p. 258-264. PERRIN, E.; SMITH, N.; DAVIS, C.; SPACK, N.; STEIN, M. D. (2010). “Gender Variant and gender dysphoria in two young children”. In: Journal of Developmental and Behavioral Pediatrics, vol. 31, n° 2, p. 161-164.

11.  Freud toma de Napoleão esta citação e a transpõe para se referir ao advento sexual: “A anatomia é o destino”. FREUD, S. (1996/1924). “A dissolução do complexo de Édipo”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Op. cit., p. 222.

 12. LACAN, J. (2003/1974). “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

13.  Ver a respeito a tese de Denise Medico, “Le devenir féminin transgenre. Une étude qualitative et réflexive sur le genre, la corporéité et la subjectivité sexuelle”. Université de Lausanne, UNIL, 2011.

 14. Resta um trabalho por fazer para pensar o estatuto deste gozo, em particular quanto à disjunção ou à conjunção entre o significante e o gozo, muito mais na medida em que admitimos com Lacan que é enquanto significante que o transexual não se contenta mais com seu órgão. Esta problemática do gozo na transexualidade a partir dos seis paradigmas do gozo enunciados por Jacques-Alain Miller, se encontra desenvolvida em “Os seis paradigmas do gozo”. In: Opção Lacaniana online nova série. Ano III, março de 2012. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_ gozo.pdf

 15.  “Em outras palavras, existe uma tese: não há relação sexual, refiro-me ao ser falante. Há uma antítese, que é a reprodução da vida. (...) A Igreja católica afirma que existe uma relação sexual, que é aquela que leva a fazer filhinhos". LACAN, J. (2011/1971-72). “Saber, ignorância, verdade e gozo”. In: Estou falando com as paredes. Op. cit., p. 34.

 16.  MILLER, J.–A. (2014). “O real no século XXI”. In: Um real para o século XXI. Scilicet. Belo Horizonte: Scriptum, AMP, p. 25.

 17.  LACAN, J. (2003/1974). “Televisão”. In: Outros Escritos. Op.cit., p. 531.

18.   N.T.: A cada um sua bricolagem.


IN: Opção Lacaniana, ano 9, março/julho 2018 

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