BOUVARD E PÉCUCHET: O DELÍRIO DA PERFEIÇÃO E A ESTRURA OBSESSIVA
Seguidamente, glorificaram as vantagens das ciências: quantas coisas havia para conhecer! Quantas investigações — se para elas houvesse tempo! Infelizmente, o ganha-pão tomava todo; e ergueram os braços de espanto, quase se abraçaram por cima da mesa, ao descobrir que eram ambos copistas, Bouvard em uma casa de comércio, Pécuchet no Ministério da Marinha — o que não o impedia de consagrar, todas as tardes, alguns momentos ao estudo.
Entre a comédia do saber e a tragédia do gozo
No romance inacabado "Bouvard e Pécuchet", Gustave Flaubert entrega ao leitor uma espécie de enciclopédia do fracasso humano diante do saber. Dois copistas, ao receber uma herança, abandonam Paris para se dedicar à vida no campo. O que poderia ser um retorno idílico à natureza transforma-se numa odisseia patética, cômica e angustiante. Os dois amigos mergulham em múltiplas áreas do conhecimento — agricultura, medicina, pedagogia, química, filosofia, religião — numa tentativa incessante de dominar o mundo pela via do saber, mas falham, invariavelmente. A cada novo projeto, o entusiasmo dá lugar à frustração, e logo vem o próximo, numa sucessão que parece infinita.
Essa circularidade — esse desejo de perfeição que jamais se realiza — nos permite aproximar os personagens da estrutura obsessiva, tal como concebida pela psicanálise. Freud e Lacan nos oferecem os mecanismos para compreender o que se joga nessa comédia amarga do saber. E Sloterdijk, com sua concepção da vida como exercício, pode iluminar, por contraste, o que está em jogo no impasse dos protagonistas: o esvaziamento do gesto, a paralisia da prática, o colapso do espírito ascético.
O obsessivo: saber como defesa contra o desejo
Freud descreve a neurose obsessiva como marcada por dúvidas, pensamentos intrusivos, rituais de repetição e uma relação ambígua com a autoridade. No fundo, trata-se de uma tentativa de domínio absoluto sobre o Outro — o Outro que deseja, que ordena, que falta. Para isso, o obsessivo recorre ao saber, como se através dele pudesse evitar o confronto com o desejo, com o sexo, com a morte, com o erro.
É por essa trilha que se movem Bouvard e Pécuchet. Eles não querem simplesmente saber: querem saber tudo, desde o início, e de forma ideal. Saltam de disciplina em disciplina buscando a fórmula correta, a teoria que os livrará da incerteza, da dúvida, do caos. Mas o saber que acumulam é estéril, desligado da experiência viva, é um saber sem corpo.
A repetição na estrutura: fracassar melhor, fracassar sempre
A cada novo fracasso, em vez de recuarem, os personagens recomeçam — mas nunca sobre as ruínas do que viveram: sempre como se estivessem iniciando do zero, purificados. Essa lógica do recomeço incessante é profundamente obsessiva: é uma repetição que não aprende com o erro, porque não o tolera.
Lacan dirá que o obsessivo está sempre às voltas com a pergunta “Que quer o Outro?”, tentando antecipar e controlar esse querer. Por isso hesita, adia, gira em torno. Bouvard e Pécuchet encarnam essa hesitação crônica. Não é que não façam — ao contrário, são hiperativos — mas seus atos são sempre desviados da ação efetiva. Não há transformação real, apenas um gozo na preparação, na simulação do fazer.
O corpo excluído e a ciência como fetiche
O corpo, nesse universo, aparece apenas como objeto de estudo, de correção ou de escândalo. A medicina que tentam praticar é fria, técnica, sem relação com a dor ou a morte como real. O sexo, a religião e a arte são tratados como campos de saber — e jamais como experiências encarnadas.
A obsessão pela pureza do saber — ou sua universalidade — denuncia um desamparo estrutural: o medo do descontrole, do desejo, da diferença. O saber é fetichizado: ocupa o lugar do falo perdido, prometendo completude. Mas, como nos mostra a “comédia” de Flaubert, essa promessa é uma armadilha.
Sloterdijk e o exercício que falta
Peter Sloterdijk, em “Has de cambiar tu vida”, propõe uma antropologia do exercício: o ser humano, para ele, é o animal que se exercita. Toda vida autêntica implica prática, repetição, cultivo. Não se trata de saber, mas de formar-se — eticamente, espiritualmente, corporalmente.
Essa concepção permite uma outra leitura crítica de Bouvard e Pécuchet. Eles são, por assim dizer, caricaturas do homem moderno que abandonou o exercício em favor do acúmulo. Leem, estudam, classificam, mas não se transformam. Sua vida é um museu de tentativas fracassadas. Não mudam.
Sloterdijk diria que o saber sem prática e disciplina é vazio; Flaubert nos mostra que ele também é ridículo. A tragédia dos dois amigos não está em sua ignorância, mas na recusa de passar pelo real da experiência, da repetição com diferença, do limite.
Da comédia à melancolia
Ao final do romance, os personagens desistem de agir. Recolhem-se à cópia — retornam ao ponto de partida, mas agora não como ofício modesto, e sim como recusa do mundo. É um fim melancólico: retiram-se da vida, mas continuam vivos.
A estrutura obsessiva, levada ao limite, revela seu núcleo melancólico: o desejo de parar o tempo, de suspender o desejo, de congelar o real. Bouvard e Pécuchet, na sua fome de saber e no seu horror à imperfeição, encarnam esse impasse de modo exemplar — e tragicômico.
Referências:
Flaubert, Gustave. Bouvard e Pécuchet. Romance inacabado, publicado postumamente.
Freud, Sigmund. “Obsessões e fobias” (1895), “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (O Homem dos Ratos, 1909), e “Inibições, sintomas e angústia” (1926).
Lacan, Jacques. Seminário 10: A angústia (1962–1963). Rio de Janeiro: Zahar.
____________, Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).
Sloterdijk, Peter. Has de cambiar tu vida. Madrid.
Maria Holthausen
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