A PERVERSÃO COMO DISCURSO, ESTRUTURA E SINTOMA DE UMA ÉPOCA
Lucian Freud, Interior Amplo, Notting Hill , 1998.
Este ensaio rastreia o conceito de perversão: de uma estrutura psíquica singular, definida pela recusa da castração (Verleugnung), a um sintoma social generalizado . Discutimos a subversão freudiana e a leitura lacaniana, onde o objeto fetiche garante o gozo ao invés de causá-lo . Essa lógica do contrato, em vez de Lei simbólica, não pertence apenas ao indivíduo. Na "cidade perversa" contemporânea , o mercado substitui o pai e o supereu ordena: "goza, consome, aparece" . Entenda por que a perversão revela a dificuldade da cultura em aceitar a perda e como a psicanálise é o lugar onde a falta ainda pode resistir .
Entre a Lei e o Gozo: a Perversão como Discurso, Estrutura e Sintoma de uma Época
A palavra perversão carrega um peso histórico e moral que antecede a psicanálise. Antes de Freud, ela habitava os domínios da psiquiatria e do direito penal — onde designava o desvio, o vício, o crime, o abjeto. Pervertere, em latim, significa “virar ao contrário”, “derrubar”, “subverter”. Elisabeth Roudinesco lembra que, na Idade Média, o perverso era o infame, o herege, o criminoso — aquele que desafiava a ordem divina. A psicanálise herdou esse termo carregado de sombra, mas o deslocou do campo da moral para o da economia do gozo.
Freud rompe com a visão médica e moralizante da perversão ao situá-la, em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, no campo da sexualidade infantil. A criança, diz ele, é “perversa polimorfa”: experimenta o prazer sem culpa, sem finalidade reprodutiva, sem se submeter à norma. A sexualidade, portanto, nasce perversa. Antes de entrar na linguagem e, portanto, de conhecer a lei, toda criança foi um perverso polimorfo. Mais tarde, Freud constata que a diferença entre o neurótico e o perverso não é de natureza, mas de destino: “a neurose é o negativo da perversão”, escreve ele, indicando que o que o perverso realiza em ato, o neurótico recalcou.
A partir da articulação freudiana de 1905, a perversão deixa de ser um comportamento e passa a ser um modo de relação com a Lei e com o Gozo. O que a cultura chamará de perversão é, na verdade, o destino específico de uma relação com a interdição e com a castração.
A recusa da falta: o sujeito cindido
A estrutura perversa nasce da recusa. Freud, ao descrever o mecanismo da Verleugnung — a recusa da castração —, mostrou como o sujeito pode ver e não ver ao mesmo tempo, aceitar e negar simultaneamente o real da diferença sexual. Essa duplicidade sustenta uma divisão interna (Spaltung), que lhe permite manter o equilíbrio psíquico ao preço da clivagem do Eu.
No perverso, essa recusa se encena em ato. O horror da castração é transformado em fonte de gozo. Ao não reconhecer o desejo da mãe pelo pai, o sujeito constrói uma lei paralela privada, na qual o gozo é regido por contratos e rituais minuciosos. O contrato substitui a Lei simbólica e transforma o prazer em dever. O corpo torna-se palco de uma cena sacrificial, em que a dor e a excitação repetem o mesmo mito: o da mãe idealizada e intacta, protegida do corte, fora da falta.
Da moral à estrutura: a subversão freudiana
Quando, anos depois, em O Fetichismo (1927), Freud descreve o mecanismo da recusa (Verleugnung), define também o operador estrutural da perversão: o sujeito que nega a castração, mas sem dela se libertar. Ele a vê e não a vê — divide o eu (Spaltung), criando uma fenda onde a realidade e o desejo coexistem sem conflito. A mulher tem e não tem o falo; a castração é reconhecida e simultaneamente desmentida. É nessa duplicidade que o sujeito perverso se instala: ele vive na cena da recusa.
Para a teoria freudiana, o objeto fetiche é o substituto do falo materno, erigido no lugar da percepção traumática de sua ausência. Quando o menino descobre que a mãe não tem pênis, ele sofre uma ameaça simbólica de castração. Frente a angústia da castração o fetiche surge como um objeto de compromisso, uma solução imaginária que simultaneamente reconhece e nega essa perda.
Freud descreve essa operação como uma defesa específica: a divisão do Eu (Ichspaltung), mantem, lado a lado, duas crenças contraditórias — “sei que a mãe não tem o falo” e “mesmo assim, acredito que ela o tem”. O fetiche, portanto, é o testemunho material do desmentido, sustentando o gozo e evitando a angústia da falta.
Se para Freud o fetiche é o testemunho material do desmentido e um objeto de compromisso que alivia a angústia da castração, a leitura lacaniana aprofunda essa lógica ao postular que, na perversão, ele deixa de operar como causa do desejo para funcionar como garantia absoluta de gozo. O fetichista não deseja — ele goza. O objeto perde sua dimensão de falta e torna-se uma presença necessária, fixada, que vela a castração. O fetiche é, assim, o emblema do gozo perverso, que substitui a falta simbólica por um objeto imaginário absoluto.
O paradoxo do gozo: o interdito transformado em regra.
Piera Aulagnier-Spairani, em seu clássico artigo, A Perversão como Estrutura, desenvolve a tríade que articula a posição perversa: recusa (da castração simbólica), lei (substituída por um contrato privado/ritualizado) e desafio (à lei simbólica). Diante do horror da diferença dos sexos e da impossibilidade de reconhecer o desejo da mãe pelo pai, o sujeito perverso recusa a castração simbólica. Ele substitui o impossível por um contrato — uma lei privada, minuciosa, ritualizada — em que o gozo se torna dívida sacrificial. O perverso transforma o horror em gozo e o interdito em regra.
Nessa economia, a mãe idealizada é preservada em sua onipotência, enquanto a mulher real é desvalorizada, culpada por sua falta. O contrato e o ritual — como mostram os cenários sadomasoquistas analisados por Freud e mais tarde por Serge André — não são simples fantasias eróticas, mas modos de sustentar o spaltung que impede o sujeito de se desintegrar. O ato perverso é, paradoxalmente, uma tentativa de reintegrar-se à Lei: de tocá-la, transgredindo-a.
O discurso perverso: entre manipulação e verdade
Ana Maria Rudge propõe ler a perversão como um discurso, e não como uma patologia. No campo transferencial, o sujeito perverso encena uma verdade sobre o desejo e a castração que o neurótico apenas sonha. Sua teatralidade, sua manipulação e sua recusa à angústia revelam uma estrutura de saber: o saber sobre o gozo. O perverso fala — e, ao falar, sustenta o analista em um lugar incômodo, ora como cúmplice, ora como moralista, ora como objeto.
Por isso, a clínica da perversão é uma clínica do impasse. O analista deve resistir à posição paralisante em que o sujeito o coloca, recusar o lugar do supereu ou do voyeur, e criar as condições para que algo do desejo possa emergir. Não se trata de corrigir o gozo, mas de deslocar o sujeito de sua cena fixa, permitindo que ele experimente a falta como condição e não como ameaça.
A encenação da perversão no campo transferencial
A perversão é uma forma de saber sobre o gozo. No campo analítico, o sujeito perverso fala a partir de um saber — o saber de quem acredita conhecer a verdade do gozo, o segredo da Lei. Sua fala é teatral, calculada, construída para provocar o outro e colocá-lo em posição de cúmplice, moralista ou voyeur. Uma forma de relação que encena a negação da falta e desafia a castração do analista.
Para a estrutura perversa, clínica é sempre uma cena. O analista é convocado a participar do jogo, a ocupar o lugar do Outro que o perverso tenta dominar. Se o analista aceita o convite, se responde moralizando ou se deixa seduzir, o jogo se fecha. Mas, se sustenta o silêncio - a falta -, abre-se a possibilidade de deslocar o sujeito de sua encenação fixa. A ética da psicanálise, nesse ponto, consiste em não responder à provocação, mas sustentar o lugar do enigma.
O imperativo do gozo na cultura contemporânea
A recusa da falta não pertence apenas ao indivíduo. O discurso social contemporâneo — com sua promessa de satisfação ilimitada — parece ecoar a estrutura perversa. A cultura do consumo, da performance e da exibição generalizou o imperativo de gozo: “goze, realize-se, não se limite.”
Dany-Robert Dufour chama essa nova configuração de cidade perversa. Nela, o mercado substitui o pai simbólico e oferece aos sujeitos um paraíso sem proibições. A Lei, antes ligada à interdição e à falta, é substituída pela lógica do contrato e da equivalência — a mesma que estrutura o pacto perverso. O sujeito contemporâneo já não se submete à castração: ele negocia o gozo como quem negocia um produto.
Na cidade perversa, o corpo torna-se vitrine, o desejo se confunde com a demanda do mercado e o gozo se converte em dever. A perversão, antes uma posição singular diante da Lei, torna-se uma gramática coletiva. É o laço social que se erotiza, é a política que promete prazer, é o supereu que não mais proíbe, mas ordena: “goza, consome, aparece.”
A sustentação da falta como horizonte clínico
Como observa Lacan, o desejo do analista se distingue radicalmente da posição perversa, pois não busca manipular o gozo do Outro, mas sustentar o lugar da falta. Ou seja, como indicam vários comentadores do ensino de Lacan — “onde o perverso para, começa o desejo do analista.”
Essa distinção revela uma fronteira ética. O perverso manipula o desejo do Outro, tenta saturá-lo e fazê-lo instrumento de gozo. O analista, ao contrário, sustenta o lugar da falta — o ponto em que o desejo se mantém vivo sem ser completado. O desejo do analista não é o desejo de gozo, mas o desejo de que o desejo do sujeito se produza.
A clínica exige, portanto, não a correção do desvio, mas a sustentação da falta como horizonte. Somente assim a palavra pode voltar a circular e o sujeito reencontrar, naquilo que falta, a medida do desejo.
No consultório, o sujeito perverso traz para o campo transferencial algo dessa cena ampliada: a promessa de um gozo absoluto, sem perda. O analista, por sua vez, é chamado a ocupar o lugar impossível do Outro que garante esse gozo. A tentação é grande: tanto quanto o risco de cair na armadilha.
A perversão como espelho
A perversão, lida por Freud, Lacan e seus comentadores, não é um desvio moral nem uma anomalia clínica. É um espelho — talvez cruel — da condição humana e de seu tempo. O perverso mostra, com nitidez desconcertante, o que a cultura prefere ocultar: a dificuldade em aceitar a perda, a tentativa de transformar o impossível em espetáculo, a recusa em reconhecer a Lei como limite estruturante.
Se hoje vivemos em uma sociedade que promete o gozo sem falta, talvez a escuta psicanalítica seja um dos poucos lugares onde a falta ainda tem direito de existir — não como carência, mas como condição de desejo, como espaço do humano que ainda resiste ao fetichismo da plenitude.
Bibliografia
• Lacan, Jacques. Seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro; Jorge Zahar Editor: 1988.
• Freud, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980
• Freud, Sigmund. O fetichismo (1927). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980
• Aulagnier-Spairani, Piera. “A perversão como estrutura”. In: O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
• Rudge, Ana Maria. “Notas sobre o discurso perverso”. In: Psicanálise: teoria e clínica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.
• Dufour, Dany-Robert. A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
• Roudinesco, Élisabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
• Coutinho, Alberto Henrique Azeredo et al. “Perversão: uma clínica possível”. In: Revista Brasileira de Psicanálise, v. 41, n. 2, 2007.
• André, Serge. A impostura perversa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1995
Maria Holthausen
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